[Revisto por Mariana Antão]
O ano era 1989. Mais um final de ano que passaria sozinha, isolada. Aquela noite já seria noite de lua cheia e essa fase parecia aguçar muito a sua sina. Sentada, observava as grandes araucárias numa tarde fria e chuvosa de inverno, pela janela do pequeno chalé isolado. Lá era o seu refúgio. Perdida em pensamentos, refletia sobre a sua existência e sobre como era a vida antes e após a presença do yee naaldlooshii ou skinwalker, uma moléstia que retirara sua liberdade, seu prazer, seu gozo. A ela restara observar a vida por uma fenestra, lembrando de Theo.
A vida acabou por distanciá-la de Theo. Sonhadora, queria ganhar o mundo, viajar, viver, ser independente. Em seus planos não cabia espaço ao matrimónio. Nisso precisou sacrificar sua primeira aventura amorosa, com Theodoro, rapaz oriundo de uma tradicional família do Porto. Theo somente, para ela. Diferente de sua ex futura consorte, era mais contido, aceitando de forma abnegada as orientações do pai, e sacrificando seus sonhos, de entre eles cursar Letras, acatando a escolha do pai por Direito. Submisso aos ditames e regras segundo os quais fora educado. Isso trouxe um verdadeiro abismo aos jovens. Ela o tinha como trovador solitário que contava as semanas de seu relacionamento por poemas, preso ao mundo platônico das ideias, e Iandra, segura de seu caminho, não aceitava aos desmandes de tradições e costumes. Personalidades diferentes, como vinho e água.
E isso a levou a cursar Antropologia, sendo este fato o único respaldo lenitivo de seus pais, que almejavam receberem como regalo da filha um diploma da trindade dos cursos acadêmicos coroados pela alta sociedade: Direito, Engenharia ou Medicina.
Única filha, oriunda também de tradicional família mineira, tinha todo seu futuro traçado, como as linhas das mãos. Sua sorte parecia certa, numa vida toda desenhada ao encontro do sucesso, mesmo que desviasse em partes do caminho que lhe traçaram desde o berço. Desde sua infância no Porto, a ela interessavam mais os museus, arquivos, sítios arqueológicos, cidades históricas ao invés da vida de shoppings, boutiques, salões de beleza, colunas sociais e festas da high society, levando sua mãe à loucura. Sua genetriz buscava na filha a cópia perfeita de sua personalidade, a típica infanta bem nascida. Todavia, produzira seu alter ego alternativo. Mesmo com muitas características físicas dos pais, Iandra estava longe de pertencer ao mundo de seus progenitores. Como na música, dizia ser muito down o high society.
Ela sonhava em ganhar o mundo real, além de aparências e contas bancárias graúdas. Realmente conseguiu. Porém, em curto período. Numa das viagens de campo, para escavações num sítio arqueológico navajo no Novo México, tudo mudou quando ela descobriu que os skinwalkers, yee naaldlooshii, licantropos ou simplesmente lobisomens não eram apenas lendas. É bom esquecer boa parte sobre o folclore sobrenatural dessas criaturas. O contágio dava-se mais, de certa forma, como uma mutação sanguínea ligada ao grupo sanguíneo A positivo, sangue do qual infortunadamente era possuidora.
Tudo se deu numa noite fatídica, em que se entregou ao desejo por um dos guias da expedição. Uma loucura feita numa noite de primeiro encontro, regada a cervejas e carícias, numa filosofia crowleiana do “faça o que quiseres por ser tudo da lei”. Porque não se entregar a tal amante? Aquele homem parecia atiçar seus desejos, como nada antes. Cheirava a feromonas. O sexo veio de maneira natural, num instinto corporal. Em determinado instante, num transe de gozo, orgasmo sublime que a paralisava, viu aquele homem transformar-se em fera com feições híbridas entre homem e lobo. Era para ter morrido naquela noite, mas não. Em instante certeiro, policiais interromperam o ato final de morte da vítima, alvejando a fera com vários tiros a queima roupa. No hospital, ficara dias num torpor inconsciente, recobrando aos poucos a lucidez. No dia em que fora desinternada, os mesmos policiais a visitaram e contaram sua sina – toda a história. Os mesmos, de origem navajo, disseram que ela somente havia sobrevivido ao contágio da fera, primeiro pelas armas e depois por seu sangue. Qualquer outro tipo sanguíneo levaria à morte de que se contagiasse devido a infecções. O policial mais velho disse que nunca mais poderia ter contato sexual. Que no primeiro contato, a maldição acordaria e seu espírito levaria à morte de quem tocasse, fosse por garras ou infecção. Como na música, seu prazer tornara-se risco de vida.
Ah, como os jovens são altivos e cabeça dura! Por que não escutou os policiais? Após chegar a Portugal, numa das festas universitárias, conheceu um rapaz. Era noite de lua cheia e seu corpo parecia queimar de prazer. Uma hiper sensibilidade a cada toque. Também, notara a excitação que provocava em seu parceiro e isso dava-lhe sensação prazerosa de poder e domínio. Exalava feromonas no ar que o levavam à ereção involuntária, quase uma hipnose em poluções noturnas. Não houve sequer tempo de chegarem a um motel. Numa viela afastada, entregaram-se ao desejo logo num dos matagais, cedendo a instintos primitivos. Logo montou sobre ele, em posição dominadora. Numa intensa transa, ela sentiu-o ejacular mais de uma vez. Porém, prazer e dor andam juntos para os skinwalkers. No contorcer da agonia da transformação, rasgou a garganta do rapaz numa mordida. E, como a fêmea de um louva deus, devorou-o. Não se recorda da morte do homem muito bem, tendo apenas lampejos curtos de memória a partir de sua transformação. E sempre, uma vez ao mês, durante o período maior de crise, que antecipava a transformação, refugiava-se naquele chalé, de paredes reforçadas e grades de ferro em janelas.
O mesmo chalé no qual teve sua primeira experiência amorosa, em que, numa mesma noite, quase sem luar, perderam juntos a virgindade um casal de jovens, ela e Theo. E hoje só restam lembranças de tempos bons passados. Agora apenas observava a vida passar pela vista de uma janela. A morte acompanhava seu desejo, um desejo que não poderia ser controlado nem mesmo por seu próprio corpo. Ah, a vida possui suas inexplicáveis ironias, seja destino ou falta de sorte. Tornara-se careta, casmurra, celibatária, como as beatas indigestas da sua catequese. Havia certos instantes em que se via parada olhando apenas seu reflexo pelo espelho, procurando encontrar-se em si própria.
Depois da primeira morte, nunca mais quis carícias, contatos sexuais. Nem sequer conseguiu tocar-se mais intimamente. Tudo parecia um grande pecado nefando. Apenas na mente o olhar do rapaz, vítima do coito da fera. Não sabia nem seu nome, era apenas um rosto anónimo que atormentava sua consciência. Parada na janela, observando um pássaro preto esconder-se entre os galhos das árvores, lembrava dos versos de “O corvo”, de Poe: Ó velho “Corvo emigrado lá das trevas infernais! Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.” Disse o Corvo, “Nunca mais”. Nunca mais seria a mesma. Como dizem os navajos, o yee naaldlooshii consome almas!
Ah, que saudades dos versos de Theo, de seus braços em tempos de tempestade, de seu olhar compreensivo, daquele namoro adolescente a cheiro de descobertas. Daquele rapaz que parecia querer se entregar de corpo e alma. Das noites de amor dos dois, em refúgio naquele mesmo chalé sombrio, que outrora era acolhedor. A última notícia que sabia de Theo era o fim de seu casamento. Ele casara-se cedo e o tempo acaba ruindo aquele relacionamento, que parecia idealizado. Da última foto que vira dele, os olhos esverdeados marcantes, cheios de sonhos daquele garoto ruivo deram lugar a um olhar vazio de um homem contido, apático. Será que ainda fazia trovas, poemas? Ainda havia o ardor do questionamento de um rebelde sem causa?
De repente o clarão de um raio interrompeu a escuridão da noite, quebrando a lembrança de pensamentos. Parecia um anúncio de que a tormenta da fera logo chegaria. Iniciavam-se os calafrios, ondas de calor, o cheiro de sangue na boca. Ao menos estava só, presa. Não machucaria mais ninguém a não ser ela própria. Todavia, um barulho se fazia notar aos ouvidos mais sensíveis de Iandra. Parecia vir da porta da frente. A maçaneta começava a mexer-se e a porta iniciava a abertura. Não! Não podia ser! Apenas uma pessoa tinha a cópia da chave. Theo?! O único objeto que esquecera de recolher após o término do namoro, aquela maldita chave.
As dúvidas mostraram-se cruéis certezas quando uma voz, a mesma voz familiar que ouvira há mais de dez anos atrás, soou:
– Iandra? Você está aqui? Desculpa por não avisar, mas a diarista me informou que você viria hoje para cá e não consegui te telefonar. Parece que os telefones estão mudos por causa da tempestade.
Essa atitude inconsequente não parecia a cara de Theo, mas sim dela própria. Num rompante de pavor misturado por amor e admiração ao vê-lo, disse ela:
– Theo, é você? Como? Você não deveria estar aqui …
Em resposta:
– Demorei muito para ter coragem de tomar decisões por conta própria, desenhar meu destino, agir por impulso ao menos uma vez na vida. É tão pouco o que tenho pra dizer, só preciso dizer que te amo!
Na mesma hora aproximou-se e roubou-lhe um beijo, que transformou num abraço acalorado. O corpo de Iandra ardia num desejo misturado ao instinto do skinwalker. Ela tentou se conter:
– Não, não podemos. É perigoso. Você precisa ir!
– Sua boca diz o oposto do que seu corpo expressa. Num dia assim de tempestade, eu me perdi num caminho de gigantes e moinhos, vento de razão e tradição, amando um amor perdido. O ridículo de minha vida foi pensar que poderia escolher quem amar. Amor não se controla, apenas se sente. Hoje, não tenho mais certezas. Apenas queria te ver novamente, disse ele.
De aparência, um homem formado, mas por dentro o mesmo menino trovador. E Iandra encarnara naquele instante a figura de femme fatale, expelindo um cheiro estonteante de feromonas. Não conseguia mais conter-se. E isso gerava uma excitação quase involuntária em Theo. Na dança de corpos, que logo já estavam despidos, os preliminares incendiavam-nos. Na volúpia, entre excitação e gozo, ela subjugou, pondo-o deitado sob seus pés. Posteriormente, a mesma sentou-se por cima do falo do varão, criando um encaixe perfeito.
Iniciara-se o coito da fera, em posição de domínio, tal qual Lilith. No auge do prazer, numa posição dos dois corpos sentados frente a frente, com olhares entrelaçados, com ela ainda por cima, o clímax da ejaculação, entre sussurros e gemidos. Junto a isso, surgem as garras de Iandra rasgando a pele das costas de Theo. Ele assistia atônito sua transformação bestial. Paralisado entre o prazer do gozo e o pavor da morte, não conseguia mover-se. Seu corpo não mais respondia. Ele viu o olhar vivo da morte através das pupilas de uma fera que escarrava em sua boca. Acreditou que chegara a sua hora.
Porém, em desenrolar quase cinematográfico, ouve o barulho da porta arrombada e disparos de tiros. A guarda florestal, ouvindo os uivos, adentrou ao local. Vendo a cena, para salvar o homem, disparam diversas vezes sobre a fera.
Caído ao chão, muito ferido e ainda paralisado, o mesmo apenas lembrou da cena de uma fera caída ao seu lado voltando às feições delicadas de Iandra. Era os últimos suspiros de sua amada, e num último olhar um sorriso de ternura em direção a ele. Ela nunca teve medo da vida, assim como não teve da morte.
No laudo policial, buscando explicações racionais, fora posto: Tentativa de homicídio por motivo passional.
Semanas depois, Theodoro acordou com médicos e enfermeiros ao redor de seu leito de hospital. O médico plantonista disse:
– Theodoro, você está numa UTI de hospital. Você ficou três semanas em coma induzido pelo trauma e posterior infecção. Mas o seu quadro infeccioso está regredindo. Logo você estará sendo transferido para os quartos.
Logo a enfermeira interrompe o médico:
– Doutor, para este paciente, qual tipo sanguíneo devemos ministrar para a transfusão?
Diz o médico:
– O dele é A positivo.