Império das Rosas, Domingos Tavares Campos

[Revisto por Márcia Marto]

Reza a lenda que, certo dia, D. Isabel rainha de Portugal, carregava pães que intencionava  utilizar para alimentar os pobres. O rei, D. Dinis, alertado pelos gastos que as obras de caridade da soberana comportavam para a fazenda régia, decidiu urpreende-la numa saída sua para auxiliar pobres e necessitados. D. Dinis prontamente perguntou a sua esposa o que levava consigo, pelo que a monarca replicou: “São rosas, meu Senhor, são rosas”. É difícil acreditar que um rei se iria opor à virtude cardeal da Caridade, dignidade régia por excelência, especialmente um monarca de tão boa memória quanto D. Dinis. Urge, portanto, encontrar uma outra explicação para esta estória, assente nos princípios imutáveis do simbolismo e da Sophia eterna, a Ciência dos Símbolos e a percepção da Verdade Imutável que permeia toda a realidade e tradições religiosas.            

Tomemos como axioma, “O Homem é corpo e alma”. 

O que é o Pão? Alimento do Corpo. 

O que serão, analogamente, as Rosas, então? Alimento da Alma. 

De D. Dinis, disse Fernando Pessoa: “O plantador de naus a haver,/E ouve um silêncio múrmuro consigo:/É o rumor dos pinhais que, como um trigo/De Império, ondulam sem se poder ver.”1 As naus, feitas com o trigo que são os pinhais, são o Pão do Império, aquilo que alimenta  o Estado, forma corpórea do Povo Português. 

O significado mistagógico desta lenda é outro: 

D. Dinis ordena à sua esposa não que cesse a práctica caritativa, mas, antes, que a estenda ao Espírito também. Não é coincidência que seja este casal o responsável pela introdução do culto do Espírito Santo à nossa Pátria. O culto do Espírito Santo prende-se com uma corrente católica medieval sustentada por Joaquim de Fiore, que, sumariamente, ditava haver três diferentes Idades da História humana, a saber: a Idade do Pai (o Antigo Testamento), a Idade do Filho (o Novo Testamento) e a Idade do Espírito Santo, que havia de vir, Idade de Fraternidade Universal muito próxima à Idade do Ouro das tradições clássicas. Esta crença foi tida como herética pela Igreja Católica, mas, ainda assim, encontrou defesa no seio das comunidades franciscanas, os Fraticelli, ou Irmãos Espirituais. Mediante cálculos feitos a partir das gerações bíblicas, foi tido como certo que esta idade se inauguraria por volta de 1260. Grande eco teve esta crença na Corte de Aragão, de onde a nossa Santa Rainha proveio, especialmente pela influência de Arnaldo de Vilanova2. Em Portugal, tal culto foi instituído no Mosteiro de Alenquer, protectorado da Rainha Santa, em 1321, segundo nos conta Agostinho da Silva.3

Se o Pão pode alimentar o Corpo, só as Rosas poderão alimentar a Alma. E, se as naus são o Pão do Império, que serão as Rosas? As Rosas são o símbolo tradicional da Santíssima Mãe de Deus, ela que foi o receptáculo perfeito do Espírito Santo. A Rainha torna-se, simbolicamente, portadora do Espírito Santo ao carregar as rosas que haverão de alimentar as almas famintas do Império.

A Morte nada mais é que a separação do corpo e da alma e foi isso que D. Dinis fez aqui: matou Portugal corpóreo para dar espaço ao nascimento de Portugal espiritual, parturido das entranhas de D. Sebastião e tendo como parteiro-mor o Pe. António Vieira e Fernando Pessoa como professor e profeta. Agora, que chegou à idade de assumir o seu Devir, tarda em aparecer quem o ordene e confirme Cavaleiro… 

O Sebastianismo é parte fundamental da vida interior de cada Português e é à luz deste mito que toda a História da Pátria deve ser lida: até Sebastião, tudo foi preparação; depois de Sebastião, tudo foi decepção. O mito da Rainha Santa não deve sofrer tratamento alternativo, mas sim ser lido e enquadrado na grande História do nosso país para que nos possa dar a noção de onde vimos, para que possamos discernir para onde devemos ir. Como disse António Quadros: “No limite, Império do Espírito Santo e Quinto Império são, como veremos, duas faces do mesmo sonho prospectivo”.4

A Arte produz-se quando o Homem, finito que é, se depara com o Infinito, aquilo a que, comummente chamamos de Deus e, na sua ânsia de devorar ou ser devorado pelo mesmo, decide tornar-se veículo das suas mensagens. A isto se chama Amor a Deus. O Destino Quinto-Imperial é, portanto, dos Poetas e Profetas, que comunicam com Deus mediante as intuições que este dá a cada um, que são sublimadas e transmutadas em Beleza sensível pela imitação das formas superiores que habitam em Deus.

Uma Nação só é tão grande quanto os sonhos que tem para si mesma. Sonhemos mais alto e maior: sonhemos Portugal. Que o Espírito grite em cada um de nós, sempre mais altivamente, em uníssono: Portugal, Portugal, Portugal. A nossa Liberdade é o eterno Dever de cumprir o Devir da nossa Pátria. 

O milagre das Rosas é a porta para toda a História de Portugal, que lida com o passado, e para a saudade, nostalgia do futuro por vir. É através desta lenda que a Portugalidade toma consciência de si e se abre à possibilidade de realização. É através deste mito que podemos e, a nosso ver, devemos ler a obra pessoana. Não nos esqueçamos da letra de “Glória do Mundo”, canção de Heróis do Mar: “Amanhã de madrugada/As crianças a brincar/A brincar naquela praia/Oh! Quem me dera saber/Se vão ver sorrir o sol/Sobre o céu do meu país/Ver o rei por entre as rosas/No império que Deus quis”. Tão longe estará o Império quanto cada um de nós quiser. Não nos tornemos “cadáveres adiados que procriam”, mas inspiremo-nos no exemplo de D. Sebastião e doemo-nos completa e inteiramente àquela loucura sacra que, perdendo o país, o salvou.

Notas:

1. Fernando Pessoa, Mensagem, Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972. Página 31. Disponível online em: http://arquivopessoa.net/textos/1292 [consultado a 08-02-2022].

2. António Manuel Ribeiro Rebelo, O apreço da Rainha Santa Isabel pela espiritualidade franciscana, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, disponível em:

 https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/81378/1/Antonio%20Rebelo.pdf, p.97.

3. Recomendamos ainda a leitura de Portugal: Razão e Mistério que contém um excelente capítulo acerca da importância da Rainha.

4.António Quadros, Portugal: Razão e Mistério. A Trilogia. Lisboa: Alma dos Livros, 2020, p. 248.