[revisão de Márcia Marto]
[fotografia de Armando Silva]
Quem deixou de subir a sua montanha? Que alturas deixámos de olhar?
No sopé da serra, cheiro o arroio juvenil, a ribeira que desce saltitante, afagando as fragas com desenhos de frescura. Insuflo o fulgor verdejante e a grácil altivez das pequenas flores, espevitadas para o alto Sol do meio-dia.
Inspirado, decido subir solenemente a alta montanha contra a força da gravidade. O desejo impregna a minha musculatura. Arrasto-me para abandonar a planície. Deixo a agricultura de onde tiro o proveitoso sustento. O tempo das estações é lento e de espera. Poderei ir e voltar sem que se dê pela minha falta. Abandono o cultivo para subir ao monte sem olhar de volta. Não me tornarei uma estátua de sal por olhar para trás arrependido. Busco só o que está adiante: o santo tempero de tudo o que é passageiro.
A cada passo que dou para o alto o tempo é mais vagaroso. Na subida, a respiração abranda como que sorvendo os raios de Sol. E estes percorrem o corpo até se libertarem num suor frio, fruto da imersão do homem na vida de contrastes e tensões.
Na planície deixei a eternidade dos ciclos repetidos e os trabalhos do homem que é escravo da terra. Subo para encontrar o meu tempo. O Profeta, só depois de encontrar o seu tempo e o seu tempero, fala de coisas eternas, mundanas, históricas, enredos iterados e vórtices miméticos. Os profetas sobem às montanhas para falar com o divino Presente. Daí veem o passado e o futuro ou o futuro como passado. Do alto veem a maquinaria viciada que opera na planície: veem rodas dentadas, enfileiradas, umas empurrando as outras. E, no instante, não querem voltar a descer.
Vivi sempre na sombra da montanha sem sequer lhe ambicionar o cume. O que posso encontrar no alto? O que quero lá encontrar?
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Na minha jornada eu nada vi para além do carreiro que se formava debaixo dos meus pés. Só interrompi o andar para o alto quando uma formiga atravessou o meu caminho. E essa formiga foi cumprimentar uma outra com cortesia. De que assunto conversaram as comadres? Não foi sobre migalhas, pois quem é pequeno só pode falar de coisas grandes. Estou certo de que se ocuparam de metafísica fundamental. E quando têm vagar sacodem a sua teologia do florescimento, levando para as suas tocas toda a cosmologia que importa.
A formiga tem tanto do alto como do baixo. Caminhando no seu tempo vai esburacar a eternidade dormente da terra. Lá cabem grandes vazios ou todos os vazios que importam caber — o tempo inteiro de um sossego.
A grande formiga sai da luz e vai acariciar a treva. Cava como se abraçasse o profundo, o húmus de raízes e esquecimentos. Sabe que quem só vê o alto para cima, nem vê, nem conhece a altura. Pois foi o alto mar de Neptuno que o profeta Jonas, na barriga da baleia, quis conhecer. É a tenebrosidade experimentada que solta a língua, o dantesco pulsar tectónico, o gutural canto da terra.
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E eis-nos chegados ao nosso destino: o cume da montanha. Vimos um olival. As árvores tinham todo o ar de terem ouvido um sermão. Um daqueles sermões cristalinos que só se podem dar em montanhas. As oliveiras enrugadas davam fruto. Colhia-o um mendicante, um profeta ou um deus velho que ali estava. E deste fruto faz-se o azeite que alimenta a candeia com que os sacerdotes iluminam a noite. E num repente, os milhares de anos das oliveiras desapareceram e vi-as na semente. Vi o princípio de tudo isso! Contemplei a aurora do mundo e quase desmaiei.
Nesse dia eterno, passado e sempre passando, o pesado deus Posídon arrastou o seu tridente até à terra. Bateu-o com gravidade e daí jorrou uma fonte de água salgada. Causou espanto, alguns arco-íris vieram coroar o momento como profecia de uma aliança futura com as coisas do alto. Rivalizando com este deus, todo desenhado a robustez e força, vigor e poder, veio a deusa Atena, sábia e estratega, tocar aquela terra com cautela. Ajoelhou-se, como é próprio de quem é elevado, e plantou um raminho. Esse frágil início tornou-se Oliveira. Depois, prolongando as suas delicadezas, a deusa revelou a alquimia que transformava bagas encaroçadas num líquido da cor do Olimpo, sua casa celeste. E os humanos, a contragosto, olharam aquele esforçado trabalho, mas renderam-se aos préstimos do pacífico líquido oirado. Louvaram o azeite e desprezaram a fonte de Posídon por nela não encontrarem qualquer serventia.
Assim vieram os deuses comprar os humanos com presentes. Posídon esqueceu que a eternidade humana, ciclo que inclui todo o tempo, só pode escolher o útil, pois a continuidade pede prudência. Só o presente intemporal desfruta da inutilidade. Em troca das talhas de azeite que iluminavam a noite, todos decidiram chamar àquela terra Atenas, em homenagem à deusa adorada.
Posídon regressou pesaroso e derrotado à sua mansão aquosa. O mar abriu-se à sua entrada, as ondas inverteram-se, viram-se trombas de água e tempestade, tombou de face para o alto mar e no profundo oceano desapareceu durante vários anos.
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Em Atenas louva-se a civilização, virgindade eternamente ofendida. Há quem não tenha esquecido a fonte da qual não se pode beber. E a ela prestam culto os hereges da cidade: louvam o divino mistério de preferir o presente ao eterno, a mortalidade à contínua repetição, a inutilidade à prudência.
Atena regressou ao alto monte Olimpo, Posídon ao alto mar. A primeira é louvada, o segundo (quase) esquecido. Mas este é o destino de todos os deuses: vivem na memória de cobradores do lucro material ou num (quase) esquecimento quotidiano como paisagem distante!
Os homens, depois de aborrecidos com o útil presente de Atena e cansados da mesmidade da planície, voltaram a subir às montanhas. E voltaram a falar com Deus, que era já um só até lhe descobrirem mais faces. Mas ao subirem deixaram-se ficar, em parte, presos na planície. Queriam, por um lado, ter o juro a render na terra rica e, por outro, inutilidades só para descanso do seu vazio de engrenagem. Contudo: não se pode servir a dois senhores/deuses — a água e o azeite não se unem!
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Para o caminho divino busque-se o monte ou abram-se os mares. Ou descubra-se a travessia calma entre os lírios. Cercado pela brisa que penteia o trigo, canto agora a alta semelhança com Deus: ego sum qui sum! Sou o que sou, incomparavelmente, sem saber o que sou. E danço na fonte salgada, ungindo a cabeça e os pés com o presente da deusa. Acordei estremunhado, mas inteiro.