O Último Gesto: ou a Cólera de Eneias e a Piedade de Aquiles, Tiago Ramos

[Revisto por Márcia Marto]

Uma análise de como os derradeiros gestos do colérico Aquiles e do pio Eneias contradizem os traços fundamentais dos seus caracteres.

Nascer, viver e morrer. Uma descrição lacónica, não obstante justa, do destino que todo o ser humano está fadado a cumprir. Tudo tem um princípio e um fim. A estrutura do real depende da concretização cíclica dessa ordem natural que condiciona a própria existência. O motivo central que caracteriza os poemas homéricos é precisamente o confronto do ser humano com a sua mortalidade. Aquiles dos pés velozes, ciente de que está destinado a morrer caso permaneça em território troiano1, contempla o rosto da morte, aceita-a, e caminha na sua direcção. Por sua vez, Ulisses dos mil artifícios, certo de que irá regressar à escarpada Ítaca2, depara-se inúmeras vezes com a morte, mas consegue sempre contorná-la. De igual modo, na Eneida, de Virgílio, a morte assume um papel determinante, conquanto de modo dissemelhante. O pio Eneias, tal como os heróis homéricos, luta contra a dura realidade que todo o ser humano enfrenta: a morte e a sua condição efémera da vida. Contudo, o herói do poema épico de Virgílio encontra na morte uma possibilidade de vida. Nascer, viver, morrer e renascer?

O destino de Eneias, do qual este está a par ainda antes de começar a sua viagem3, é o de, a partir das cinzas de Tróia (morte), fundar uma gloriosa cidade na Península Itálica (renascimento). No contexto da Eneida, a morte é um sacrifício necessário para que a vida possa ser renovada. A queda de Tróia, perante o ímpeto dos gregos, é imperativa para que um império sem fim possa nascer, o de Roma.4 Todavia, a morte, enquanto custo imprescindível para a continuação da vida, tem contornos pessoais no trajecto de Eneias até à vetusta Hespéria. A morte de Creúsa, a sua esposa, dentro das muralhas de Tróia, pode ser interpretada como uma condição para a obtenção de uma nova forma de vida. A mãe do seu filho tem de perecer a fim de que Eneias possa vir a desposar Lavínia, a mulher que será a progenitora da linhagem romana. Dido, a Rainha de Cartago, tenta ocupar esse lugar de esposa e por isso a sua sina é igualmente funesta à de Creúsa. Mais adiante, aquando da catábase, a vida de Miseno é exigida para que Eneias regresse com vida do seu encontro com a alma dos mortos. O herói descende ao reino de Hades para ouvir o parecer de Anquises, o seu falecido pai, que lhe revela a glória reservada aos seus descendentes.5 Desta forma, o laço entre a vida e a morte volta a ser figurado, uma vez que é no mundo dos mortos que Eneias vislumbra a futura vida de Roma.

Turno, o Rei dos rútulos, pretendente à mão de Lavínia, é o último numa longa linha de homens sacrificados em benefício do renascimento de Tróia sob uma nova identidade. Já depois de o combate entre os homens de Eneias e de Turno ter começado, o Rei rútulo propõe a Eneias que a batalha seja travada apenas entre ambos.6 O chefe troiano aceita a proposta. Eneias, conquanto enfurecido pela morte de Palante às mãos de Turno, pensa no confronto como uma possibilidade de alcançar a paz.7 O acordo entre os beligerantes poupará a vida de muitos homens e encurtará o conflito entre os troianos e os rútulos, o que agrada a Eneias. O facto de o herói aceitar poupar aqueles que estão no campo de batalha e de perspectivar a paz vindoura, isto antes de participar num violento combate, enfatiza o epíteto de Eneias. No último canto, uma outra manifestação da benevolência de Eneias pode ser verificada no modo como este age para com os ítalos – isto é, promete, caso saia vencedor do combate com Turno, não subjugar o povo nativo daquelas terras.8

A confrontação directa entre Eneias e Turno é o episódio que conclui o poema. Perante a hesitação de Turno, que se encontra esgotado devido a uma longa perseguição, Eneias brande o seu dardo e este trespassa a coxa do adversário. Inerme, o outrora garboso Turno roga ao pio Eneias: pede-lhe para ter piedade de seu pai, que ficará destroçado com a morte do filho, o próprio Turno, e que não se deixe consumir pela cólera. As implorações são ignoradas. Eneias constata que Turno veste os despojos do caído Palante e, como corolário, concede ao pelida uma morte brutal, deslassando-lhe o peito com o seu dardo.9 A vingança motiva o último gesto do poema de Virgílio. Eneias sacrifica mais uma vida, desta feita a de um suplicante. No entanto, fica a dúvida quanto a essa acção ter sido praticada em prol do renascimento de Tróia ou em função de saciar os desejos coléricos do herói. Enceguecido pela ira, Eneias, um herói caracterizado pela piedade, revela que mesmo um homem com uma inclinação para a clemência se pode deixar vergar pelas mais baixas paixões que habitam no ser humano. Destarte, o herói do poema épico de Virgílio, com o seu último gesto, não sacrifica apenas a vida de um suplicante, o que viola os códigos de civilidade, mas o valor essencial que definia o seu ethos.

Eneias triunfa. O herói planta na Hespéria a semente da qual brotará Roma e, ao fazê-lo, encontra na morte uma possibilidade de vida. No entanto, o preço pago para que a empresa de Eneias fosse bem-sucedida é alto. Sangue é derramado em abundância e muitos são os corpos que tombam. O pio Eneias não sacrifica a sua própria vida, mas imola o traço basilar do seu carácter ao prescindir da misericórdia para alcançar um fim pernicioso: a vingança. Assim sendo, conforme afirma Medeiros, “o poema da construção da pax romana termina com um acto brutal de violência”.10

Na Ilíada, o herói sofre provações análogas àquelas que Eneias enfrenta no último canto do poema de Virgílio. Possuído por uma cólera atrabiliosa, Aquiles mata um suplicante, Heitor, o mais nobre dos guerreiros troianos. De seguida, Aquiles perfura os tendões de ambos os pés de Heitor, do calcanhar ao tornozelo, com correias que estão, por sua vez, atadas a um carro. O cadáver de Heitor é arrastado pelos cavalos e os belos cabelos do guerreiro passam a cobrir o solo poeirento de Tróia. Para além do corpo de Heitor ser repetidamente profanado, doze rapazes troianos são sacrificados na pira funerária de Pátroclo, um guerreiro, companheiro de armas de Aquiles, que Heitor havia morto em combate. Desta forma, Aquiles tenta repor a justiça e estancar a dor lutuosa que consome o seu espírito com actos violentos que ultrapassam os códigos de conduta dos homens. A ira de Aquiles é tamanha que ele ousa enfrentar os deuses que o impelem a agir mais civilizadamente.11 No entanto, a violência bárbara que caracteriza as acções de Aquiles a partir do canto XIX não o consolam. A morte de Heitor não lhe restituiu Pátroclo, não fez cessar os seus prantos, bem como não tornou as suas noites mais serenas.12

Na sequência da morte de Heitor e da profanação do seu cadáver, Príamo desloca-se ao acampamento dos gregos e leva à boca a mão que matou o seu filho.13  O Rei troiano suplica a Aquiles que o cadáver de Heitor lhe seja restituído, assim como pede tempo para que as cerimónias fúnebres possam ser realizadas dentro das muralhas de Ílion. Aquiles reconhece no lamento de Príamo a dor do seu pai, o solitário Peleu, que também está fadado a perder o filho, o próprio Aquiles. O sofrimento de Príamo é idêntico ao seu. A dor e a consciência aguda da mortalidade são a ponte que permite a Aquiles reconhecer o outro, mesmo que um inimigo, como um semelhante. A morte, esse território sempre além, é a distância que une todos os seres humanos. Como tal, o herói aceita conceder o corpo de Heitor a seu pai e promete reter os seus homens durante onze dias, para que o funeral possa ser realizado com a solenidade devida. Uma vez acordados os termos, Aquiles e Príamo tomam uma refeição juntos e, de seguida, ambos são embalados pelo doce sono, o que sinaliza que os seus ânimos estão tranquilos pela primeira vez em largas noites.

O último gesto de Aquiles dos pés velozes, por oposição à última acção do Pio Eneias, evoca civilidade e piedade, como comprovam os últimos versos que ambos os poemas dedicam aos seus respectivos heróis:

“Que assim seja, ó ancião Príamo, assim como dizes.

 Pararei a guerra durante o tempo que tu me pedes.”

Assim falando, pelo pulso tomou a mão direita

do ancião, para que não sentisse medo no coração. (Homero, Ilíada XXIV. 669-672).

“Que! tu me escaparás dos meus com presa!…

Nesta ferida imola-te Palante,

Palante vinga-se em teu ímpio sangue.” (Virgílio, Eneida XII. 920-922).

O traço final que conclui o retrato de ambos os heróis épicos inverte as suas caracterizações. Enquanto Eneias cede à ira funesta, característica de Aquiles, o guerreiro mirmídone aquiesce aos pedidos de um suplicante e procura apaziguar o coração do seu inimigo. Deste modo, a provação máxima que Aquiles enfrenta não é conquistar Tróia ou matar Heitor, vingando assim a morte de Pátroclo. A superação do herói decorre numa esfera interior. Aquiles deixa de ser servo duma amarga cólera, motivada por um luto obstinado, e age com benevolência para com o seu próprio adversário. 

Referências Bibliográficas:

1.Homero, Ilíada, I. 413-418.

2.Homero, Odisseia, V. 167-170.

3. Virgílio, Eneida, III. 173-181.

4. Virgílio, Eneida, I. 295.

 5.Virgílio, Eneida, VI. 778-780.

6.Virgílio, Eneida, XII. 75-78.

7. Virgílio, Eneida XII. 108.

8.Virgílio, Eneida XII. 181-183

9.Virgílio, Eneida XII. 924.

10.Walter de Medeiros, «A outra face de Eneias», em Eneida em contraluz (Coimbra: Instituto de Estudos Clássicos, 1992), 81-94.

11. Homero, Ilíada XXI. 222-227.

12.Homero, Ilíada XXIII. 57-61. 13.Homero, Ilíada XXIV. 505-506