O conceito de teratologia, Sara Colaço

[Revisto por Sebastião Viana e Mariana Antão]

Introdução

Este trabalho tem como objectivo analisar o conceito de teratologia, passando pela sua definição e origem, que irá sofrer alterações ao longo da Idade Média, bem como pela razão do fascínio dos homens por estes seres monstruosos que constituem esta termologia, abrangendo não só os nascimentos monstruosos mas também os povos indígenas que deram origem às raças monstruosas. Abordaremos também a vertente social e política da teratologia.

Assim, começarei por definir o conceito de teratologia, bem como a sua origem, remetendo-me para autores medievais do século XV, nomeadamente Santo Agostinho, tal como para as obras literárias e iconográficas das viagens marítimas durante este século, para depois passar à comparação do termo na época e na contemporaneidade, nomeadamente entre os séculos XVI a XIX, abrangendo o fascínio humano pelos monstros, e desta forma remetendo para a própria filosofia da identidade humana em relação ao outro.

Teratologia como um conceito evolutivo, do medieval à contemporaneidade

Etimologicamente, Stephen Asma afirma que o conceito de teratologia advém do latim monstrum, que era visto na Idade Média como um tipo de presságio, como um sinal dos deuses a indicar o seu descontentamento, e advoga que o conceito de monstro se espraia em domínios que vão desde o religioso ao biológico[1].

Já Liceti, no seu Tratado dos Monstros, afirma que os monstros não são um sinal de presságio, mas que, por serem um novidade e extravagância, nos fazem vê-los em admiração, sentindo os homens a necessidade de mostrar a alguém o que viram, por serem os monstros algo de raro visionamento, provocando um fascínio do olhar. Isidoro de Sevilha conceitua a definição de monstro como um individuo onde a ausência de um órgão ou membro está presente, contestando que, mesmo faltando um elemento, se justifica a criação de uma categoria à parte para o monstro, comparando à superabundância de realidade presente no mesmo, possuindo a particularidade de a anular completamente. Pode-se tomar a título de exemplo o ciclope, que não é um ser ao qual falta um olho, mas é designado como um gigante que possui um olho no meio da testa. O monstro está assim para além da representação, para lá da sua origem e causa, mostrando o irreal, a anormalidade que se esconde.

O olhar do fascinado é deste modo preso na transparência do corpo do monstro, que se assemelha ao revirar da pele do corpo normal, mostrando um corpo sem alma, absorvida por uma parte corporal, pois ao ser revelada deixa de existir[2]. Assim, o monstro, é visto como uma mensagem divina de augúrio, que enche os homens de medo, que, incorporado numa transparência corporal, personifica dois conceitos incompreensíveis. Torna-se assim o monstro um sinal de curiosidade entre a multidão, pois, para que o homem que o descobriu não fique preso na sua imagem enlouquecida, tranquilizando-se na cumplicidade do outro, de modo a introduzir o monstro no discurso de todos os dias, para se libertar da angústia.

Destaca-se assim o caos da monstruosidade, e sendo o caos um desencadeador de forças, o monstro apela ao homem, como sendo uma secreta identificação, atraindo pelo terror. A privação de algum elemento no corpo monstruoso coloca a dúvida e irreversibilidade, pois quebrou-se a simetria do corpo normal, pois o homem já não se vê reflectido na imagem do outro como num espelho.

Esta definição medieval irá evoluir, ao adotar uma vertente mais humanizadora do monstro, ao relacionar-se com a questão filosófica da identidade humana e da sua relação com o outro.

José Gil afirma que este fascínio pelo anormal advém da própria questão da identidade humana.  A questão mística da biologia humana perde-se, na medida em que o monstro perde a sua vertente fantástica para passar a ser humanizado, como um indivíduo possuidor de alma tal como o humano normal, o que inquieta o homem, pois este necessita de certezas sobre a sua identidade, que é ameaçada por uma indefinição da possibilidade do que o humano poderia ter sido, não revelando uma animalidade que poderia dominar o seu corpo. Assim, o monstro tem como função mostrar o que poderia ter acontecido. O monstro não se encontra fora do domínio humano, mas no seu limite, pela junção do humano com a animalidade, visto que só quando as formas do animal e humano se cruzam é que surgem as anomalias[3]. Com esta aproximação entre o animal e o homem dá-se um desregramento cultural, caracterizado pelo incumprimento de regras sociais.

José Gil acredita que esta monstruosidade nasce a partir da presença da divindade no corpo humano, com indivíduos a possuírem uma presença mais forte da divindade no seu corpo. Designados como nascimentos teratológicos, estes indivíduos possuem traços anómalos, como a falta de um membro ou órgão, ou mesmo com traços animalescos.

Desta forma, a humanidade da figura do outro questiona-se, na medida em que se encontra no limite interno da humanidade do homem por ser uma desfiguração do humano no outro. Este excesso de realidade inquieta a razão, com a nossa normalidade a tornar-se o referente da norma, vendo-se o mundo dos monstros como um mundo desorganizado e sem leis.

Já Asa Mittman afirma que o monstruoso cria um sentido de vertigem, que enaltece a natureza fragmentária e inadequada, e que por isso, nos obriga a reconhecer os falhanços dos nossos sistemas de categorização. Destaca também o carácter de relatividade, de que o monstro é, num determinado contexto, que não deveria existir, mas existe. Acrescenta ainda que a monstruosidade está enraizada numa mentalidade de redefinir o entender do mundo, sendo esta redefinição útil para explicar a ansiedade que o monstro provoca em nós.

Teratologia como um conceito conotativo

Ambroise Paré, na sua obra “On Monsters and Marvels”, em 1573, define o conceito de teratologia como um conceito conotativo, na medida em que, relaciona a origem destes nascimentos monstruosos com variados fenómenos, onde é notória uma junção de superstições e ciência. Entre estes fenómenos destacam-se: a intervenção sobrenatural, hibridez, impressão material e genética[4]. É assim possível afirmar que as ideias defendidas por Paré se adequam à evolução sofrida pelo conceito de Teratologia, na medida em que corrobora as crenças supersticiosas, hibridez e impressão material que formaram o conceito dos nascimentos monstruosos na Idade Média, bem como acompanha a viragem para definições mais contemporâneas do mesmo, com a integração do fenómeno da ciência, que explica estes nascimentos com base em conceitos científicos que surgiram com a contemporaneidade.

Intervenção sobrenatural

Ao longo da história da humanidade, começando nas civilizações antigas, os nascimentos monstruosos serviam como um sistema de interpretação, onde as deformações físicas eram interpretadas como uma mapeação de eventos futuros, sendo este sistema herdado pelos gregos e romanos.

Já os cristãos consideravam os nascimentos monstruosos como mensagens de Deus. Para Santo Agostinho, que considerava que todos os processos naturais eram dirigidos por Deus, estes nascimentos eram presságios de potenciais catástrofes que poderiam abranger uma comunidade inteira, e eram considerados como sinais de descontentamento divino por castigos mais privados, vistos assim como castigos por pecados sexuais, bestialidade, adultério etc[5]. Para além de serem considerados como castigos divinos, estes nascimentos monstruosos eram também um reflexo da intervenção diabólica, com a copulação dos humanos com demónios, feiticeiros e o Diabo.

Hibridez

Visto que as deformações físicas que estes indivíduos possuíam se assemelhavam a características animalescas, uma outra teoria que surgiu para conotar a teratologia foi o conceito de hibridez, por abranger em si características humanas e animais. Assim, afirmava-se que os nascimentos monstruosos eram uma consequência da bestialidade, uma mistura de espécies. Esta ideia terá nascido no mundo antigo, mais propriamente com os Deuses egípcios e os monstros gregos, que frequentemente combinavam aspectos humanos e animais.

A monstruosidade é frequentemente relacionada com a hibridez e vista como algo inatural. Isto significaria que uma criança nascida com parecenças a algum animal, bem como a sua mãe, eram ostracizadas da sociedade, e consequentemente mortas pela população.

Impressão material

A teoria da hibridez possui uma conexão com outra teoria teratológica: a impressão material, que tem como premissa a ideia de que o que a mulher grávida pense ou veja durante a gestação pode influenciar o desenvolvimento e aparência do feto. Destaca-se, a título de exemplo, o caso de uma mulher grávida que ao ver um porco com os seus filhotes, ficou enternecida por ver a interação da mãe com a suas crias, e por isso deu á luz a uma criança com cabeça de porco[6].

Genética

É com o conceito de genética que a conotação da teratologia com a ciência nasce. Relacionada com o fenómeno de impressão material, o fenómeno da genética surge do estudo da anomalia humana, como um ponto de vista científico para explicar o conceito de impressão material. A genética irá assim relacionar-se com as circunstâncias que afectam o desenvolvimento do feto, como por exemplo o trauma intrauterino ou a ingestão de substâncias durante a gravidez. Esta teoria, proposta por Aristóteles, considerou que erros no desenvolvimento do ser monstruoso resultou numa falha e consequentemente num processo incompleto, o que explica as deformações físicas dos indivíduos[7]. Pode-se assim afirmar que foi este conceito, que começou a ser estudado no século XVIII, por René Antoine Ferchault de Réaumer, que deu lugar ao estudo da genética no século XX, corroborando o nascimento de uma vertente mais humanizadora da teratologia, marcando um degrau evolutivo do termo para a contemporaneidade.

A política das raças monstruosas como origem da Teratologia

Durante o século XV, surge uma outra teoria para a origem destes nascimentos monstruosos. Esta recai na crença de que tais indivíduos descenderiam de raças monstruosas. Fruto da mitologia, esta crença teve origem nas viagens marítimas durante a Idade Média, que, em conjunto com um conhecimento inadequado da geografia, consumida por um etnocentrismo europeu, levaram a teorias baseadas no medo do desconhecido, ao criar a crença de que seres monstruosos habitavam as terras desconhecidas. Tal crença foi assim difundida através dos relatos literários dos viajantes, que, impregnados de uma imaginação fantástica, irão culminar numa iconografia fictícia, distorcendo os encontros com os povos indígenas, ao enfatuar factos, e misturando avistamentos de humanos com animais, criando assim as raças monstruosas.

Santo Agostinho afirma ainda, na sua obra A Cidade de Deus, datada do mesmo século, no que toca à existência de raças monstruosas, que Deus criou estes monstros como criou os humanos, criando todos por meio de uma necessidade e tendo atenção ao conjunto e à ordenação de parte diversas para obter o conjunto de beleza do universo, de modo a criar as raças fabulosas. Mas, mesmo sendo uma vontade de Deus, estas raças fabulosas acabarão por ser designadas de míticas. Os monstros são criações estranhas da natureza e de Deus, sendo que a anomalia torna o homem animal, a um ponto tal a que alma deixa de existir[8].

As anomalias genéticas caem na vontade de Deus, na medida em que os desígnios divinos têm uma razão de ser, onde a deformidade física nada teria a ver com o conceito monstruoso, visto que os monstros possuiriam alma. De modo a dar necessidade de existência á raça monstruosa, leva-se até ao limite essa existência, uma realidade acrescida, provando a existência de uma contradição que é a raça humana, conduzindo á necessidade da sua existência. Assim, o homem medieval precisava de pensar-se como género real, ao pensar-se cristão em oposição ao infiel, racional em oposição ao animal. Os monstros “são elaborações simbólicas às quais se retirou o sentido simbólico para que o seu contrário pudesse ser pensado como real”.

As descrições das raças monstruosas na Idade Média mostram uma mistura do natural com o divino, ao serem estas vistas como selvagens e diabólicas, habitando lugares que relembram o Inferno. A cultura profana e o erudito juntam-se, marcando profundamente a Idade Média e a sua literatura, com destaque para a integração de múltiplos elementos folclóricos da cultura popular, com os conceitos inexplicáveis a inserirem-se num contexto religioso.

Destacam-se assim os relatos dos habitantes da Etiópia, que foram corroborados pela obra iconográfica “Book of the Marvels of the World”, de Frances, Angers, de 1460, onde se dá destaque para a iluminura com os estranhos habitantes de Etiópia, estando entre eles Blemies, e humanos cobertos de pêlos, que fazem da Etiópia um país selvagem e desconhecido. Estas representações foram designadas pelos seus autores como uma outridade, pela sua origem obscura, e propagadas por viajantes gregos até á Idade Média[9].

 Estes seres estão também representados nos mapas mundi datados da Idade Média, baseados nos mapas em T, que abrangiam apenas 3 continentes (Ásia, Europa e África), sendo a Ásia representada como continente principal, por conter em si o centro da Terra, Jerusalém. Nas suas margens, a suportar o peso do mundo, encontram-se estes monstros, que parecem estar presos numas caixas azuis e laranjas.

Estes seres foram congregados em grupos, e designados como sendo raças monstruosas, termo este evolutivo, com o inico da Idade Média, a designar-se por nação, sendo que só no final do século XIX se começou a usar o termo raça para designar cães caçadores, para depois passar a designar pessoas de linhagem alta, sendo assim os de alta linhagem de diferente raça do que a raça plebeia.

Podemos ver, a título de exemplo, as descrições de raças monstruosas da obra Ciclo de Alexandre, obra resultante das navegações marítimas, raças estas que seriam habitantes da Etiópia, analisadas por John Block Friedman na sua obra “The Monstrous Races in Medieval Art and Thoughts”, datada do século XX, onde intitula 40 raças. Entre as variadas raças monstruosas encontram-se os Androgini, que possuem tanto os órgãos sexuais masculinos como femininos, os Homens silenciosos, que comunicavam por gestos, e raças fantásticas como os Astomi, que não possuíam bocas e vivam do cheiro, os Blemmyae, que não possuíam cabeças e tinham o rosto no peito, os cinocéfalos , que tinham cabeça de cão, os Panotii, que tinham orelhas gigantes que chegavam ao chão, e, por fim, os Ciápodes, que possuíam um único pé gigante que usavam para se protegerem do sol, os Parvines, que possuíam quatro olhos, entre outros.

Friedman explica que tais relatos “exibem um etnocentrismo marcante, que fez com que a cultura, linguagem e aparência física do observante se tornassem a norma por que estes avaliavam o Outro.” Acrescenta, ainda, que apesar de as raças monstruosas serem de uma origem poética e imaginativa, estes contos preenchiam uma necessidade psicológica. Este fascino pelas raças monstruosas está assim enraizado numa “fantasia, escapismo, um deleite no exercício da imaginação e no medo do desconhecido”.

Assim, este modo de designação passa a ser uma estratégia para demonizar este grupo de habitantes da Etiópia, de um outro cultural, que não seria completamente humano na sua essência. Este termo consagrava assim a categorização de superioridade de uma cultura sobre outra, com Caroli Linnai a estabelecer a cultura Europeia como superior. Assim é notória uma opressão pelo outro, pelo estrangeiro, protagonista do genocídio e de assassínios, sendo assim observável um fenómeno de racismo contemporâneo, derivado das diferenças de linguagem e cultura.

Esta mentalidade é notória também na tapeçaria intitulada “Wild Men and Moors”, datada ca. 1440, que se encontra no Museum of Fine Arts, em Boston. Nela, encontra-se representado um castelo habitado por Mouros, que se encontra sobre ataque de um grupo de homens selvagens, cobertos de pêlos. Neste castelo, encontra-se um par de mouros, que na altura seria uma estereotipização do povo muçulmano, onde são representados com feições exageradas, com pele escura, olhos largos e lábios vermelhos, que sobressaem ao comparar-se com a tez clara dos homens selvagens representados na tapeçaria.

Este tipo de estereotipização é observável na representação de seres monstruosos como sendo indivíduos com falta de civismo europeu, demonstrada por exemplo por não usarem roupa. Forma-se assim uma associação negativa com pele escura derivada de metáforas que conectam a escuridão com o mal e a clareza com o bem, que deriva da religião cristã. A escureza da pele dos etiópicos personificava o demoníaco, sendo que na Bíblia, os etiópicos representavam pessoas possessas pelo demónio, com um espírito escuro, que se tornaram brancos, com a sua conversão ao cristianismo. Representados com o corpo coberto por pêlos, corpo desproporcionado, com feições exageradas, com caudas, com comportamentos sexuais, afirmando que a conversão cristã transformaria fisicamente o corpo do homem negro para um corpo claro, visível na iconografia do códex Vindobonensis de 1857, Hours of Mary Burgundy, de 1477[10].

Estes seres monstruosos conotavam um estado primitivo, mas com a possibilidade de conversão, demonstrando o poder europeu sobre o resto de mundo habitado por estes seres criados pelo poder ilimitado de Deus, e que serviriam como exemplo para os pecadores, ao personificar o pecado que manchou os seus corpos.

Pode-se assim afirmar que a sociedade Medieval era prossecutora para com o Outro, para com o diferente, com a presença do preconceito da Igreja contra estes seres, de modo a infligir o seu poder sobre o outro, tornando-o inferior. Assim, perante as afirmações descritas acima, é possível destacar o medo e a aversão para com estes seres monstruosos que vigorou no século XV aquando do seu aparecimento, século marcado por um pensamento religioso conservador. Perante tal fenómeno, foi possível perceber o porquê de tal comportamento, e assim evoluir a definição de teratologia para a contemporaneidade, com o desígnio de um etnocentrismo marcante na sociedade medieval do século XV, derivado do nascimento de uma filosofia de identidade que marca a definição de teratologia actual.

A sua representação

Por ser a iconografia monstruosa a principal fonte da teratologia, remeto para Lilian M. C. Randall, na sua obra “Images in the Margins of Gothic marginality” de 1966. Aqui a autora destaca que tal iconografia era usada pela Igreja nas margens dos manuscriptos religiosos (fig. 1). Michael Camille irá corroborar as afirmações de Randall, na medida em que afirma que a hibridez dos monstros está representada nas colunas das catedrais (fig.2), como formas que albergam partes de reinos animais diferentes, sendo assim imprevisíveis, afirmando que estes monstros não são para ser decifrados ou venerados, sendo um meio para o humano se ligar ao visceral[11].

Os monstros mostram assim não só uma diferença física, mas como temporal, cultural e linguística, transmitindo um forte poder que prende a atenção do homem em decifrar tal criatura.

David Gordon White afirma que os monstros, ao estarem nas margens da sociedade, representam assim a natureza não civil dos humanos, com a junção do reino humano e do reino animal num só corpo, personificando os crimes humanos.

O monstro oferece uma representação decomposta, distorcendo a perspetiva, que é executada geometricamente, com a harmonia das partes corporais, podendo-se assim afirmar que o monstro nega as leis da realidade. O monstro teratológico funciona em duas direções: ao ser estranho à perspetiva, nega a simbolização da imagem e vai produzir um novo conhecimento, observado na iconografia que rompe com a imagem de puro signo e o seu sentido, de modo a constituir um novo instrumento de conhecimento não inserido na rede de significados adoptada em sociedade, e por isso único, assistindo-se a uma ruptura do conhecimento. Assim, é seguro afirmar que o monstro desfaz as conceções do saber em voga para fazer surgir um novo conhecimento de realidade.

Este fascínio pelo outro monstruoso irá ganhar um impulso com a criação das primeiras recolhas de indícios destes corpos monstruosos, fazendo, de certo modo, desmentir o conceito de mitologia da teratologia da Idade Média.

Estas recolhas irão dar origem às primeiras coleções de objectos e restos de monstros taxiodermizados, colheitas por viajantes e comerciantes e expostas em museus criados para esse efeito, a partir do século XVI. Entre os espécimes, para nomear alguns, encontram-se unhas monstruosas de um adolescente, um feto petrificado que uma mulher carregou durante 28 anos[14]

Tais objectos despertam a curiosidade por não pertencerem a uma espécie conhecida, ou porque fazem parte de dois géneros que se excluem.

Conclusão

Em suma, é possível afirmar que o conceito de teratologia nasceu de uma sociedade medieval prossecutora para com o outro diferente, levada a cabo por um pensamento etnocentrista e religioso que consagrava o outro diferente como sendo um monstro animalesco, que não consegue viver em sociedade, sendo este mesmo um presságio do descontentamento de Deus perante os humanos.

É a anomalia, o excesso de realidade que faz com o ser humano tema e, ao mesmo tempo, se fascine pelo monstro, na medida em que o corpo anómalo se assemelha ao revirar da pelo do ser humano, mas que ao mesmo tempo possui alma, tornando-se uma forma corpórea de dois conceitos opostos: o animalesco e a moral. Este fenómeno cria assim uma humanização do monstro, o que inquieta o humano, na medida em que este necessita de possuir uma definição concreta da sua identidade humana, o que não acontece com a humanização do monstro. Esta humanização do monstro foi corroborada pela conotatividade do conceito da teratologia, na medida em que alberga, em si, uma origem científica para os nascimentos monstruosos, fazendo cair por terra a presença divina nos monstros.

Este pensamento sobre a teratologia teve início com as viagens marítimas e com a crença na existência de raças monstruosas, raças indígenas que teriam dado origem aos nascimentos monstruosos, corroborada pelo pensamento religioso em voga, de Santo Agostinho, de que Deus teria criado as raças monstruosas de modo a equilibrar a beleza do universo. Assim, é possível afirmar que esta política de raças monstruosas é corroborada por um etnocentrismo marcante que fez com que a cultura do observador se torne a norma em relação ao outro, sendo esta ideologia personificada na iconografia e literatura da época.

Notas:

1. WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press, p. 2

2.GIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p.84

3. GIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p. 12

4. WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press, p. 4

5.WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press, p.8

6.GIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p. 95

7.WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press, p. 13

8.GIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p. 29

9.  SHERRY, C.M. & MITTMAN, Asa Simon, Race, Monstrosity & the Other in Medieval Art, University of Memphis. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XOk43No02Es&list=WL&index=8&ab_channel=TheMorganLibrary%26Museum. Acesso em: 23/12/2020

10.SHERRY, C.M. & MITTMAN, Asa Simon, Race, Monstrosity & the Other in Medieval Art, University of Memphis. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XOk43No02Es&list=WL&index=8&ab_channel=TheMorganLibrary%26Museum. Acesso em: 23/12/2020

11. MITTMAN, Asa Simon & KIM, Susan M. The Routledge Companion to Medieval Iconography- Monstrous Iconography. Routledge Taylor & Francis Group, p. 1028

12. MITTMAN, Asa Simon & KIM, Susan M. The Routledge Companion to Medieval Iconography- Monstrous Iconography. Routledge Taylor & Francis Group, p. 1033

13. MITTMAN, Asa Simon & KIM, Susan M. The Routledge Companion to Medieval Iconography- Monstrous Iconography. Routledge Taylor & Francis Group, p. 1038

14. citado por Lynn Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, Nova Iorque, The Macmillan Company, T. VI, p.269

Bibliografia

COHEN, Jeffrey Jerome, The New Middle Ages: Hybridity, Identity, and Monstrosity in Medieval Britain: On Difficult Middles, Palgrave Macmillan, 2006

MITTMAN, Asa Simon & KIM, Susan M. The Routledge Companion to Medieval Iconography- Monstrous Iconography. Routledge Taylor & Francis Group

THORNDIKE, Lynn, A History of Magic and Experimental Science, Nova Iorque, The Macmillan Company, T. VIGIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994

WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press

SHERRY, C.M. & MITTMAN, Asa Simon, Race, Monstrosity & the Other in Medieval Art, University of Memphis. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XOk43No02Es&list=WL&index=8&ab_channel=TheMorganLibrary%26Museum. Acesso em: 23/12/2020


[1] WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press, p. 2

[2]GIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p.84

[3] GIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p. 12

[4]WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press, p. 4

[5] WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press, p.8

[6] GIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p. 95

[7]WEINSTOCK, Jeffrey Andrew, The Monster Theory Reader: Introduction: A Genealogy of Monster Theory, University of Minnesota Press, p. 13

[8] GIL, José, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p. 29

[9]  SHERRY, C.M. & MITTMAN, Asa Simon, Race, Monstrosity & the Other in Medieval Art, University of Memphis. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XOk43No02Es&list=WL&index=8&ab_channel=TheMorganLibrary%26Museum. Acesso em: 23/12/2020

[10] SHERRY, C.M. & MITTMAN, Asa Simon, Race, Monstrosity & the Other in Medieval Art, University of Memphis. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XOk43No02Es&list=WL&index=8&ab_channel=TheMorganLibrary%26Museum. Acesso em: 23/12/2020

[11] MITTMAN, Asa Simon & KIM, Susan M. The Routledge Companion to Medieval Iconography- Monstrous Iconography. Routledge Taylor & Francis Group, p. 1028

[12] MITTMAN, Asa Simon & KIM, Susan M. The Routledge Companion to Medieval Iconography- Monstrous Iconography. Routledge Taylor & Francis Group, p. 1033

[13] MITTMAN, Asa Simon & KIM, Susan M. The Routledge Companion to Medieval Iconography- Monstrous Iconography. Routledge Taylor & Francis Group, p. 1038

[14] citado por Lynn Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, Nova Iorque, The Macmillan Company, T. VI, p.269