Ventos da Herança, Geraldo Cebola João Lucas

[Revisto por Márcia Marto]

Pelo ponteiro do relógio se via que eram 3 horas da manhã. A paisagem estava geometricamente coberta de cacimba. Os cânticos do galo soavam de forma encravada e titubeante, o que talvez se devesse à violência do frio. A luz da lua, afogada pelo cinzento da cacimba, forçada a abandonar o comando da madrugada, despia-se tristonha do planalto de Chimoio. Era um Julho que nos remetia, analogicamente, às experiências frígidas do Alaska e Sibéria. Chimoio parecia uma bolsa territorial dos extremos polares situada em Moçambique.

A rapariga estava trémula e mergulhada em calor. As febres eram altas. Quando se colocou o termómetro na varanda do seu sovaco, este não resistiu e foi rebentado com o fogo da febre. Até parecia que o sovaco era o útero da doença. Eu, os irmãos dela e minha esposa, estávamos sem norte e vertiginosamente atrapalhados.

Rudo rugia de dor. Os sintomas agrediam-na. Os lábios estavam trémulos. A pele ganhava coloração agressiva. O nariz, já avermelhado, despia ranho aguado. Minha filha se parecia com outro ser… um ser zoológico desses jardins jurássicos; uma dessas espécies em recrudescido risco de extinção. O corpo todo se mexia. O cabelo e os olhos estavam dançantes. Minha esposa estava inconsolável pelo ataque que a filha sofria. Nenhum de nós conseguia pegar num celular e ligar para convocar a ambulância. Cambaleei para a casa vizinha e noticiei em soluços o tamanho da desgraça que incendiava a minha família.

Chimoio começou a chover. Em toda a região chovia ininterruptamente. As estradas e os caminhos que davam acesso à nossa casa e à cidade no seu todo estavam terrivelmente inundados. O vizinho fez o esforço de levar a rapariga para o Hospital Provincial de Manica. Pelo percurso, Rudo foi rebolando e gritando de dor ardente. Evocava os nomes da mãe e do pai. A dado momento começou a chamar por nossos apelidos. O estado dela parecia transcendente; a rapariga começou por falar de coisas que ela não testemunhara em vida, pois eram acontecimentos do meu passado.

Já à beira do hospital, Rudo mudou de face e voz. Ganhou uma voz masculina e sua cara transfigurou-se, ganhando traços com carregados ditames masculinos de um antepassado de cerca de 80 anos. De seguida, deixou de falar português e começou a se expressar em shona, língua do centro de Moçambique. Falava de coisas pentecostais, coisas assustadoras! Expelia segredos fantasmagóricos lá das entranhas das origens paternas; lá da Serra Shôa, das abensonhadas terras de Catandica; lá dos macombes de Báruè.

O personagem incarnado em Rudo, sob aspecto intimidatório e autoridade de juiz, perguntava se tínhamos certeza de que o hospital curaria a enfermidade. Quando colocámos Rudo fora do carro para levá-la à consulta médica, a rapariga conquistou forças e sacudiu-me para o chão. Quando o meu vizinho pretendeu reduzir a distância para me socorrer, também sofreu um empurrão com a força de um tufão. Duas serventes que se prontificaram a  ajudar, também foram sacudidas tempestuosamente pelo personagem.

A rapariga estava intocável como brasa vulcânica. Foi preciso o reforço dos guardas policiais do hospital para assegurar Rudo. A minha bonequinha foi algemada nos braços e pés e depositada na fila de espera do banco de socorros. A pequena Rudo ainda estava distante do estado de calma humana. Seu sangue foi enviado para o laboratório e nada se constatou de doença. Como receita médica, Rudo só recebeu calmantes.

Abandonámos o local de curas convencionais com preocupação avultada e nos dirigimos para a região de Vanduzi. Era urgente encontrar um médico tradicional que pudesse desvendar o mistério. De Chimoio a vila de Vanduzi, Rudo estava relativamente calma, mas ainda possessa. A chuva emitia sinais de abrandamento, mas todo o alcatrão da via encontrava-se ensopado de águas.  A viatura que usámos ia roncando como um leão masculino abatido pela raiva do sono. Os eucaliptos centenários ofereciam um ar refinado pelo enigma da natureza.

Munozwi, advinho reconhecido da região de Vanduzi, recebeu-nos hospitaleiramente. Entrámos no interior duma cabana redonda, a sala de consultas Munozwi. Rudo rebentou as algemas logo que entrámos na cabana. O espírito voltou a falar em shona e com o mesmo timbre de voz assustador e desconhecido.

– Quem és tu? E o que queres? – Indagou Munozwi ao antepassado incarnado.

– Eu sou Macombendine, avô paterno da rapariga. Quero 10 mil meticais e 100 cabeças de gado.– Sentenciou o antepassado.

– Queres isso em quanto tempo? –  Perguntou Munozwi.

–  Um mês apenas. – Precisou o antepassado.

–  Porque queres tudo isso? – Interrogou Munozwi.

–  Antes de eu morrer, tinha cerca de 300 mil cabeças de gado, 4 carros de campo, 13 farmas e mais outras herdades. O meu corpo de defunto ainda estava dentro de casa quando começaram as discussões sobre a divisão das minhas propriedades. O avô desta rapariga era meu irmão mais velho e pai do seu pai. Antes de eu ser enterrado, meus irmãos dividiram minhas propriedades e deixaram apenas duas fazendas para meus filhos. Para mais, o avô desta rapariga acabou se amantizando com minha esposa, viúva na altura, antes de completar uma semana do meu enterro. Nas vésperas do meu funeral, presenciei as discussões e divisões injustas! Tive vontade de responder e mandar para fora da minha casa todos os presentes e oportunistas, mas não tinha como porque, na verdade, eu estava morto, embora meu espírito e alma estivessem activos a escutar e acompanhar as cerimónias. Agora, muitos anos depois, estou a punir todos os que me faltaram ao respeito e desgraçaram minha família. Eu sou Macombendine.

– Como é que queres que seja feita a entrega? – Apresentou a dúvida Munozwi.

– Vocês podem levar o dinheiro todo e atirá-lo nas águas do rio Púnguè numa madrugada de quinta feira. Mas antes devem matar um cabrito macho e regar o dinheiro com o seu sangue. A carne não deve ser consumida por ninguém, (muito menos por animais como cães) e deverá ser enterrada. O gado deve ser levado nas entranhas da noite e deixado no monte Binga, sem anunciar para ninguém.

Depois do antepassado ter explicado os porquês do ataque à Rudo e apresentado o cardápio das suas exigências, desapareceu do seu corpo e esta caiu sem forças, inerte como uma mochila militar cujo dono tenha se divorciado dela em pleno combate.

Munozwi administrou uma série de ervas para tomar e orientou um banho caseiro à rapariga. Tempo depois, Rudo voltou ao seu normal estado. Já sorria e falava sob comando da sua própria consciência.