[Revisto por Sebastião N. Viana]
Acordo no escuro
com os olhos em luz
bocejo, espreguiço-me
liberto-me dos sonhos da noite,
das rugas da colcha bordada a ponto cruz.
Com as mãos moles de sono
acaricio a face lisa
molhada ainda de saliva.
Penso no esforço apaixonado de Leandro
e na espera exasperada de Hero
e vou-me afogando novamente nos lençóis
febril, inocentemente, imaginando
o mar do lado de fora da minha janela,
sem faróis
ou lamparinas que me guiem.
Sinto-me, então, sozinha num mar de gente
rodeada de peixes que não me entendem
e me dão algas secas
e não palavras…
e me dão areia molhada
e nunca palavras…
Acordo no escuro
com os olhos cheios de luz
bocejo, abraço-me,
aconchego em mim os sonhos da noite
e as rugas da colcha bordada,
mas lá fora não há água, nem doce nem salgada
lá fora ouço um pássaro cantar (será preto, castanho, ou da cor do mar?)
Ele canta duas notas:
um dó e um sol
tão melancólicas, verdadeiras
como os ponteiros dum relógio lento
sempre certo, sempre atento.
E nessa altura sinto que tanto o pássaro como
eu
só estamos aqui a matar o tempo.