[revisão de Márcia Marto]
Os sonhos dos homens transformam-se em mitos.
(Vlad Eugen Poenaru)
Diz-se que, há muito tempo em Praga, o Rabi Loew criou um espécime de uma criatura conhecida nos mitos judaicos e na literatura como golem. Em um momento em que o gueto de Praga e seus habitantes estavam em perigo, o rabino moldou um ser de argila com a forma humana, soprando-lhe a vida ao sussurrar uma palavra mágica. Em outras versões da lenda, Rabi Loew escreve na testa, na mão ou no peito de seu boneco ou, ainda, em um papel que é introduzido em sua boca.
Os fazedores de golems,1 organizado por Lyslei Nascimento, doutora em Letras: Literatura Comparada e professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, e Luiz Nazario, doutor em História pela Universidade de São Paulo e professor de Cinema na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, cuja segunda edição foi publicada em 2021 pela Editora Caravana, reúne quatro ensaios e um poema, nos quais os pesquisadores fazem vislumbrar múltiplos desdobramentos do mito judaico.
A nova edição traz em sua capa a imagem de nove bonecos de madeira, cujas vestimentas e aspectos físicos se assemelham: todos usam ternos e chapéus pretos, possuem um formato de rosto parecido e têm barba. No entanto, cada um possui, também, suas particularidades, sendo que as cores de suas gravatas, o tom de suas barbas e o tamanho de seus narizes, olhos e boca podem variar. Trata-se de um prelúdio, de uma serena introdução ao conteúdo que o leitor encontrará no livro. Como afirma Jorge Luis Borges, em seu ensaio «Formas de uma lenda»,2 «[a] realidade pode ser complexa demais para a transmissão oral; a lenda a recria de uma forma que só é falsa acidentalmente, permitindo-lhe percorrer o mundo, de boca em boca».3
Em outras palavras, como diz a sabedoria popular, «quem conta um conto aumenta um ponto». Modelados pelas mãos do artista, os bonecos de madeira se assemelham, mas não são idênticos e cada um possui sua singularidade. Também as versões da lenda do golem são moldadas por seus narradores que, em um exercício benjaminiano, imprimem suas particularidades à narrativa. No prefácio, Nazario e Nascimento ressaltam que a diáspora judaica contribuiu para a formação de uma tradição literária que se espalha, primeiro, pela Europa e, eventualmente, pelas Américas, «multiplicando suas versões fragmentárias até a contemporaneidade».4
No ensaio «O golem: do limo à letra», Nascimento aproxima três exposições e três cidades: Nova York, Praga e Buenos Aires. Nos Estados Unidos, a exposição «Golem! Danger, Deliverance and Art» ocorreu em 1998, no Museu Judaico de Nova York. Foi reunido «um acervo multidimensional de versões da criatura»,5 que incluía fotografias, quadros, esculturas, revistas de histórias em quadrinho, textos e imagens que «vêm constituindo um arquivo que assombra e encanta o homem».6 Para a ensaísta, cada um dos artistas – poetas, escritores, escultores, pintores ou compositores que participam na exposição – é um fazedor de golems e cada uma de suas obras de arte, uma recriação do mito judaico. Dessa forma, o museu exibe um arquivo «em eterna construção, como uma galeria de criadores e criaturas que vão se definindo».7
As exposições de Praga e Buenos Aires se espelham. De acordo com Nascimento, o diálogo entre as duas cidades não é acidental: Borges, «um dos mais sofisticados fazedores de golems de todos os tempos»,8 dedica seu poema9 à versão da lenda de Rabi Loew, que se passa no gueto de Praga. As exposições fazem reverberar fragmentos e versões do mito que, no entanto, são sempre incompletas, «a não ser que se pense, de acordo com Borges, que cada golem contém e é todos os golems».10
Ao recontar o mito judaico em forma poética, Borges insere, também, a sua própria marca. Trata-se de um gato que, em seus versos, pertence ao rabino. O eu-lírico afirma: «Algo anormal e tosco houve no Golem. pois se passava, o gato do rabino se escondia. (Não fala em gato Scholem mas, através do tempo, eu o adivinho.)»11. Nascimento, sugere, então, que o escritor não ignora as inúmeras versões da lenda e, ao inserir um felino em seus versos, na verdade, insere no arquivo judaico a sua própria reescritura, o seu próprio golem.
Em «Os caminhos do Golem pela literatura», Elcio Loureiro Cornelsen, doutor em Literatura Moderna Alemã pela Universidade Livre de Berlim e professor de Língua e Literatura Alemã da Universidade Federal de Minas Gerais, procura traçar uma genealogia do mito judaico, desde suas raízes bíblicas até seus desdobramentos na contemporaneidade e, principalmente, na literatura alemã. Para o pesquisador, Jakob Grimm, Clemens Brentano, Achim von Arnim, Annette von Droste-Hülshoff, Gustav Meyrink, Paul Celan e Jorge Luis Borges são alguns escritores responsáveis pela perpetuação da narrativa. Ele, então, delineia um perfil da literatura empenhado em recontar a lenda.
Para o ensaísta, um aspecto comum a todos os relatos que tratam do golem é o desejo de se igualar a Deus. A criação do boneco de barro, então, se relaciona com a criação dos humanos, com o relato de Adão e Eva. No entanto, essa tentativa é frustrada, uma vez que a criatura moldada – tanto na narrativa do Rabi Loew como em outras versões – não possui alma, ainda que, pelo menos em sua forma, se assemelhe a um humano. O espírito seria um elemento que poderia ser dado apenas pela graça divina.
De acordo com Cornelsen, a lenda sempre termina com a destruição do golem. Em seu romance,12 Gustav Meyrink apresenta um personagem que, para Gershom Scholem, «muito pouco deve à tradição judaica»,13 na medida em que, no texto, entretece-se uma ideia de redenção, e a Cabala que supostamente está no livro «sofre de uma dose excessiva de teosofia confusa de Madame Blavatsky».14 É, no entanto, esta a versão do mito com a qual Borges tem um primeiro contato e que o leva a escrever seu poema. Como sugere o ensaísta, «o longo caminho do Golem pela literatura significa, também, a sua transposição para outros mundos, atravessando mares, e chegando aos trópicos».15
No ensaio «O Golem, o Autômato e Frankenstein», Nazario apresenta um itinerário da narrativa do golem, que parte das tradições orais e místicas, passa pela literatura e pelo cinema e, finalmente, pela «realidade tecnológica cotidiana».16 Para o pesquisador, o mito judaico foi recombinado ou rearranjado com outras narrativas, outros mitos, de modo que, ao longo do tempo, se transformou radicalmente.
No cinema, a obsessão de Paul Wegener o faz gravar três filmes sobre o golem. No último e mais famoso destes, O Golem: como ele veio ao mundo, de 1920, o discurso antissemita é entretecido nas cenas, na medida em que Rabi Loew é retratado como um feiticeiro, um homem ligado à magia e ao sobrenatural, o que realça o imaginário antijudaico do qual o Nazismo se aproveita. Segundo o ensaísta, com o fim da Segunda Guerra Mundial, inicia-se um movimento de minimizar o caráter judeu do mito. Em uma produção de 1951, por exemplo, O padeiro e o imperador da China, Martin Fric retrata a procura do imperador Rodolfo II, um neurótico, por um golem, enquanto o padeiro Mateus o substitui em seu ofício.
Nazario identifica três linhagens de seres artificiais que se relacionam com o golem: a das «criaturas biomágicas», isto é, moldadas a partir de matéria inorgânica, como o barro, o mármore ou o esperma misturado à terra; a das «criaturas biomecânicas», como o autômato, que são formadas a partir de materiais como o aço, o ferro, a lata, o silício e o plástico; e as «criaturas bioelétromecânicas» que são «uma combinação de material inorgânico (metais, eletrodos) com material orgânico (pedaços de corpos, humanos ou animais)».17 De acordo com o pesquisador, o monstro criado pelo Dr. Frankenstein seria o representante mais proeminente desta última, sendo que suas diversas adaptações para o cinema, exaustivas, contribuiriam para a abstração do caráter judaico da narrativa. No mito criado por Shelley, permanece apenas um dos significados da lenda, «o descontrole das criações humanas»,18 e a defesa de uma população ameaçada ou a Cabala como exercício meditativo são elementos desconsiderados.
Em «O Golem e suas leituras tecnológicas», Alcebíades Diniz Miguel, doutor em Teoria e História Literária pela Universidade de Campinas, analisa o mito como linguagem, ou melhor, metalinguagem, e afirma que «explicar o mito, na maioria dos casos, significa ser absorvido por ele e propagá-lo por intermédio de uma nova leitura».19 Para o ensaísta, a permanência de um relato mitológico se dá por meio de suas leituras, releituras e interpretações.
Segundo Diniz Miguel, o Romantismo tem um papel relevante na propagação da narrativa do golem. O romance de Mary Shelley, Frankenstein,20 seria um exemplo de «uma extraordinária releitura».21 Também obras de ficção científica de escritores como Isaac Asimov, Harlam Elison e Philip Dick, teriam o relato judaico como uma espécie de precursor. Diferentemente de Shelley, porém, cujo monstro é feito de carne e osso, esses escritores trabalham com a tecnologia e a robótica.
O poema «Meu Golem», de Vlad Eugen Poenaru, artista plástico e professor de desenho na Universidade Federal de Minas Gerais, faz parte de sua exposição «República dos fazedores de golems», realizada em 2004 em Belo Horizonte. No texto, o eu-lírico aproxima personagens como Pigmaleão, Frankenstein, Drácula, Fausto, Ícaro e Rabi Loew, cujas narrativas – mitos (ou sonhos?) – foram reescritas ao longo dos séculos, assim como a do golem, «fênix de barro»22 que renasce sempre das cinzas. O eu-lírico se pergunta «Por que o Golem?»,23 e logo propõe uma resposta para a própria indagação: «Talvez por causa da simpatia que nós homens sentimos por nossa própria existência? Mísera situação, mísera existência humana».24
O artista-poeta aproxima sonhos e mitos, homens e golems, Deus e seres humanos. É o desejo de tornarem-se divinos que compele os homens a fazerem golems. Quando os sistemas e os poderes que deveriam manter a paz já não cumprem suas funções, canta o eu-lírico, «o homem comum volta a sonhar… ».25 Assim como Rabi Loew criou seu boneco de barro para salvar o gueto de Praga, o eu-lírico também sonha com uma «República dos fazedores de golems»,26 um mundo de criadores que trabalhem em prol dos oprimidos.
Cornelsen, Diniz Miguel, Nascimento, Nazario e Poenaru são, também, fazedores de golems. Assim como o gato de Borges, singelamente posicionado nos versos do poema, é sinal da contribuição do escritor para o arquivo – sempre em construção – do golem, também os ensaios da coletânea inscrevem os pesquisadores nessa tradição. O livro é fruto de um trabalho rigoroso e, definitivamente, uma grande contribuição não apenas para pesquisadores da cultura judaica, mas também para aqueles que se interessam e se dedicam ao tema do mito.
Notas e referências
1Lyslei Nascimento; Luiz Nazario (Org.), Os fazedores de golems. (Belo Horizonte: Caravana, 2021)
2 Jorge Luis Borges, «Formas de uma lenda», em Outras inquisições (São Paulo: Companhia das Letras, 2012a), 171.
3 BORGES, Outras inquisições, 171-172.
4 NASCIMENTO; NAZARIO, Os fazedores de golems, 13.
5 NASCIMENTO; NAZARIO, Os fazedores de golems, 14.
6 NASCIMENTO; NAZARIO, Os fazedores de golems, 14.
7 NASCIMENTO, Os fazedores de golems, 26.
8 NASCIMENTO, Os fazedores de golems, 33.
9 Jorge Luis Borges, «O golem», em Antologia pessoal (São Paulo: Companhia das Letras 2012b), 91.
10 NASCIMENTO, Os fazedores de golems, 32.
11 BORGES, Antologia pessoal, 93.
12 Gustav Meyrink, O golem. (São Paulo: Hemus, 2003).
13 SCHOLEM apud CORNELSEN, Os fazedores de golems, 74.
14 SCHOLEM apud CORNELSEN, Os fazedores de golems, 74.
15 CORNELSEN, Os fazedores de golems, 77.
16 NASCIMENTO; NAZARIO, Os fazedores de golems, 15.
17 NAZARIO, Os fazedores de golems, 94.
18 NAZARIO, Os fazedores de golems, 79.
19 DINIZ MIGUEL, Os fazedores de golems, 109.
20 Mary Shelley. Frankenstein. (São Paulo: Clássicos Zahar, 2017)
21 DINIZ MIGUEL, Os fazedores de golems, 114.
22 NASCIMENTO; NAZARIO, Os fazedores de golems, 16.
23 POENARU, Os fazedores de golems, 133.
24 POENARU, Os fazedores de golems, 133.
25 POENARU, Os fazedores de golems, 134.
26 POENARU, Os fazedores de golems, 134.
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