Jogo de Damas, Ernesto Rodrigues

[Revisto por Marcia Marto]

Reunindo os motivos da moura e da dama pé-de-cabra, os estudiosos reduzem estas figurações ao Diabo, que se disfarça numa bela dona.1 Porque não, também, dentro das lendas históricas, atinentes à Reconquista, ou etiológicas, no quadro toponímico? É o que vou demonstrar.

Nasci dentro de uma lenda, na vila de Torre de Dona Chama. Consideram uns que a moura Dona Chama vivia numa torre, no cimo do monte hoje de São Brás, donde vigiava a cristandade. Era, pois, a torre de Dona Chama. Dona pode ser uma forma de tratamento e nome próprio. Cerca de 1320-1340, o trovador Vidal, judeu de Elvas, sofre por uma Dona local. Chamoa, supondo a queda intervocálica em Chamorra / Chamona, evoca Domne Chamoe Menendi, Dona Chamoa Mendes, amante e donatária de Afonso Henriques, encontrando-se outras Chamoas na viragem do ano mil, como nome próprio ou apelido.

Numa segunda versão, a sineta, dobrando-se ao meio-dia, para despegar do trabalho, levava os cristãos, em baixo, no vale onde se ergue a localidade, a entredizer-se: «Na torre, a Dona / dona chama». Dona / dona e chama seriam, portanto, ou nome de senhora, ou forma de tratamento e verbal. Era uma dama ígnea – flamense, preferível a flamulense –, luxúria sem travão, obcecada por corpos de religião adversa, que atrai a si para, cevada a luxúria, os matar em tálamo de prazer: Chama / Chamorra [ou Chamona] / pernas de cabra, / cara de senhora [ou dona].2 A Chamorra, Festa dos Caretos ou de Santo Estêvão, tira daí o nome.

Já se vê a precedência. O título original, “A Dama Pé-de-Cabra – (Conto de junto ao lar)”, tinha, n’O panorama (2-IX-1843), asterisco: «Este conto, no genero phantastico, é tirado substancialmente do titulo 9 do Livro das Linhagens, chamado vulgarmente do conde D. Pedro.» Abre o tomo II de Lendas e narrativas (1851), com a omissão desta nota e troca do subtítulo. Dei a edição crítica em Conto português. Antologia crítica, seguida do texto-base das Linhagens.

Tal universo inspirou a minha novela de estreia, Várias bulhas e algumas vítimas (1980). À escuta do avô sobre a Reconquista, e como os cristãos, em caso de vitória, prometiam lançar uma impossível ponte de vidro entre dois morros distantes, a criança pergunta: «E depois, avô?» «Depois isso. Não fizeram a ponte e pronto.» Seja: não é que não houvesse vidro (de facto, não havia); a beleza da tentação vencida é que não era suficiente. Um escritor dirá: não deverei eu, sobre o abismo branco da página, criar o impossível, transformando a luxúria do verbo em amor às personagens?

Eis a lição da minha princesa, Eugénia, no romance Torre de Dona Chama (1994), que prolonga aquela novela, onde já colocara as versões literárias, oralizantes e históricas, conjugando o nome da terra natal, mas que, agora, eu vinha subverter, em quadro medieval, bakhtiniano. Em poemas, conto e artigos fiz outras homenagens ao berço.

Ao iniciar o romance, a expectativa dos dois narradores – um jovem professor recém-chegado e um jornalista da terra, primo da heroína – assentava neste lugar-comum: se desapareciam homens, é que morriam assassinados pela jovem órfã e rica, acastelada em luxúria. Entretanto, esperavam outros que esta, descoberta em suas maldades, fosse justiçada ou se precipitasse na morte, deixando a riqueza.

Na tradição, a princesa moura é descoberta na figura (pernas de cabra), vício (sexo desenfreado) e crimes (matar amantes) por cristão desconfiado, que, após o amor, não adormece e lhe retira o anel, seu salvo-conduto por corredores de guardas, e que já esporeia cavalo de medo. Quando acorda, espavorida, uivando, os cavaleiros que o perseguem gritam-lhe: «Torna, torna, cavaleiro, que na torre a Dona / dona chama.» No desespero de se ver denunciada, arrasta as riquezas e atira-se a um poço. Mas alguém acrescentou um ponto: que, contíguo, há outro poço, de peste, e que, se nunca houve escavações no monte, foi com medo de bater no da peste, que mataria tudo ao redor.

Com esse suicídio, voltamos ao universo literário tirado da vox populi, e pequeno deslocamento geográfico: em Lordelo, a poucas léguas de Vila Real, situa o Camilo Castelo Branco de Anátema (1851) – estreia em que a circularidade do anel é igualmente fundamental – o castelo a que o povo chamava Torre de D. Chama, sequente à morte de Inês da Veiga:

[…] viu abrir-se aquela janela do meio, viu uma aventesma, amortalhada de branco, chegar à janela e atirar-se dela abaixo! E depois uma voz medonha diz que bradara aqui para estes sítios: Chama!… Chama!… […] As luzinhas apagaram-se, ficou tudo calado e meu pai, vindo para casa contar a passagem, veio aqui quase meio povo e não encontrou nada!… Enquanto a mim aquilo era moura que quebrou o seu encantamento, à voz do seu mouro que pelidava por ela: Chama! Chama! E é por isso que estes pardieiros são a Torre de D. Chama.

Na Imprensa periódica, há um artigo pioneiro no jornal A Torre de D. Chama, de 1-II-1913, por Francisco Manuel Alves:

Chama era o nome próprio de mulher frequentemente usado em Portugal na idade média e mesmo antes de constituída a nossa nacionalidade, como pode verificar-se em documentos desde o séc. VIII por diante e até adoptado pela aristocracia, segundo mostram os Livros de Linhagens no Portugal. Monument. Hist. pág. 145, 148, 158, 168 do 1.º livro, p. 174, 175, 176, 178, 181 do 2.º e ainda em vários outros sítios.

Encontra-se também sob as formas chamoa ou Flamula que se equivalem.

É bem conhecida a riquíssima D. Flamula, uma das mais nobres damas do século X, senhora de várias terras na província de Entre Douro e Minho. […]

A povoação denominada Torre de D. Chama só começa a figurar com este nome no tempo de D. Diniz [seja, na carta de foral, 25-IV-1287], sendo muito provável que a mulher que legou o nome seja uma Dona Chamoa memorada nas Inquirições de D. Afonso III ao tratarem das freguesias de Santa Maria de Serzedo e S. Miguel de Espadanedo – interrogatus unde habuit eum dicit quod audivit dicere quod dona Chamoa una mulier de ipsa vila (Serzedo) leixavit eum pro sua anima in tepore Regis donni Sancii veteris.

Trata-se, pois, de uma dona Chamoa mulher nobre e rica, natural de S. Miguel de Serzedo, povoação que hoje não existe e provavelmente ficava nos limites da actual Torre de D. Chama, que vivia no tempo de D. Sancho II que deixou os seus casais de Serzedo e Espadanedo ao mosteiro beneditino de Castro de Avelãs, junto a Bragança, com encargos de bens d’alma.

De alguma torre que essa dona tivesse como habitação, segundo o costume da época, de que restam similares em Moncorvo (Torre de Mendo ou Men Corvo) e Santa Apolónia, perto de Bragança, ficou o nome à terra da sua principal habitadora, Dona Chamoa, simplificada posteriormente em Dona Chama que suplantou e fez esquecer o primitivo de Serzedo passando assim a designar-se por Torre de D. Chama.

Potentado económico, assim descrito nas hipóteses e na deficiente pontuação do Abade de Baçal, interessava-me para as guerras intestinas entre falsos cristãos e mouros no trabalho, cujo desenlace se dá na Festa dos Caretos, descrita nos seus actos de teatro de rua, que o pintor João Vieira narrou em vídeo (1982) e desde 1984 recriou na série Caretos. A lúbrica dona Chama era causa próxima de revolta no seio da Reconquista, cristãos animados pelo nascimento de Cristo. A preparação do combate final começa na noite de 25 de Dezembro. Na tarde de Santo Estêvão, após quase 24 horas de encenação e luta, estará queimado o castelo da princesa moura. A Festa dos Caretos acaba de ser inscrita no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.

Converge na lenda, sem a carnavalização dos seres e a polifonia linguística que ensaiei, Afonso Botelho, em As Donas Chamam:

A história do Castro, que alguns dizem explicar o próprio nome da povoação, emerge da crueldade com que as erupções se sujeitam mutuamente. Certa Dona que, por insólito desfecho político, dominava o reduto militar satisfazia a sua volúpia com o legionário que mais lhe tivesse despertado o apetite. E chamava a soldadesca para escolher o seu amante efémero, através de um sinal que se ouvia por largo espaço em redor. O desejo da Dona, em vez de ser esperado com gostosa expectativa, provocava nos chamados a maior agonia, pois que, a seguir à satisfação dos senhoriais prazeres, todos sabiam que a morte os esperava. A “dona chama” era a voz que corria do ouvido para o centro dos mais negros pressentimentos. Talvez por ser indelével o sacrifício humano tivesse o topónimo resistido à erosão dos séculos.

Longe deste esboço de topofilia, temos Fascinação, de Hélia Correia, que acrescenta “A Dama Pé-de-Cabra” ao volume, como tela a contrastar. A sua novelística vem, desde 1981, concertando um império feminino pela via da marginalidade e da loucura, enquanto espaços de afirmação da diferença. São, sempre, terras do fim do mundo; e de fim dos tempos ou vidas pessoais.

Fascinação não é diferente: em tempo e lugar indefinidos, com «medo de que o mundo se acabasse», assistimos a um exercício hipertextual «na excepção daquele entardecer». Abre com «luas medonhas», enquanto «discreta narradora» elege Dona Sol protagonista. Quem é Dona Sol? Que importância tinha? Há processos interpretativos, de sinonímia e expansivos que dizem como um autor se apodera de outrem.

Em Herculano, a tónica do quadro familiar crédulo («Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem nas tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.») funde-se em três trovas-capítulos: o discurso exige certos conhecimentos e arrisca a verosimilhança. Podíamos complexificar o caso, porque conto, romance, trova, lenda e narrativa não são a mesma coisa. Mais: de húmus historiográfico bebido no quatrocentista Quarto Livro de Linhagens, ou Nobiliário do Conde D. Pedro, Herculano carreia elementos da História peninsular, a que Hélia Correia se quer alheia.

Transposição de monumento anterior, esta prática hipertextual funde-se em macro-comentário ao texto A, ou seja, deflagra num metatexto inesperado. Reza Herculano: «Por anos, a dama e o cavaleiro viveram em boa paz e união. Dois argumentos vivos havia disso: Inigo Guerra e Dona Sol, enlevos ambos de seu pai.» Mas cedo desaloja o segundo argumento, que sobe nas garras da mãe (após incidente com alão dele e podenga dela, que o leva a benzer-se e quebrar promessa), e, quanto ao primeiro, tendo recuperado o pai da prisão toledana com ajuda materna, saberemos, no penúltimo parágrafo, que «morreu velho: o que a história não conta é o que então se passou no castelo. Como não quero improvisar mentiras, por isso não direi mais nada.»

Fascinação pega nesta aberta, recusando a mera figuração, ou rasura, da filha. E, forte da quebra de interditos, além de apoiada em sugestão incestuosa – «quebrantamento nos membros», «cabeça à roda», etc., a que se oferece Inigo, em troca da salvação do pai – que Herculano desenvolve, Hélia Correia transfere-se para mãe-filha, cumpliciadas na fascinação por Inigo, enquanto o coro de luas, no céu, e o terror de humanos, em terra, anunciam o pior à legião de anjos e seu Senhor, que percebemos combaterem em vão… Esse «bruto apetite do incesto» confundido com amor era «em tudo adverso às convenções da cristandade». Entre comentários a «Episódios de aberta fantasia» e outros, note-se metatexto restrito sobre o «mais fiável» dos relatores do caso, Herculano, na primazia concedida ao masculino no oitocentismo esclarecido.

É da ordem intertextual a revalorização da personagem, modelada pela mãe, que se cumpre em citações e sinais de Herculano, em expansões plausíveis, em achegas da tradição e num puro indiciar que verosimilize a sequência. Isso vê-se neste parágrafo de interrogativa retórica, que ainda nos dá um bónus blimundiano:

E que vida levava Dona Sol, arrancada a seus cães e a seus brinquedos, roubada à companhia do irmão que tudo para ela tinha sido? Pendurada nas garras dessa mãe, cortou os ares três dias e três noites, vendo, do alto, os vales e o casario como jamais algum mortal verá, excepto se o demo inventar obra que o consiga.

Outros exercícios conjugam essa relação intertextual. Menos o nível da sinonímia («pés forcados», «pés fendidos») ou da transvocalização (em que se passa da 1.ª à 3.ª pessoa); mais o da transmetrização (passagem de um metro a outro), em que a sintaxe da oralidade adquire – sobretudo, nas inversões – a nobreza clássica. Conjugando-se com minimalismos repetitivos («se retirava ao retirar-se», «lidador fatigado de lidar», «cantos de tão amável canto») e aliterantes, insistência no fogo do cabelo e da paixão (ruivo, rubro) reforçada por oposições (desde logo, Sol vs. luas), entrevemos estruturas líricas, com que, homologando a narrativa herculaniana, se responde à transmodalização desta, de fácil recurso ao verso e ao modo dramático por recorrente diálogo.

Mas, por cima da coligação mãe-filha contra par inimigo, ou masculino em geral, há leituras da psique talvez preferíveis. Num Herculano pioneiro, Inigo precisa de amadurecer, ultrapassando a relação edipiana: como acontece nos contos de fadas do ciclo da Branca de Neve, a mãe só aparentemente é a má da fita. Dona Sol almeja pelo núcleo familiar originário, que o marido não completa; fixa-se, por isso, no irmão (substituto paterno), exemplo de independência entretanto conquistada. Está, com a aprendizagem entre mulheres (pentear-se e bordar na perfeição), a amadurecer no corpo e nas convenções. Revê-se, do mesmo passo, na beleza e autonomia da mãe, que a incita à conquista, e logo do mais difícil, tais os interditos. A estabilidade infantil assenta nesse apoio e em dedos de sombra (que nem o tocheiro ilumina). Os instintos (baixos instintos, dizem) estão para nascer e é quanto Dona Sol espera, ao levantar a saia. O significado erótico de alguém que olha para os pés podia resumir este argumento. Com o que, o universo treme, de frenesi. Há muito de Bosch apocalíptico e de outros pintores dos séculos XV e XVI, predecessores de Dalí e companhia, na surrealização da natureza, cujo desgrenhamento Herculano inaugurara: «E a mansa almácega refervia, e os penedos rachavam, e as árvores torciam-se, e os ares sibilavam. […] Eram mil e mil braços sem corpos, negros como carvão, tendo nos cotos uma asa, e na mão cada um uma espécie de facho.» Contra defesas e inibições, e alguns anjos-da-guarda, a conquista de si e do ser social em trânsito edipiano é a lição final deste conto.

Da torre ao castelo em que Dona Sol também canta, quais metáforas do corpo a vencer, é um pequeno salto, se entoado pela cantora Elis Regina, noutra Fascinação (1978): «Os sonhos mais lindos sonhei / De quimeras mil um castelo ergui / E no céu olhar tonto de emoção / Com sofreguidão mil aventuras previ // O teu corpo é luz, sedução / Poema divino cheio de esplendor / Teu sorriso prende, inebria, entontece / És fascinação, amor.»

Desejável seria ver na lenda e no conto a «acção corrosiva da mitificação» (Eliade, 1978). Explicitando: «Seja qual for a sua importância, o acontecimento histórico em si perdura na memória popular e a sua recordação só inspira a imaginação poética na medida em que esse acontecimento histórico se aproxima de um modelo mítico.» É a força explicativa deste, a desaguar na pedra de toque do folclore, o exemplar contra o individual:

A memória colectiva é a-histórica. […] Queremos apenas dizer que – independentemente da origem dos temas folclóricos e do talento do criador da poesia épica – a memória dos acontecimentos históricos e das personagens autênticas modifica-se ao fim de dois ou três séculos, a fim de poder participar no modelo da mentalidade arcaica, que não pode aceitar o individual e só conserva o exemplar. Esta redução dos acontecimentos a categorias e das individualidades a arquétipos, efectuada pela consciência das camadas europeias até quase aos nossos dias, processa-se de acordo com a ontologia arcaica.

Neste contexto, como destrinçar, em arquitecturas aparentemente idênticas, conto (do exemplum ao dito de fadas), mito, fábula, lenda? 

As diferenças centram-se, embora não exclusivamente, na figura do sujeito / herói: sujeito em relação ao conto, herói no mito. Deste – na caracterização fundacional (quanto ao sentido e origem das coisas) e simbólica (interpretação impossível a partir da empiria), tomado, sempre, como uma narrativa verdadeira num imaginário primitivo de funda experiência religiosa3 –, evola-se um outro universo de sugestões, já não respostas precisas, umas e outras questionando o mundo, aquelas remetendo, porém, para a iniciação (do sujeito) no mundo, estas para a enumeração das provas heróicas de forma (herói), além de modelar e enfática. (Bettelheim, 1976) Pensando nas três funções de Georges Dumézil – a sua «idéologie tripartie», «organisation trifonctionnelle»: souveraineté, force physique, production, a que correspondem as classes funcionais de prêtres-rois, guerriers, producteurs –, «Il note en particulier que, dans le mythe, l’objet de première fonction a toujours clairement sa valeur (souveraine, sacrée, rituelle, etc.), tandis que cette valeur est le plus souvent dégradée dans le conte» (Del Ninno, 1981).

Nova diferença, que B. Bettelheim tem por mais significativa, respeita ao final, que, nos mitos, «é quase sempre trágico, enquanto é sempre feliz nos contos de fadas». Esse pessimismo versus optimismo molda também a dupla herói / sujeito – aquele conhecendo «uma transfiguração numa vida celestial eterna, a personagem principal dos contos de fadas destinada a uma vida eternamente feliz na terra, entre nós». Mais: temos um herói particular, quase sempre com nome, no mito; anonimato das personagens no conto, «o que facilita as projecções e as identificações». Optimismo e pessimismo que são sublinhados pela presença, no mito, de «personalidades ideais que actuam de acordo com as exigências do super-ego, enquanto os contos de fadas descrevem uma integração do eu que permite uma satisfação conveniente dos desejos do id».

A fábula, nas preocupações de verdade moral alegorizada, em protagonismo animal, mais do que distrair, visa uma imposição do sentido único final, aceitável ou não, aceite ou não, como se houvesse um sentido necessário.

A lenda traz no próprio nome (legenda, o que deve ser lido) o modo imperativo, inquestionável.4 O enquadramento ou tão-só perfume histórico diluem-se em dimensão ideológica, psicológica ou outra, quando não subsiste unicamente o poder transfigurador do maravilhoso.

Comum às quatro narrativas é não só a hipótese de contaminações recíprocas ou transvases, como, dentro de cada uma, quanto Lévy-Strauss (1971) concedeu ao mito: relacionar-se e transformar-se discretamente com outro, sendo cada um o conjunto das suas variantes, sem perda da armadura lógica. A exemplo do mito, conto e lenda podem ter um carácter fundador5 – como tentei mostrar na lenda de Torre de Dona Chama –, e, acrescentada a fábula, também simbólico.

Já não lhes concedo – numa rápida tipologia dos mitos –– a incidência sobre as origens, alheias à contextualização ou empiria, de que gozam os mitos cosmológicos (criacionistas, do caos à ordem) e escatológicos (da ordem ao caos universal, aniquilação e fim dos tempos), de forte carga religiosa. São dúplices os messiânicos: se se retorna ao tempo e lugar paradisíacos, a humanidade em crise e sobressalto requer um chefe, e, daí, a dimensão política. Podem, nesse duplo sentido, absorver os milenaristas; mas também os políticos e filosóficos, embora estes sejam autónomos: quem aceita o soberano, ou ver-se representado em parlamento, abdica de uma liberdade individual a que nem sempre responde capazmente a democracia; quanto aos filosóficos, a promessa de felicidade no comunismo, que também desejou colocar um ponto final na História, não é diferente do messianismo e hodiernos humanitarismos.

Ao, servindo-me da lenda, reivindicar os mouros no trabalho vs. cristãos ociosos e hipócritas, assumo este segmento político; o investimento feminista em Hélia Correia é afim. São tenteios, no mínimo, da «acção corrosiva da mitificação», com que se marca, todavia, a diferença entre mito e lenda.

Notas:

 1M. Lourdes Cidraes, 2014, segundo o Catálogo e Arquivo das Lendas Portuguesas (Univ. do Algarve).

2 Variante, com terceto [Chama, chamona / Tem pés de cabra / Cara de dona!…], está no Boletim do Grupo ‘Amigos de Bragança’, n.º 23, Setembro de 1959: 14. Subtilezas sem propriedade, que não interessa analisar aqui, temos em Maria Fernanda Frazão e em Alexandre Parafita, O maravilhoso popular – Lendas, contos, mitos (Lisboa, Plátano Editora, 2000), 167-168 (ainda em Alexandra Parafita, «Casos de mouras mortas: O mito na sua dimensão cultural e pedagógica», Tellus (Vila Real), n.º 37, Novembro de 2002, 10-17 [17], transcrevendo-se ‘A moura Dona Chama’ a p. 16-17). É ausência em Gentil Marques, Lendas de mouras e mouros (Lisboa, Âncora Editora, 31999 [1964]). Porque não, também, dentro das lendas históricas, atinentes à Reconquista, ou etiológicas, no quadro toponímico?

3 «Ora um facto se nos depara desde o início: para tais sociedades o mito é suposto exprimir a verdade absoluta, porque conta uma história sagrada, quer dizer, uma relação trans-humana que teve lugar na aurora do Tempo, na época sagrada dos começos (in illo tempore). Sendo real e sagrado, o mito torna-se exemplar e, por conseguinte, passível de se repetir, porque serve de modelo e, conjuntamente, de justificação a todos os actos humanos. Noutros termos, um mito é uma história verdadeira que se passou no começo dos tempos e que serve de modelo aos comportamentos humanos. Imitando os actos exemplares de um deus ou de um herói mítico, ou simplesmente narrando-lhes as aventuras, o homem das sociedades arcaicas destaca-se do tempo profano e adere magnificentemente ao Grande Tempo, ao tempo sagrado.» (Eliade [1956], 1990)

4 É a escuta do conto de fadas «comme un divertissement alors que le mythe… le mot lui-même est assez respectueux», pois «La fatalité y fulgure», que os diferencia. (Borges, 1992) Na monografia de Jolles (1929), «le conte est considéré comme une monade indécomposable, comme la première ‘forme simple’, et la spécificité générique des formes simples est tirée de représentations directement incluses dans la langue elle-même. Le conte, d’après Jolles, répond au niveau idéal du mode optatif. Corrélativement, la légende est liée à l’impératif, le mythe, à la forme interrogative.» (E. Mélétinski, «L’étude structurale et typologique du conte», em V. Propp, 1973) Visão depreciativa do folclore («uma força imobilizadora, utilíssima politicamente para dominar o povo que o faz seu»), no confronto com a literatura, está em artigo de F. Lázaro Carreter, no Diário de Notícias (Lisboa) de 5-VI-1980.

5 Entre os «marcadores mais utilizados» distintivos da lenda aceito «a localização precisa da narrativa no tempo e no espaço» (Cidraes, 2014), em parte, seja, em muitas lendas sagradas, históricas, iconográficas, e com dificuldade nas lendas de forças e seres sobrenaturais ou nas etiológicas. Já é diferente, quanto àquelas, reconhecê-las como «suportes de memórias colectivas» e «elementos criadores dessas memórias», com «uma função modeladora da memória de uma comunidade ou de uma nação».

Afonso Botelho, As donas chamam (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995), 38-39.

Alexandre Herculano, Lendas e narrativas (Lisboa, Ulisseia, 1988), passim.

André Jolles, Formes simples (Paris: Seuil, 1972 [1929]).

Bruno Bettelheim, Psychanalyse des contes de fées (Paris: Robert Laffont, 1976), 39, 53, 56, 58.

Camilo Castelo Branco, Anátema (Porto: Caixotim, 2003), 59.

C. Lévy-Strauss, L’Homme Nu (Paris: Plon, 1971), 603.

Ernesto Rodrigues, «Alexandre Herculano, A dama pé-de-cabra», em Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins, coord., Conto português. Séculos XIX-XXI. Antologia crítica (Porto: Edições Caixotim, 2005), 49-60.

Hélia Correia, Fascinação (Lisboa: Relógio d’Água, 2004), passim.

Jorge Luis Borges, Ultimes dialogues avec Osvaldo Ferrari (Paris: Editions de l’Aube / Editions Zoé, 1992), 108.

M. Lourdes Cidraes, As lendas portuguesas. Temas, motivos, categorias (Lisboa : Apenas Livros, 2014), 9, 10, 60, 135.

Maurizio Del Ninno, «Les trois fonctions à Gubbio», em AA. VV., Georges Dumézil (Paris: Centre Georges Pompidou / Pandora Editions, 1981), 293-306

Mircea Eliade, O mito do eterno retorno (Lisboa: Edições 70, 1978 [1949]), 57, 59.

          Mitos, sonhos e mistérios (Lisboa: Círculo de Leitores, 1990 [1956]), 13. Vladimir Propp, Morphologie du conte (Paris: Seuil, 1973), 209.