O mito do Lobisomem: De Lycaon à Cultura Pop, Ícaro Uriel

[Revisto por Mariana Antão]

Lobisomem, homem lobo, licantropo, entre outros nomes pelos quais esse ser tem sido nomeado ao longo do tempo, é um personagem muito antigo, integrante do imaginário popular, presente em várias culturas e sociedades, sendo hoje muito explorado pela chamada cultura pop.

Cultura pop (pop culture ou popular culture) seria uma cultura vernácula, vinda do povo, que é produzida pelas sociedades modernas, buscando atingir um público de massas. Para Anthony Giddens (2001), as expressões dessa cultura são entretenimentos que tem o objetivo de atingir grandes audiências, por meio de shows, músicas, livros, filmes, séries televisivas, entre outros meios mediáticos.

É importante observar a diferença entre cultura pop e o folclore. Na língua portuguesa, esses termos se confundem, pois o termo “popular” é usado tanto para descrever o “popular mediático” (da cultura de massas), quanto a cultura popular (folclórica). Todavia, nem sempre o folclore se liga à produção em massa, como ocorre na cultura pop (SOARES, 2014).

A palavra folclore, criada em 22/08/1846, vinda de folk-lore, surgiu com o significado de “saber tradicional do povo”, vinda das pesquisas do arqueólogo inglês William John Thoms, englobando contos, lendas, provérbios, adivinhas, mitos, adágios, canções, narrativas e dizeres populares, transmitidos de forma oral (FRADE, 1997).

Sobre lendas e mitos, é importante analisar alguns pontos. De acordo com Cascudo (2012), as lendas são tidas como episódios heroicos ou sentimentais, com elementos maravilhosos ou sobre-humanos, transmitidos e conservados pela tradição oral e popular, em espaço e tempo localizado. Ela possui fixação geográfica e pouca deformação, conservando quatro pontos do conto popular: antiguidade, persistência, anonimato e oralidade. O conceito é parecido com mito, porém, possuem diferenças.

Mitos são histórias fantasiosas, com figuras sobrenaturais e que explicam alguns fatos por meio de metáforas e simbolismos, enquanto as lendas são relatos de eventos históricos de pessoas da antiguidade, com determinação de momento histórico, mas contados de forma distorcida e/ou exagerada, tendo uma atmosfera fantástica na sua narrativa. O mito, em alguns casos, pode ser um sistema de lendas, que se apoiam num tema central, com área geográfica maior e sem necessariamente um tempo ou espaço definido. Para Cascudo, o Lobisomem enquadra-se melhor como um mito universal, pelo fato de ser presente em vários lugares e épocas.

Em relação à sua origem, talvez um dos mais antigos relatos tenha surgido na Grécia Antiga, no século 8 d.C., nos relatos de Ovídio, na obra Metamorfose, sobre o rei Lycaon, da Arcádia, ao servir carne humana a Zeus, senhor do Olimpo. Enfurecido, o deus amaldiçoou Lycaon e matou seus 50 filhos com raios de luz, amaldiçoou o rei e o mandou para a natureza, onde ele se transformou em lobo uivante.

Contudo, relatos de humanos que se comportam como feras são muito mais antigos, aparecendo inclusive no Livro de Daniel (Daniel 4:33-34), no Pentateuco, sobre o castigo de Deus a Nabucodonosor, 604 a.C. – 562 a.C., filho de Nabopolasar, um grande Rei Caldeu.

4:33: Na mesma hora se cumpriu a palavra sobre Nabucodonosor, e foi tirado dentre os homens, e comia erva como os bois, e o seu corpo foi molhado do orvalho do céu, até que lhe cresceu pelo, como as penas da águia, e as suas unhas como as das aves.

4:34: Mas ao fim daqueles dias eu, Nabucodonosor, levantei os meus olhos ao céu, e tornou-me a vir o entendimento, e eu bendisse o Altíssimo, e louvei e glorifiquei ao que vive para sempre, cujo domínio é um domínio sempiterno, e cujo reino é de geração em geração.

(BIBLIA, 1980)

O Livro de Daniel é colocado como sendo a última obra a integrar as Escrituras Hebraicas, conhecidas pelos cristãos como Antigo Testamento, sendo inclusa no período conhecido como intertestamentário (aproximadamente entre 433 a 5 a.C.) (SOARES, 2008). Nessa passagem, assim como no restante da Bíblia, não há um relato direto de transformação do rei babilónio noutra criatura. Todavia, ao analisar de forma mais detalhada a leitura, é descrito que ele teve um comportamento anormal, com mudanças na sua aparência física, devido a um castigo divino imposto ao mesmo.

Na Idade Média havia a crença de que os acusados de licantropia poderiam ser descobertos com um corte na pele, para aparecer o pelo do lobo sob a ferida. Havia a ideia de que lobisomens devoravam corpos de mortos, além de caçar, na lua cheia, crianças que não fossem batizadas. Via-se também a metamorfose como obra de feitiçaria e pactos demoníacos. Havia até quem jurasse que pessoas excomungadas pela Igreja Católica se transformariam em lobisomens.

Por longos períodos, o mito do lobisomem foi ligado à ideia do monstro, sendo inclusive os acusados de licantropia julgados e condenados, como mostram o famoso julgamento de Manuel Blanco Romasanta, em 1809, em Espanha, e o caso de Gilles Garnier, conhecido como o Lobisomem de Dole, em 1573, em França. Casos de avistamento, aparecimentos e ataques de lobisomens também eram frequentes, como o caso da cidade de Greifswald na Alemanha (1199), o famoso caso da província de Gévaudan na França (1764-1767) e o caso de Angers (1598).

Já, na idade moderna e contemporânea passam a ganhar mais espaço na Literatura, inclusive em fábulas, como pode-se ver em alguns contos dos Irmãos Grimm no século XVIII, Sutherland Menzies (em Hughes the Wer-Wolf, publicado como uma série semanal durante a década de 1850). Em 1857, foram publicados The Wolf-Leader e Wagner the wehrwolf, de George W. M. Reynold (outra série semanal). Este último foi tido como a fonte da moderna literatura sobre lobisomens. Vários contos e romances foram publicados nos oitenta anos seguintes, mas atraíram pouca atenção até a publicação de The Werewolf of Paris, de Guy Endore, em 1934. Também, já na segunda metade do século XX, autores de grande renome fizeram uso do lobisomem em suas obras, como Stephen King, Anne Rice e J.K. Rowling, entre outros.

No século XX, o lobisomem ganha as telas do cinema em 1935, com o filme The Werewolf of London, lançado pelos estúdios da Universal Pictures. Outro filme de grande destaque que seguiu este foi The Wolf Man (1941), tendo esta a sua refilmagem em 2010. A partir daí vários outros filmes surgiram como Frankenstein e o Lobisomem (1943), O uivo do lobisomem (1944), Mulher lobo de Londres (1946), O lobisomem (1956), A maldição do lobisomem (1961), A marca do lobisomem (1968), A noite de Walpurgis (1971), A maldição da lua cheia (1973), Gritos de horror (1981), Um lobisomem americano em Londres (1981), Companhia dos lobos (1984), A hora do lobisomem (1985), Bad Moon (1996), Um lobisomem americano em Paris (1997), Dog Soldier (2002), Late Phases (2014), entre outros.

Seja como um ser mitológico, um personagem folclórico ou mesmo um produto atual da cultura pop, que conquistou as massas através de sagas, best sellers literários, jogos de RPG, filmes e séries televisivas, tornando-se produto rentável de consumo, o lobisomem atual difere em muito  do lobisomem narrado em séculos anteriores.

Talvez, algo que aproximou muito o lobisomem da cultura pop e do público jovem tenha sido trazer a ideia das transformações ocorridas durante a adolescência ligando-as às da licantropia, relacionando lobisomens e adolescentes, que têm estado conectados no cinema desde a década de 1950, com o filme “I was a teenage werewolf”, de 1957. Houve um considerável aumento em cinema e televisão o uso dessa temática a partir da década de 1980, quando o gênero de filmes de lobisomens ganha os olhos da cultura pop, principalmente após o sucesso de bilheteria de “An American Werewolf in London” (1981), que já traz um protagonista mais jovem como lobisomem. Já, em 1985, com o filme “Teen Wolf”, há uma retomada da temática que liga adolescentes a lobisomens novamente. Posteriormente, outros filmes como “Blood and Chocolate” (1997, 2007), “Ginger Snaps” (2000), “Love Bite” (2012), “Wolves” (2014), “I am Lisa” (2021), e séries como “Wolf Blood” (2012), “Hemlock Grove” (2012) e “Teen Wolf” (2011-2017) passaram a utilizar essa temática.

Assim, analisando o lobisomem, licantropo ao longo da história, notam-se várias facetas desse ser mitológico. De monstro devorador de crianças, julgados e condenados, a astro e ídolo da cultura pop de livros e filmes de cinema. Talvez essa constante mutação seja o motivo do vigor desse personagem que ultrapassou milênios, chegando ao século XXI com muito ainda de mistério e fascínio.

REFERÊNCIAS:

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9. ed. Brasília: J. Olympio, 2012.

FRADE, Cáscia. Folclore. 2 ed. São Paulo: Global, 1997.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

SOARES, Thiago. Abordagens Teóricas para Estudos Sobre Cultura Pop. Logos (UERJ. Impresso), v. 2, 2014.