O mito clássico, Luís Cerqueira

[Revisto por Márcia Marto]

Das muitas mitologias do mundo, a mitologia clássica é sem dúvida a mais relevante na cultura da Europa. Tem o mito clássico uma dimensão estética que lhe garantiu uma presença pujante na literatura, na escultura, na pintura, no teatro, na música, no cinema ao longo dos muitos séculos da arte europeia. Um vasto oceano.

Mas tem também uma dimensão funcional de compreensão do mundo. Já os Antigos tinham essa noção, e faziam leituras alegóricas e racionalizantes do mito. Os primeiros comentadores de Homero procuravam tornar razoáveis e aceitáveis os mitos dos Poemas, explicando-os alegoricamente. Cronos, o deus que comia os próprios filhos, é o Tempo, que nos devora, a nós, os filhos do Tempo. Evémero de Messina, no séc. IV a. C., deu o seu nome a uma tendência racionalizante, o Evemerismo. Explicava ele que a Hidra de Lerna morta por Hércules, herói civilizador, era na realidade um pântano que era preciso drenar. E se era difícil a tarefa! Quando se estancava uma nascente, outra surgia, daí a história da Hidra de muitas cabeças, que se multiplicavam e renovavam e que Hércules acabou por vencer.

Pessoalmente gosto muito do mito de Orfeu e Eurídice. Orfeu era um cantor da Trácia, cuja música amansava os animais ferozes e levava as árvores a arrancar-se das suas raízes e a marchar “como soldados” para junto dele, só para o ouvir. Simboliza, pois o encanto da música e da poesia. Enamorado de Eurídice, no dia do casamento perde a sua noiva, mordida no calcanhar por uma serpente venenosa. Incapaz de se conformar com a morte de Eurídice, Orfeu desce aos Infernos, que era o mundo dos mortos, situado nas profundezas da terra, e entre cantos, lamentos e argumentos persuade o rei dos Infernos, Plutão, a devolver-lhe a sua Eurídice.

Esta é-lhe trazida, mas é-lhe também dada uma lei: Orfeu não pode olhar para trás até sair do mundo inferior. Sobem por um declive íngreme, nevoento, e a certa altura Orfeu volve o olhar para Eurídice. Este momento é fundamental, e os artistas fixaram-no na pedra.

Porque o faz? Os poetas, guardiões dos mitos, dão explicações variadas: Vergílio fala de uma súbita demência, uma falta de autocontrolo; Ovídio, da forte paixão amorosa. O facto é que Eurídice morre pela segunda vez. Orfeu é impedido de voltar a entrar nos Infernos e, no seu luto repetido, despreza todas as outras mulheres, sendo morto e despedaçado pelas Ménades.

Porque olha Orfeu para trás? Não podia esperar mais um pouco? Orfeu olha para trás porque a morte é inevitável parte da condição humana: o amor, a beleza do canto e da poesia podem retardar a morte, mas todos temos de morrer, e é isso que o mito nos ensina. Claro que aos vinte anos todos somos imortais, mas à medida que avançamos na vida percebemos que não é tanto assim. O mito de Orfeu é uma aprendizagem da morte, e o reconhecimento do fascínio da poesia, que, todavia, contra a morte pouco pode.

Outra marca do mito clássico, por oposição ao imaginário do Cristianismo é a dimensão cruel da sua lucidez: não há esperança, até porque a esperança, como ensina o mito de Pandora, é o pior dos males. Pandora recebera uma caixa que não devia abrir, mas a curiosidade feminina foi maior, e os males espalharam-se pelo mundo, à excepção da Esperança, o pior dos males, que ficou no fundo da caixa.

Mas esta perspetiva melancólica da efemeridade insufla na vida humana e nas suas realizações a grandeza e o brilho daquilo que é belo, único e irrepetível no sombrio fluxo do tempo.

Há nos mitos clássicos a beleza inesquecível e pungente das narrativas, mas também a profundidade do pensamento subjacente e a vastidão da experiência humana que transportam. Conhecê-los é fonte de deleite, tê-los conhecido é amadurecimento e compreensão do mundo.