[Revisto por Mariana Antão]
Non potrai più uscire.
L’ora è passata. La notte
ha chiuso i cancelli.
C’era il sole hai esitato.
Ora nel buio devi restare.
Goliarda Sapienza
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
O Bicho, Manuel Bandeira
Somos sonsos essenciais. Sim, sonsos essenciais; encarceramo-nos em nossas casas, fechamos as portas, as janelas e as cortinas e damos acesso a somente um rastro de luz, que perpassa a fresta da porta principal – pórtico partido para o real, para o palco genuíno da vida, onde verdadeiramente atuamos. Do lado de dentro, há apenas encenação; é no lado de fora que a vida, despida de todo o comodismo situado no lado de dentro, com toda a sua nudez, com toda a sua crueza, se manifesta. Enrodilhados nas teias do consumo, não reparamos na trave que se ergue diante de nossos olhos. Bem, reparamos sim; somos nós que a erguemos, porque a cegueira voluntária é preferível à visão do abominável, porque quem entende desorganiza a casa em que habita. Todavia, ainda que trancada a sete chaves, é passível de ruína. Ainda pela manhã, a minha ruiu.
E então, circundada pelos cacos do que construíra para servir-me de viseira, perdi-me. Quando tive de tirar a máscara, vi que estava pegada à minha face. Ao removê-la, vi-me ébria, e já não mais sabia vesti-la. Percebi que, trancafiados, enveredamos por uma estrada que conduz ao nada. O tudo está ocultado pela trave; no açougue, abriu-se-me ante o contato com duas criaturas miseráveis.
À primeira vista, a fila se apresentou extensa demais a mim. De costume, encontro duas ou três pessoas; hoje, havia quinze. Estranhei a agitação e pergunteiao açougueiro a razão de tamanho desassossego. Respondeu-me que pobres e indigentes o teciam: ele avisara àqueles cuja errância percorria o quarteirão do açougue que, no dia sete, uma secção do estabelecimento seria em sua inteireza dedicada à venda de ossos; um quilograma custaria R$4,00. Reiterou que não venderia quaisquer outros itens pelo valor equivalente ao dos ossos. À espera, observei o compartimento mencionado: de uma tonalidade insípida, a vermelhidão insossa das carnes pregadas naqueles ossos, ali depositados às dezenas (ou, quiçá, às centenas) – ossos miúdos, pálidos e disformes, à semelhança daqueles que adentravam, aos montes, o açougue para consumi-los – saltava diante dos meus olhos. à semelhança daqueles que adentravam, aos montes, o açougue para consumi-los.
O pobre tem de se deleitar com as pequenas alegrias que Deus lhe proporciona; não lhe sendo acessíveis as rotas da vaidade e da exigência, qualquer novidade germina diante de si como um vento favorável. Habituado às intempéries cotidianas, uma oportunidade de consumir carne bovina, verdadeira bonança, não poderia ser desperdiçada, não é? A ele resta o joio; onde há ausência de utilidade ao olhar do comprador já enredado nas teias do consumo, delineia-se o seu espaço.
Quando meus dedos roçaram as sacolas, notei uma mulher de pouco mais de vinte anos, de uma magreza doentia, de cabelos ralos e negros, presos num coque da grossura do punho de uma criança. Seus olhos, isentos de quaisquer comoções, nus em vivacidade, pareceram-me olhos mortos; era como se seguisse, à risca, o mandamento dantesco cristalizado no frontispício do Inferno – «lasciate ogne speranza, voi ch’intrate». Talvez os miseráveis, ao abrirem seus olhos pela primeira vez, recebam a consciência de que o mundo não é para eles, a consciência de que devem abortar toda a esperança que venham a fecundar em algum momento da vida.
A nova Fantine embalava uma criança junto ao seio. Pequenina, seus olhinhos se destacavam na face miúda. Eram muito negros, espantados e, quem diria?, cintilantes. Mas o brilho dos olhos infantis já se esvanece ante as primeiras compreensões do combate a ser travado com a miséria. As traves não podem ser utilizadas por todos como artífice para encobrir o real; poucos são aqueles capazes de se trancafiar. Outros, ao contrário, lutam por removê-las, pois as Moiras já fiaram obstáculos demais em seus caminhos. Os olhos da criança, portanto, já se tornarão, como os da mãe, grandes olhos de madeira: olhos que, há muito, abandonaram a consciência; que, há muito, perderam a capacidade de penetrar na raiz daquilo que os assombra para questioná-lo; olhos que, há muito, saltaram da observação arguta ao automatismo, do entusiasmo à percepção inerte. Esses olhos despedem-se da sensibilidade das coisas e apresentam-se diante da resignação. No rápido compasso dos acontecimentos iníquos que lhes são direcionados, não há espaço para a luta: o sofrimento contínuo desagua numa revolução paradoxal: a revolta torna-se morbidez; a reivindicação, ante o indigno que atravessa a vida, silêncio.
O porquê?é então substituído pela inércia ante a certeza de que a aurora poderá trazer consigo mais feridas no peito e mais marcas na pele. É, talvez terá de ser assim; e será.
Contando moedas na palma da sua mão seca, percebeu que a quantia trazida consigo era suficiente. Ali mesmo, diante de todos os que estavam no açougue – diante dos outros miseráveis e diante de nós, os sonsos essenciais –, abriu a sacola e segurou, com firmeza, o maior osso dentre os que comprara. Colocou-o na minúscula mãozinha da filha, que, com voracidade, o prendeu no meio dos seus dedinhos e o levou à boca.
A criança chupava aquele osso com uma força descomunal; entregava-se a sacudidelas e ao ranger de seus nervos prematuros. Chupou-o até que o último fiapo de carne crua quase dali se desprendesse. A energia gasta foi tamanha que, após a façanha, vi-a com os olhinhos sonolentos. Deu à mãe a sobra e logo adormeceu.
A mulher chupou, com uma força horrenda, o osso já chupado pela filha. Mal havia ali resquícios de carne. Talvez não se quisesse dar ao luxo de comer algum dos ossos inteiriços recém-comprados para não desperdiçá-los; é possível que outras bocas precisassem de ser alimentadas com eles. A fome era imensa, mas imensa também era a dificuldade de ganhar dinheiro para saciá-la.
Nesse instante, a trave se distanciou de meus olhos; houve o germe da vida sobre a matéria morta que os constituía. Nesse instante, circundada pelos cacos do que construíra para servir-me de viseira, perdi-me, pois quem entende desorganiza.
Vendas tapavam os meus olhos, encobrindo a pobreza miserável que, há pouco, testemunhei. A pobreza é impertinente porque seus gemidos famintos perturbam o nosso sono – o sono dos sonsos essenciais.
Cheguei à conclusão de que aqueles miseráveis estão situados no mesmo labirinto no qual esteve Astérion. Se Minotauro foi posicionado no labirinto para permanecer estrangeiro ao campo de visão dos homens, assim também o são os miseráveis. A saída do labirinto é-lhes dificultada a todo momento; amiúde, mantêm-se ali aprisionados do nascimento à morte – suas vidas se findam naquele círculo de miséria no qual já se encontravam ao vir à Terra.
Desorganizei a mim mesma e, agora, desalinhada em relação à rotina morna de outrora, decidi assumir o propósito de desorganizar outros sonsos essenciais, pois é necessário que a casa de Astérion – a morada dos miseráveis errantes – seja vencida.
Sei que a venda de ossos alimenta o aprisionamento ao labirinto. Serão as engrenagens legislativa, executiva e judiciária capazes de vencê-lo?
Sei que a comercialização de ossos está autorizada pela legislação nacional, mas também sei que sobre ela recai o poder de polícia também incidente sobre as relações de compra e de venda costuradas à manipulação alimentícia. Sei que não há qualquer interdição da legislação sanitária quanto à venda de ossos bovinos em açougues; porém, sei – e sinto – também que a venda dos ossos para os miseráveis é desumana. Mediante os olhos do direito, penso que aí se ergue uma ruptura com o princípio do equilíbrio contratual; é certo que vige, nessa vereda, uma onerosidade excessiva imposta aos consumidores; é nítido que o empresário se mantém em situação de vantagem.
Mediante um olhar humanitário, ainda, sei que fome é obscena. E esta consciência basta para justificar a luta.
O fio de Ariadne já será capaz de conceder vitória a Teseu? Serão as artimanhas labirínticas vencidas? Faço-me tantas perguntas; ao mesmo tempo, sinto-me inábil para responder.
Mas ensaio, em minha mente desorganizada, uma nova trama: talvez ao juiz caiba o lugar outrora ocupado por Teseu; ao legislador, o de Ariadne. O fio talvez possa ser substituído pelas normas jurídicas plausíveis de serem evocadas.
Posso estar judicializando a vida em demasia? Sim; todavia, acredito que, em virtude de o direito estar entranhado no cotidiano das relações humanas, a sua aparição seja necessária para a resolução do conflito.
Notas:
1.Conforme o art. 51, IV, do Código de Defesa ao Consumidor Brasileiro deixa assente, cláusulas contratuais relativas à prestação de serviços ou ao oferecimento de produtos que determinem obrigações consideradas iníquas, que estabeleçam uma situação de desvantagem excessiva do consumidor ou que se contraponham aos princípios da boa-fé ou ao da equidade são nulas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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