[Revisto por Márcia Marto]
Este artigo centra sua discussão na peça Os encantos de Medeia, escrita pelo dramaturgo Antônio José da Silva e representada no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, Portugal, em 1735. Antônio José, também chamado “o Judeu”, nasceu no Rio de Janeiro em 1705 e mudou-se para Lisboa com a família aos sete anos, lá permanecendo até sua morte, em 1758. Foi vítima do Santo Ofício da Inquisição, julgado por judaizante, de onde vem sua alcunha. Deixou oito “óperas joco-sérias” de autoria incontestável, todas representadas no Teatro do Bairro Alto na década de 1730, dentre as quais consta Os encantos de Medeia.
O texto dramático busca referências ao mito grego da “bárbara feiticeira”2 Medeia, cuja extensa mitologia conta com diversas histórias e cruza a de diversos heróis, como Jasão, Egeu e Teseu. Há a presença de Medeia em compêndios mitológicos clássicos, como nas Metamorfoses de Ovídio (8 d. C. ), nas Fábulas de Higino (século I d. C. ) e na Biblioteca de Apolodoro (século I d. C. ), além de textos narrativos como Os argonautas, de Apolônio de Rodes (século III a. C. ) e peças teatrais, como as tragédias de Eurípides (431 a. C. ) e de Sêneca (41 d. C. ) ambas intituladas Medeia. Na maior parte das vezes, como não pode deixar de ser no mundo antigo, a personagem é acompanhada na dramatis personae por Jasão, que participa como herói de dois dos quatro ciclos “medeicos”3. Especificamente Os encantos de Medeia lança mão da primeira parte da história da personagem, quando Jasão vai à Cólquida buscar o Velocino de Ouro, Medeia se apaixona por ele e os dois fogem levando consigo o tesouro.
Ao tratarmos do teatro de cariz mitológico escrito por Antônio José da Silva, não podemos deixar de considerar duas questões importantes. A primeira dela diz respeito à releitura de mitos gregos, que segue uma linha de raciocínio representada, na Península Ibérica, principalmente por Pérez de Moya (Philosofia secreta de la gentilidad, de 1585) e Baltazar de Vitoria (Teatro de los dioses de la gentilidad, de 1676): são os “Ovídios moralizados”. Assim, a mitologia grega é utilizada na escrita literária com o sentido de ornamento4 – motivo pelo qual dizemos que Antônio José altera os acontecimentos das narrações mitológicas, transformando a história de Medeia em comédia (Os encantos de Medeia, de 1735), a de Teseu numa história de amor (O labirinto de Creta, de 1736) ou a de Anfitrião em comédia de costumes (Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, de 1736).
Além disso, resta dizer que o dramaturgo português escrevia para um teatro dito “comercial”5 e que ao público popular setecentista lisboeta ainda agradavam muito as comédias espanholas do Século de Ouro (século XVII). Assim, não é possível falar das peças mitológicas de Antônio José sem passar pelas releituras espanholas do mesmo mito, no caso, Lope de Vega, Calderón de la Barca e Francisco Rojas, que tiveram grande circulação em Portugal mesmo após a Restauração, em 1640. 6
Um Jasão ibérico
Se o caráter de Medeia é amplamente explorado por autores desde a Antiguidade clássica (GONTIJO ROSA, 2013), a personagem Jasão, central em vários mitos, é escassamente descrita de acordo com os nossos padrões para caracterização de uma personagem.7 Sua trajetória na mitologia grega segue, em grande parte, a de Medeia, desde a chegada à Cólquida até ao assassínio dos filhos. Mas Jasão, bem como Medeia, tem uma história para além desta. Ele é filho de Éson e um cidadão da Tessália, que vive junto ao pai, mãe e irmão, exilados por uma disputa familiar ao trono tessálio entre seu pai e Pélias.
Pélias, já rei, recebe uma profecia que, grosso modo, diz que ele seria morto por Jasão.8 Cria, portanto, a prova da busca do carneiro de ouro,9 com a intenção de que o herói morra na empresa. Durante todo o trajeto da nau Argos até a Cólquida, contado nos cantos I e II do poema épico Os Argonautas, embora seja o empreendedor e o comandante do grupo, Jasão tem pouca participação efetiva e seu caráter é descrito de maneira genérica. Por vezes, temos a impressão de que Jasão serve à obra como o modelo ideal de herói, cumpridor de todos os deveres de um bom cidadão, dos deveres religiosos, de hospedagem, de comando e de vida social grega do período; mas sem qualquer hybris ou outro excesso que possa ser malvisto pelos deuses. E então temos seu encontro com Medeia.
Após ser deixado por Medeia, em Corinto, sua história é pouco lembrada,10 justamente pelo caráter completamente banal que adquire, levando-nos a crer que sua heroicidade e o destaque que adquire na mitologia grega deve-se, sobremaneira, em comparação às outras personagens hybrizontes11que atravessam o seu destino.
Ele é tido como um bom herói, temente aos deuses e cumpridor dos ritos e das atribuições de sua posição de príncipe e herói. Mas, em alguma medida, sua temeridade e precaução extrapolam o sentido de cuidado e, no mito e na fábula do dramaturgo português Antônio José da Silva, o Judeu, esbarram a covardia,12 que pode ser explorada na constituição de um caráter – especialmente num que possa ter traços cômicos, como é o caso em Os Encantos de Medeia.
Através desta personagem, podemos explorar o mundo da mentira e ilusão enganadora – le monde du mensonge et de l’illusion trompeuse – que Pierre Furter aponta acerca das óperas de Antônio José.
Na peça do Judeu, Jasão é um mentiroso nato, como pode ser visto logo nas primeiras cenas. É explicitado, na primeira ária cantada por Jasão – à guisa de exposição13 –, o real motivo de sua expedição até Colcos:
Jason14 (Recitado)
Felices argonautas valerosos,
que rompendo o cristal do falso argento,
apesar das violências de Neptuno
indignado e soberbo,
aportámos enfim com fausto auspício
nesta ínclita Colcos soberana,
onde se guarda o célebre tesouro
do áureo Velocino, a cuja empresa
de nossa amada Pátria nos partimos;
e se quisera a sorte
que com feliz progresso conquistasse
este rico despojo
para glória imortal da grega prole!
[. . . ]
Ária
Não vos mova nesta empresa
nem o áureo Velocino,
nem de Colcos a riqueza;
seja só vosso destino
a cobiça do valor,
que num peito que se inflama
por ganhar eterna fama,
o vencer é o bem maior (SILVA, 1957, p. 7-8).
Ao fim desta, no entanto, entra o enviado colco Telemon, a quem Jasão, duas réplicas depois, diz: “Jason: Valeroso soldado, dizei ao vosso Rei que a minha vinda a este porto foi casual, por impulso de uma grande tormenta e tempestade; e assim lhe segurai que venho de paz e que pessoalmente irei à sua presença oferecer-me ao seu serviço.” (SILVA, 1957, p. 9).
Além disso, reafirmando15 – caso o público ainda esteja em dúvida quanto à índole da personagem –, Jasão mente também na segunda cena. Não apenas uma mentira súbita, como a dita ao emissário, mas uma história elaborada, intencional de quem pretende enganar deliberadamente:
Jason: Como não ignorais, Senhor, as guerras que há entre os reis de Creta e Corinto, por ganhar fama e exercitar-me nas armas saí com esta armada, para socorrer a El-Rei de Corinto, tanto pela obrigação de parentesco, como porque a fortuna se lhe vai mostrando adversa; e assim é necessário suspender o impulso da sua roda com o peso das minhas armas, pois ajudar aos que persegue a fortuna sempre foi brasão dos reis da Tessália, e uma grande tempestade me precisou a arribar a este porto; mas agora vejo que há tempestades que são bonanças.
Sacatrapo: Arre lá, como mente tão airoso, e nas bochechas de um rei! (à parte) (SILVA, 1957, p. 13).
Sacatrapo, em sua fala, expõe uma importante característica do caráter de Jasão, que estará presente em toda a peça e que corrobora a teoria de Furter: a mentira, o engano deliberado, como pode ser visto no trecho seguinte: “Os heróis de A. J. da Silva frequentemente feitos da mesma matéria que Jasão, que é o típico mentiroso que não tem medo de deliberadamente reafirmar seu perjúrio16” (FURTER, 1964, p. 65).
Esta é, por si, uma potencialização daquilo que podemos encontrar na épica clássica que narra as aventuras de Jasão. Em Os Argonautas, ele precisa jurar o seu amor a Medeia várias vezes, inclusive com testemunhas, para apaziguar o coração da jovem17. Mais interessante se pensarmos que a paixão de Medeia foi provocada por Eros (RODES, III, 275-287), mas o amor que Jasão diz sentir (RODES, IV, 92-98) é fruto de sua própria pessoa:
el corazón del Esónida mucho se alegraba. Y al punto a ella [Medeia], que estaba postrada a sus rodillas, alzándola suavemente, le habló con ternura y la animó:
“Infeliz, que el propio Zeus Olímpico sea testigo del juramento y Hera Conyugal, esposa de Zeus: de veras te instalaré en mi morada como legítima esposa, cuando lleguemos de regreso a la tierra de la Hélade”18.
Assim como na fala do narrador, teoricamente onisciente, de Apolônio: “No deseaba el héroe Esónida celebrar su boda en el país de Alcínoo [Esquéria, terra dos feácios], sino en el palacio de su padre tras volver a Yolco de regreso. Así lo esperaba también la propia Medea” (RODES, IV, 1160-1164).
Higino, nas Fábulas, pelo contrário, narra que “por incitação de Vênus, Jasão se apaixonou por Medeia”19 (HYGINUS, XXII). Neste caso, poderíamos entender as ações enganadoras de Jasão como sua própria vontade, em contraposição à vontade divina.20 No mythos contado por Antônio José, Apolônio de Rodes ou mesmo por Eurípides (Medeia), não há qualquer indício de um deus agindo na vontade do herói.
Em Os Encantos de Medeia, as tramas heroicas são transformadas pelo Judeu em intrigas amorosas (GONTIJO ROSA, 2019). Assim, o desejo de Jasão pelo velocino é confundido por amor a Medeia, sendo a feiticeira apenas um meio para a conquista do seu verdadeiro objeto de interesse. Quando consegue o velocino, Medeia passa a ser um transtorno aos seus planos futuros. Jasão sabe, desde o início, que seu amor por Creúsa supera o que sente por Medeia21 e mantém a mentira até ter o Velocino em segurança. Na cena V da parte I, em que Jasão mata o dragão e consegue o carneiro com a ajuda de Medeia, ainda sustenta sua falsidade:
Jason: Medeia, não sei com que te hei-de gratificar tantas finezas, quantas por mim tens feito. Sacatrapo, não deixes ficar o Velocino. (à parte).
Medeia: Adorado Jason, se já conheces o meu amor, peço-te que não sejas ingrato a tantos extremos.
Jason: De que sorte queres que te segure a minha constância?
Medeia: Com a mesma constância com que meu peito te adora.
Jason: Assim o prometo.
Medeia: Ditosa já me posso chamar com tal ventura.
Jason: E eu feliz. Ai, Creúsa, quando verdadeiramente sem sustos descansarei em teus braços? Pois só tu me roubaste os meus sentidos! Sacatrapo, leva o Velocino; não o deixes! (à parte).
[. . . ]
Medeia: Ai, Jason, dize-me: estarei certa na tua promessa?
Jason: Vive descansada, Medeia, que não faltarei à minha palavra (SILVA, 1957, p. 40-41, grifo nosso)
Não é o pathos de Medeia que desencadeia a ação trágica da peça de Antônio José, mas as mentiras de Jasão. O caráter de Medeia é apresentado como irascível desde o início. É a ilusão que Jasão engendra para conquistar o velocino, associada, evidentemente, aos caracteres envolvidos na ação, que desencadeia a catástrofe da peça. Um exemplo desse fato é quando Arpia tenta extrair de Jasão uma declaração de amor por Medeia (parte I, cena III):
Arpia: Ora, Senhor, nós, as velhas, sempre somos curiosas de saber. Não me dirá que lhe tem parecido esta terra?
Jason: Por certo que é uma grande Corte, e bastava ser oriente de tantos sóis, quantos nela resplandecem.
Arpia: Não há dúvida que o da Senhora Medeia excede a todos os astros.
Sacatrapo: Que fora, se ele vira o sol da Índia!
Jason: Quem pode duvidar que minha Senhora Medeia é a Fénix da formosura?
Arpia: Certamente que estava aqui um bom casamento; porque ela é a herdeira deste reino, e vós, Senhor, também o sois do vosso, e tudo se podia ajuntar. E que lindos filhos teriam!
Jason: Se eu me não achara indigno dessa honra, talvez que a procurara; mas não quero incorrer na censura de Faetonte (SILVA, 1957, p. 19-20).
Nesta cena, até Arpia entende que Jasão está claramente sendo galante, mas no sentido de, com a sua esquiva, não ofender a Medeia, que, ouvindo tudo dos bastidores, na fala seguinte irrompe em cena e declara o seu amor por Jasão.
Ainda na peça Os Encantos de Medeia, a caracterização de Jasão como mentiroso e enganador não afeta a nossa visão do mesmo como herói, inclusivamente em falas como esta:
Medeia [embuçada]: [. . . ] E dize-me: Então há-de deixar a Medeia.
Sacatrapo [pensa que fala com Creúsa]: Porquê? Ele a pariu?
Medeia: Ainda assim parece ingratidão.
Sacatrapo: Qual ingratidão, Senhora? Não me quer crer? Ele nunca teve amor a Medeia.
Medeia: Pois quem o obriga a fazer tantos extremos por ela?
Sacatrapo: Nunca ouviu dizer que quem ama a Beltrão, ama o seu cão? Pois meu amo amava a Medeia por amor do Velocino; e, como este já o tem na mão, acabou-se o amor (SILVA, 1957, p. 60).
Graças à habilidade do Judeu em manejar os elementos e os diálogos, de forma a escamotear esta faceta do herói, sem, contudo, desprezá-la, criamos certa empatia pela personagem. Jasão – bem como outros protagonistas da dramaturgia do Judeu – justificam a sua mentira. Na primeira cena, o Esonida diz a Teseu o seguinte: “Jason: Teseu, enquanto descansam as armas, é preciso que peleje com astúcias o entendimento” (SILVA, 1957, p. 9).
Se tomarmos o texto de Baltasar de Vitória como representativo de uma coletânea do pensamento vigente, é significativa a afirmação:
Todos le condenan a Jason de ingrato, y assi lo pone Textor entre los ingratos: fuelo con Isifile, porque haviendole dado tanta buena acogida, y teniendo de ella dos hijos, nunca mas hizo caso de ella, con ser ellos lazadas, y ataduras, que suelen obligar a los mas ingratos. Fuelo con Medea, pues habiendo ella usado de tantas finezas con el, perdiendo padre, madre, hermano y Reyno, y haviendole sacado de las mayores dificultades, donde tenia jugada, y perdida la vida, de nada de esto se acordó para no dexar a la desdichada Medea(VITORIA, 1676, p. 295, grifo nosso).
Retomamos, portanto, à índole fraca e volúvel de Jasão, apresentada de forma direta na narrativa de Baltasar de Vitória, mas também presente, mesmo que de forma mascarada ou sutil, na ópera joco-séria de Antônio José e na narrativa de Apolônio de Rodes. Ao contrário, nos textos espanhóis de Lope de Vega e Calderón de la Barca, signatários das mesmas preceptivas do dramaturgo português, não é clara esta sutileza do caráter do herói, uma vez que, acreditamos, o imaginário destes autores encontra-se muito mais comprometido com o modelo de escrita tragicômico e com a afirmação de uma nobreza de espírito que seja representativa da própria nobreza espanhola.
Em El vellocino de oro, Lope de Vega apresenta-nos um galán nos seus moldes tradicionais. Galante, pronto a proferir finezas amorosas, discreto, linajudo,22 valente e generoso,23 Jasão está em conformidade com os preceitos heroicos do momento e com a monarquia reinante na Espanha. A atribuição de aspectos negativos ao caráter de Jasão, portanto, não seria coerente na lógica interna da ação da peça espanhola.
O Jasão lopesco apresenta poucas de suas características habituais, mesmo realizando basicamente o mesmo conjunto de ações que nas outras obras, sejam narrativas ou dramáticas. Se, nas obras clássicas ele é aquele herói prudente, sempre ponderado em relação às medidas a tomar em qualquer situação, chegando às vezes a sê-lo demasiado, nesta peça ele também é abrasado pelo amor que incendeia Medeia, a ponto de dizer a Teseu:
Jasón: Yo voy en él confiado,
pero más en quien adoro,
mayor vellocino de oro
si le llevo conquistado.
Y advierte, amigo Teseo,
que estén a punto las naves,
que con embates suaves
surquen el golfo a Nereo,
porque éste es menor trofeo
que llevar roubada a Grecia
la prenda que el alma precia
como más alto blasón,
por quien mi loca afición
hasta la vida desprecia (VEGA, 1999, v. 1948-1961).
Assim, Jasão é retratado pela Fénix como um verdadeiro apaixonado e sua busca não é pela conquista do velo, senão de Medeia. A fala conclusiva de Amor também corrobora uma visão mais otimista do futuro da relação entre Jasão e Medeia.
Amor: [. . . ] amor os corona, y quiere
mi madre, la hermosa Venus,
que por amantes dichosos
tengáis lugar en su templo;
y asistir a vuestras bodas
con Lucina e Himeneo,
para daros sucesión
que dure siglos eternos(VEGA, 1999, v. 2208-2215).
Já na Jornada Primera de Los tres mayores prodigios, de Calderón de la Barca, a personagem de Jasão tem pouca influência direta no enredo, sendo Medeia a protagonista absoluta da comedia famosa. Ele é um enamorado, que realiza todos os caprichos exigidos pela amada.
No texto de Apolônio de Rodes, Jasão não é dito ingrato, mentiroso ou covarde, mas a recepção da época de sua escrita, bem como no período de representação das tragédias gregas, conhecia de antemão todo o mito, ou seja, sabe-se que Jasão não cumprirá o juramento que faz no Canto III. Também no Canto IV, quando da morte de Apsirto, irmão de Medeia, o herói grego demonstra um caráter pouco ativo, pois é ela quem tem a ideia do assassinato e quem leva o irmão até ao local, sendo a parte de Jasão unicamente atacar Apsirto pelas costas, quando ele se encontra desarmado e distraído pela conversa da irmã.
Acreditamos que a pouca valentia de Jasão tem efeito redobrado no receptor de Os Argonautas porque, como já dito, o seu mito faz parte do conhecimento popular e não pode ser simplesmente esquecido ao se contar uma história a partir de um novo ponto de vista. Apolônio não estabelece um outro procedimento para Jasão quando chega a Corinto com Medeia. O autor conta o início do mito de forma diferente, mas deixa a restante história inalterada.
Já no Teatro de los dioses de la gentilidad, Baltasar de Vitoria acrescenta uma carta atribuída a Hipsípila e endereçada a Jasão:
“Adonde está la fé? Do la promessa?
Tus juramentos donde se ausentaron?
Tu palabra, Jason, tan poco pesa?
Adonde están las hachas que alumbraron
En mi vida, alumbrarán en mi entierro?
Mejor, pues, viva entonces me enterráran”.
Y mas adelante se quexa de las palabras mal cumpridas que le dio, diciendo:
“Mobilis Aesonide, vernaque incertior aura.
Cur tua polliciti pondere verba carent?
Ay, Jasón, mas mudable que los ríos,
Mas leve que es el viento de Verano!
Por qué tus labios son de fè vacios?” (VITORIA, 1676, p. 296)
De todos aqueles que se debruçaram sobre o mito de Medeia e Jasão neste período, Frei Baltasar é o mais impiedoso com a personagem de Jasão, denunciando os seus enganos, ao invés de justificá-los, como fazem os outros autores.
Por exemplo, em El vellocino de oro, Jasão mente; o que poderia levar, numa análise superficial deste texto, a uma caracterização da personagem como o covarde e mentiroso que transparece na peça de Antônio José da Silva e na versão de Baltasar de Vitoria. No entanto, o héroe lopesco, diferentemente dos textos de Vitoria e Antônio José, se enquadra no tipo estabelecido por Prades (1963, p. 251), especialmente no que se refere ao seu eterno enamoramento pela dama de sua predileção, além de valiente y generoso. Igualmente a discreción, evidente na personagem de Jasão de El vellocino de oro.
Engañóme el amor mío,
que de vuestro amor me informa,
no la necia confianza
que a los que lo son provoca:
perdonadme, y estad cierta
de quien tan loco os adora,
que os sabré vengar de mí
con más rigor que vos propia;
porque al rígido dragón,
sin armas que me socorran,
me echaré desesperado (VEGA, 1999, v. 1626-1636).
Mas, voltando ao assunto: Jasão mente. Ele omite do Rei Oetas que o seu intento sempre foi desposar Medeia. Mas, se mente, é para se manter fiel ao próprio tipo de galán-herói. Ele é enganado por Fineu,24 o segundo galán, que também possui as características apresentadas para esta personagem-tipo, mas representadas de forma negativa em El vellocino. Esse Jasão não está, portanto, exatamente de acordo com a caracterização até agora vigente sobre a personagem mítica.
Antônio José, embora caracterize o herói como um mentiroso, cria no espectador a sensação de que Jasão seria uma personagem mais nobre do que realmente é. O dramaturgo estabelece outra lógica dentro da peça, o mundo às avessas, mas que não resiste a uma avaliação exterior. Mais do que isso: por diversas vezes, Jasão – e as demais personagens da peça – projetam em Medeia a culpa de tudo, como se ela tivesse que ajudar Jasão e depois permanecer plácida frente à quebra da promessa. Como no recitado da ária25 que Jasão canta a Creúsa:
Não duvides, amor, desta constância,
pois com firme jactância
te adoro de tal sorte,
que sem temer a morte
dessa Medeia bárbara, homicida,
não duvido entregar-te a própria vida (SILVA, 1957, p. 69, grifo nosso).
Ainda na cena III da parte I, Jasão começa um solilóquio26 em que legitima o engano que pretende causar voluntariamente, a fim de conquistar os seus objetivos na viagem:
Jason: Eu estou confuso!
Sacatrapo: Pois faça o siso.
Jason: Medeia, ao mesmo tempo que se mostra extremosa, me ameaça com tantas iras! Bem aviado estou eu, se me descuidar em adorá-la; mas como pode o meu amor deixar de ter descuidos, se em Creúsa tenho todo o meu cuidado? Bem sei que Medeia é uma estrela; mas, se vejo que Creúsa é o Sol, antes hei-de seguir os raios deste, que os resplendores daquela. Quem me mandou a mim prometer ser seu esposo? Ó deuses, que fiz eu27?
Sacatrapo: Fez uma asneira.
Jason: Mas ai, que alguém me ouviu! Seria Medeia? Quero ver se aqui está alguém. Seria ilusão do entendimento: se Medeia me promete dar o Velocino, único objeto da minha empresa, seria ignorância perder esta ocasião; mas muito maior covardia será violar a inclinação que tenho a Creúsa, pela ambição de ganhar o Velocino (SILVA, 1957, p. 22-23, grifo nosso).
No primeiro grifo da citação acima, Jasão se interroga da promessa que fez. Com esta pergunta retórica, passa a impressão de uma personagem justa, que cedeu aos impulsos por influência, talvez, até do próprio impetus de Medeia. Ou pelo menos esta é uma justificativa que soa plausível, dada a trajetória de Jasão na peça. Já no segundo grifo, outra vez ele busca legitimar as mentiras que se prepara para aplicar em Medeia. Dentro da estrutura da peça – os excessos de Medeia, a docilidade de Creúsa, a “aura” heroica do próprio Jasão, o discurso e as cenas cômicas de Sacatrapo, que amenizam os atos de seu patrão –, a personagem é reconhecida como herói pelo referencial dos outros caracteres e das situações em que o autor a coloca.
Ao final da cena III da parte I, Sacatrapo canta a Creúsa a seguinte ária:
É o amor que uma alma engole
sabão mole;
pois com ele quem se esfrega,
cabra-cega,
escorrega,
cai aqui, cai acolá.
Assim uma alma namorada,
esfregada,
ensaboada,
que tropeços não fará! (SILVA, 1957, p. 28)
Também nesta ária, embora há muito Jasão tenha saído de cena (há 15 réplicas, uma ária e um recitado), há uma desculpa plausível para a desonestidade de Jasão com Medeia; os deslizes de uma alma enamorada são perdoáveis pelos intentos28, como o golpe baixo que Jasão deu em Medeia, na sua próxima entrada, na cena IV da parte I:
(sai Jason)
Jason: Belíssima Medeia, como todo o meu alívio consiste em ver-te, não estranhes os excessos do meu amor.
Medeia: Se tu me adoras, não vendas por fineza o que é obrigação de quem ama. Ai, Jason, se serão verdadeiros os teus extremos!
Jason: Medeia, em um peito nobre não cabem afetos fingidos; antes cuido que os fingimentos estão da tua parte.
Medeia: Muito me escandalizas. Dizes isso deveras?
Jason: Quase estava para dizer que sim.
Medeia: Que motivo tens para isso?
Jason: Bem sabes que tenho gosto de ver o Velocino de ouro, só para admirar este prodígio da natureza; e, contudo, não tenho merecido esse favor, podendo-mo tu fazê-lo, e quem ama verdadeiramente procura sempre dar gosto ao seu amante.
Medeia: Se essa é a queixa que tens de mim, verás como depressa te satisfaço (SILVA, 1957, p. 31, grifo nosso).
Quando Medeia finalmente descobre que Jasão não a ama e planeja fugir com Creúsa, no final da cena III da parte II, as personagens cantam uma ária a duo em que o dramaturgo se aproveita do caráter inflamado de Medeia para que Jasão vença a disputa de argumentos29:
Medeia: Traidor, ingrato amante,
mudável, inconstante,
suspende o teu desvio.
Jason: Oh, deixa-me; não queiras
tirar-me a liberdade,
que é livre o alvedrio.
Medeia: Pois sabe que há vingança,
que oprima uma mudança.
Jason: Não teme os teus rigores
quem busca em seus ardores
mais belo resplendor.
Medeia: Pois, bárbaro, perjuro,
verás o meu rigor.
Medeia: Tu com zelos me atormentas.
Jason: Tu com mágicas me violentas.
Medeia: Cal-te, ingrato.
Jason: Cessa, impia.
Medeia: Por que em ódio.
Jason: Em tirania.
Ambos: Se converta o meu amor (SILVA, 1957, p. 71, grifo nosso).
Jasão usa um argumento que emula a religiosidade setecentista para livrar-se da promessa que fez a Medeia,30 enquanto esta apenas mantém o mesmo registro argumentativo desde o início da peça.
Assim, por encontrarmos referente à caracterização vista em Antônio José da Silva apenas no Ovídio moralizado de Baltazar de Vitoria, bem como a proximidade da data de ambos e a certeza da circulação do livro de Vitoria em Lisboa no início do século XVIII, somos levados a crer que Antônio José, de alguma forma, teve contato com a narrativa espanhola. Da mesma forma, a constituição característica de Jasão, suas representações ao longo da literatura ocidental clássica e ibérica, correspondem a um projeto literário próprio de cada período e autor, mas o fazem sem que a personagem perca sua essência – mesmo que esta essência varie de tonalidade a cada produção.
NOTAS
1. O presente artigo é parte da pesquisa realizada para a elaboração da Tese de Doutorado Antônio José da Silva: uma dramaturgia de convenções, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da FFLCH/USP em 2017. A pesquisa foi financiada pela FAPESP e CAPES. Prévia deste artigo foi apresentada no “Colóquio Internacional António José da Silva, o Judeu 310 anos”, no Museu Nacional do Teatro, Lisboa, Portugal, em fevereiro de 2015.
2. Vale lembrar que o olhar sobre a mulher é muito diferente na Grécia Antiga, berço do mito; nos séculos XVII e XVIII, objeto desta pesquisa; e no século XXI. No Brasil, particularmente, a história foi recontada com grande difusão por Chico Buarque na peça Gota d’água, de 1975.
3. Grosso modo, a narrativa da vida de Medeia pode ser dividida em quatro ciclos: 1) o Velocino de Ouro, quando se apaixona por Jasão e foge com ele da sua cidade-natal (tema dos cantos III e IV de Os argonautas); 2) sua chegada à Grécia, a traição de Jasão e a morte dos filhos (enredo das peças de Eurípides e Sêneca; 3) seu refúgio em Atenas, o casamento com o Rei Egeu e a tentativa de assassinato de Perseu; e 4) a volta à Cólquida, com o filho que teve com Egeu, Medo, e a reconquista do trono do pai (Rei Etes).
4. Veja-se, a título de exemplo, o que diz o Aval Inquisitorial para a publicação de Os lusíadas, de Luís de Camões (2000, p. XXXV), em 1572: “não achey nelles cousa algũa escandalosa, nem contraria â fe & bõs custumes [. . . ] Toda via como isto he Poesia & fingimento, & o Autor como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poetico não tiuemos por inconueniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por tal. & ficando sempre salua a verdade de nossa sancta fe, que todos os Deoses dos Gẽtios sam Demonios.”
5. Utilizamos o termo no mesmo sentido em que o emprega Doménech Rico (2008, p. 356): “En un teatro comercial, como era el del Silgo de Oro, es necesario introducir ligeros, pero muy perceptibles, cambios a un esquema ya conocido para tener éxito. El público se cansa de ver la misma obra y exige ese juego de variaciones que le ofrezca la dosis de novedad que le permita mantener la capacidad de sorpresa que es la salsa de la diversión en el espectáculo teatral. Como decía Agustín de Rojas, “todo lo nuevo aplace”, y no hay que recordar cómo la novedad era un elemento fundamental en aquel teatro”. Ou seja, longe do sentido pejorativo que os meios eruditos da cultura atribuem ao termo, entendemos o teatro comercial como aquele que busca primeiramente cativar e despertar o interesse do público, agradá-lo, pois precisa dele para sobreviver.
6. “Prioritariamente, o modelo de estrutura das peças de Antônio José são as tragicomédias espanholas em voga em Lisboa no início do século XVIII. Mesmo tantos anos após a Restauração (1640), o gosto do público português ainda se mantém ligado às representações de companhias espanholas que excursionavam pela Península Ibérica.” (GONTIJO ROSA, 2018, p. 28)
7. Na Biblioteca de Apolodoro – poema enciclopédico acerca dos feitos e as linhagens mitológicas gregas –, encontramos um Jasão mais amplamente descrito, mas sem grandes esboços de caracterização de personagem. Nas demais obras que narram a história dos argonautas ou de Medeia, não encontramos grande caracterização de Jasão.
8. A profecia de Apolo diz que Pélias deveria ter cuidado com o homem com uma sandália só. No caminho para a Iolcos, Jasão perde uma sandália, ao atravessar o rio Anauro. Assim, mesmo sem saber que se trata do sobrinho, o rei percebe o perigo daquele estrangeiro.
9. Em Os Encantos de Medeia, o Velocino é um carneiro vivo, como descreve Teseu na cena I da parte I: “Homem, sabe que nesta ilha de Colcos há um célebre jardim, no qual habita um carneiro cuja pele é de ouro, e esta todos os anos se tosquia e sempre lhe nasce outra pele de ouro; a isto é que chamam Velocino.” (Silva 1957, p. 10). Desloca-se, assim, a importância mágica da pele de carneiro – relevante para o mundo grego – para um aspecto mais concreto para a audiência do século XVIII, a saber, o lucro pela produção incessante de ouro pelo carneiro.
10. Na Biblioteca e nas Metamorfoses, Apolodoro e Ovídio seguem a trajetória do mito de Medeia, esquecendo-se do herói grego. Já em Os Argonautas, a narrativa finda com o regresso da Argos a Colcos. “El ultimo periodo de su vida, que tuvo Jason, le refiere Euripides al fin de su Medea, y dice que estando durmiendo en Argos cayó un muro y le cogió debaxo, y le mató. Didoro Siculo dice, que se mato el a si mismo, pero entre las curiosidades que juntó Textor de los que se mataron con sus manos, no pone a Jason: aunque Seneca quiso dar a entender esto en aquellas palabras, exitu diro; y assi lo declaró Delrio en este lugar.” (Vitoria 1676, p. 295).
11. Chamamos de personagens hybrizontes aquelas cujas ações são dominadas pela hybris, ou seja, pelo excesso. Podemos dizer ainda que são personagens regidas pelas emoções, não pela razão.
12. A covardia de Jasão, como veremos a seguir, não pode ser constatada na constituição do caráter da personagem nas peças espanholas de Calderón de la Barca (Auto d’El divino Jasón e Los tres mayores prodigios), Lope de Vega (El vellocino de oro) ou Francisco de Rojas (Los encantos de Medea). Nestas, Jasão é mais destemido e galante.
13. David Ball considera dois tipos de exposição. No caso, trazemos à baila aquele tipo de “informação conhecida de cada uma das pessoas que se encontram no palco” (BALL, 2008, p. 63-64) e cuja importância é verificada de imediato, como apontamos.
14. Embora Antônio José recorra à grafia “Jason”, no decorrer do texto utilizaremos a forma “Jasão”, por estarmos tratando de um personagem recorrente na literatura ocidental e sua perenidade, cuja nomeação mais corrente em tradução do grego é “Jasão”.
15. Questão interessante, é sempre bom ter em mente que tais textos destinavam-se à fruição através do espetáculo teatral. Portanto, não são sem propósitos tais repetições, que sublinham os pontos importantes do enredo e visam o acompanhamento do mesmo pelo público. Diferente da leitura, que o leitor pode transitar livremente pelas páginas, a exposição oral é efêmera, como o próprio teatro.
16. Salvo menção contrária, as traduções são do autor do presente artigo. No original: “Les héros de A. J. da Silva sont souvent faits du même bois que Jason, qui est le type même du menteur ne craignant pas à deux reprises de se parjurer”.
17. Também em Os Encantos de Medeia, a feiticeira diz: “Se prometes corresponder-me com o mesmo amor, seguro-te que te podes chamar feliz; […] até te farei senhor do célebre Velocino. […]
Medeia: Prometes, Jason?
Jason: Prometo, Medeia.
Medeia: Vê lá o que dizes.
Jason: Por todos os deuses do firmamento e por todas as deidades do Cocito te juro sempre ser-te firme e amante.” (SILVA, 1957, p. 21).
18. Optamos por não traduzir os textos literários analisados neste artigo para não perder sentidos com a transposição linguística.
19. No original em inglês: “at Venus’ instigation, Jason was loved by Medea”.
20. O confronto das vontades humana e divina, em última instância, é o que leva ao trágico: a luta do herói contra o Destino (Ananke).
21. Encantos, Parte I, cena II: Jasão, ao ver Medeia: “Não vi mais peregrina formosura!” (SILVA, 1957, p. 12). Jasão, ao ver Creúsa: “Ainda excede a Medeia na formosura!” (SILVA, 1957, p. 13).
22. De acordo com o Diccionario Autoridades (p. 1734), linajudo é “el que presume y se jacta de la nobleza de su linage”.
23. Os adjetivos aqui descritos seguem o disposto por Prades (1963, p. 251, grifos no original) para o galán: “es caballero de buen talle, linajudo, eterno enamorado de la dama, pero turbado en su amor por la obsesión de celos y por la preocupación de honor; será, además, muy valiente y generoso”.
24. “Jasón: [. . . ] Yo vengo de paz a Colcos, / y así es razón que precedas / mi embajada, dando al Rey / de mi pensamiento cuenta. / Que si tiene por casar, / como yo pienso, a Medea, / y en esta empresa me ayuda, / yo me casaré con ella. / Fineo: ¡Notable hazaña la tuya! / No me admira lo que intentas, / mas la de pasar el mar / a pesar de su soberbia… / yo te quiero conducir / al Rey, pero no pretendas / casamiento con su hija, / por ciertas cosas secretas / que yo te diré después. / Jasón: No quiera Dios que le ofenda, / que sólo servirle quiero” (VEGA, 1999, v. 1164-1182).
25. Sabe-se a importância que as partes rimadas e cantadas adquirem na dramaturgia deste período, pois este recurso ajuda a fixar aquelas cenas na representação mental da peça para o espectador, conferindo relevância à parte cantada. Sobre a caracterização negativa de Medeia, ela pode ser vista também nas árias de Creúsa (p. 26-27 e 82-83), de Jasão (p. 56) e da própria Medeia (p. 21-22), no dueto entre Medeia e o Rei (p. 78) ou mesmo na grande apoteose da parte I, em que Medeia, Jasão e Coro cantam (p. 38-41). Nesta parte, no entanto, não há alusão direta à crueza de Medeia, mas as metáforas utilizadas (“incêndio voraz”, “voraz amor inflama ardor”, “mil sacrifícios de amor”) e no Coro cantado ao final – desta parte e da peça: “Se amor é um encanto / que inflama / na chama / tirânico ardor, / de ver não me espanto / a um peito / desfeito / a encantos de amor. “
26. Embora Sacatrapo intervenha no discurso de Jasão, não há um diálogo propriamente estabelecido, uma vez que Jasão não tem consciência da presença do gracioso em cena e este fala diretamente com o público.
27. Assim também em Os Argonautas (Rodes III, 1077-1078): “ [. . . ] Com as lágrimas da jovem, a ele mesmo invadiu / um funesto amor [. . . ]”.
28. Segundo o dito popular, “os fins justificam os meios” inspirado em Il Principe de Niccolò Machiavelli. Antônio José usa muitos provérbios populares em suas composições, direta ou indiretamente. Ou seja, os criados costumam falar muitos provérbios, mas eles também são motes para as suas glosas dramáticas.
29. À guisa de uma esticomitia trágica.
30. No recitado desta ária, dito quando, através de uma mágica de Medeia, Creúsa desaparece, Jasão brada o seguinte: “Pois, tirana, inimiga, infiel Medeia, [. . . ]” (SILVA, 1957, p. 70, grifo nosso). Este “infiel” só poderia sugerir ao público setecentista uma “descrente”, pois que a única motivação de Medeia, para todas as suas ações na peça, é a fidelidade – exacerbada, de fato – ao seu sentimento por Jasão.
REFERÊNCIAS
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