A maldição da escravidão: assombrações no sertão brasileiro, Ricardo Mendes Mattos

[Revisto por Mariana Antão]

Nos sertões da Vila de São Pedro de Catuçaba (São Luiz do Paraitinga, São Paulo, Brasil), as memórias da escravidão transformam-se em lendas de assombração. Cativos fugidos tornam-se lobisomens, crianças amputadas viram sacis e senhores vagam como almas penadas pelas madrugadas. Conta-se que há uma senzala cujas paredes ainda hoje escorrem o sangue de escravizados torturados. Mesmo quando cuidadosamente pintadas, teimam em jorrar as aflições. Trata-se de uma metáfora ilustrativa para enveredar por estas estórias fantásticas dos sertões brasileiros: por mais que se pinte as paredes e se tente encobrir um passado difícil de ser lembrado, suas marcas permanecem pulsantes como sangue.

Muitas dessas lendas de assombração foram registradas no documentário Assombração da Escravidão (2021). Surpreende o fato de que descendentes de escravizados e de senhores não falem abertamente sobre o período da escravidão brasileira, cujas memórias são sofridas para os primeiros e vergonhosas para os últimos. Contudo, a senda aberta pela lenda permite compreender como os sertanejos de hoje perpetuam a história de seus antepassados, fundamental na constituição das comunidades caipiras brasileiras.

Tais lendas foram colectadas durante uma pesquisa etnográfica sobre a cultura popular de uma pequena comunidade rural tradicional, realizada desde o ano de 2015. Mais do que enveredar pela historiografia da escravidão na região ou pela literatura oral brasileira, temos o objetivo de apresentar aqui a recolha dessas lendas populares (muitas delas inéditas) e refletir sobre os sentidos que os contadores de histórias lhes atribuem. Partimos do pressuposto de que a aura fantasiosa presente nos casos de assombração constitui uma via de expressão das memórias do passado, característica das culturas orais tradicionais, especialmente quando versam sobre assuntos coletivamente recalcados.

Grande parte das histórias narradas a seguir são atribuídas à lendária Fazenda Santana, fundada em 1861 por Manoel Antônio Domingues de Castro – conhecido na comunidade pela alcunha de Mané Santana. A família Domingues de Castro acumulou grande poder económico e político durante o período da escravidão, elegendo quatro deputados provinciais, recebendo o seu patriarca o título de Barão do Paraitinga e conquistando a condecoração de Cidade Imperial à São Luiz do Paraitinga da época. A Fazenda Santana, que no inventário do ano de 1872 contava com 127 escravizados, dedicava-se à monocultura do café e do algodão. Com a abolição da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888, libertos e descendentes de senhores, principalmente portugueses e franceses, constituíram as expressões da cultura popular que caracterizam a comunidade caipira. Assim, as lendas sobre a escravidão permitem adentrar numa espécie de mito fundador da coletividade, uma vez que a monocultura cafeeira foi fundamental para o povoamento da região e para a vinda das famílias que formaram a vila de São Pedro de Catuçaba.

Ilustração 1 – Fazenda Santana

Fonte: documentário Assombração da Escravidão (2021)

Roda D’Água genocida

Há uma lenda muito conhecida no sertão sobre a grande Roda D’Água da Fazenda Santana. Zé Leite, mestre de cultura popular, conta que quando nasciam filhos de escravizadas a senhoria vinha para fazer uma tenebrosa avaliação. Aqueles que possuíam a “canela fina” eram considerados aptos para o trabalho; ao passo que aqueles da “canela grossa” eram associados à gula e à preguiça. Estes últimos eram jogados nas engrenagens da grande Roda D’Água e seus restos mortais eram utilizados para alimentação dos porcos criados na fazenda.

Essa lenda é contada, com poucas variações, por inúmeros anciãos da comunidade. As suas expressões, de compaixão ou revolta, noticiam o genocídio cruel da população escravizada. José Marcolino, neto da última mucama da Fazenda Santana, descreve os patrões como “carniceiros”; conta, inclusive, que, em sua infância, muitos colegas faziam chacota por possuir a “canela grossa”, dizendo que se fosse no tempo da escravidão ele não teria sobrevivido.

Ilustração 2 – Roda D’água da Fazenda Santana

Fonte: documentário Assombração da Escravidão (2021)

A Verdadeira história do Saci Pererê

Mestre Renô Martins de Castro conta aquilo que considera a verdadeira história do saci – figura sobrenatural muito conhecida no Brasil por sua negritude e pelo fato de possuir uma única perna.

No tempo da escravidão era muito comum os senhores assediarem, abusarem e estuprarem as escravizadas. Certa feita, o patriarca engravidou uma negra e ficou muito preocupado com a reação de sua esposa, se soubesse do ocorrido. Dessa forma, assim que a criança nasceu, o senhor apontou a sua espingarda com intenção de matá-la, e disparou. O tiro atingiu a perna da criança, pois o fazendeiro fraquejou ao pensar que, afinal, era seu filho. O senhor pediu que os capatazes jogassem a criança no mato, com a perna amputada, para que as formigas a comessem. Magicamente, entretanto, esse menino negro foi protegido pelos seres sobrenaturais da mata e tornou-se o Saci Pererê. As diversas peraltices atribuídas a esse menino traquina – como dar nós na crina dos cavalos, roubar alimentos no fogão à lenha ou criar qualquer desordem – são, segundo Renô Martins, formas de o menino se vingar de seu pai: o senhor da fazenda.

Renô Martins observa que o facto se repetiu com uma menina que, juntando-se a seu irmão, foi a progenitora dos primeiros sacis que fundaram uma grande comunidade de crianças traquinas. Tal como a lenda da Roda D’Água, a verdadeira história do saci denuncia a crueldade com crianças escravizadas recém-nascidas. Contudo, a sobrevivência do saci traz um novo elemento que se repetirá em muitas outras lendas: as travessuras das crianças como um ato legítimo de vingança que, celebradas com aprovação pelos sertanejos, simbolizam uma justa lição às atrocidades dos senhores.

Lobisomem fujão

Personagem consagrada de muitas lendas brasileiras, o lobisomem é um sujeito que se transforma em horrendo lobo durante as noites de lua cheia. Seu Nézio narra que uma criança recém-nascida fora devorada pelo lobisomem, deixando estraçalhadas suas vestes de cor azul celeste. A notícia rapidamente se espalhou pelos sertões e, pela manhã, o feitor da Fazenda Santana observou que um dos escravizados possuía farrapos de lã azul entre os dentes.

Na seguinte noite de lua cheia, o feitor, desconfiado, ficou de sentinela para vigiar o escravizado suspeito. De facto, quando a lua cheia despontou entre as montanhas, o escravizado correu para o mato, desnorteado. O feitor pôde ver o momento em que o negro se despiu, deixando as roupas viradas do avesso, transformando-se em lobisomem e entrando na escuridão da noite. Reza a lenda que se as roupas do lobisomem forem viradas do lado direito, o sujeito jamais consegue vesti-las e transformar-se novamente em humano. Foi o que fez o feitor, para se vingar do lobisomem: virou suas roupas do lado direito e o escravo jamais retornou à Fazenda Santana.

Ao concluir a sua versão da lenda, Seu Nézio rememora que o escravo foi visto, muitos anos depois, numa outra fazenda cafeeira dos sertões adjacentes.

Tal como a narrativa do saci, a lenda do lobisomem novamente associa os afrodescendentes a feitos fantásticos e seres sobrenaturais. Em São Luiz do Paraitinga é muito comum a associação do povo negro aos feitiços, ou “mandingas”, como uma forma subtil de intolerância religiosa que vincula rituais afro-brasileiros a práticas mágicas maldosas (a tal magia “negra”).

Contudo, em ambos os casos, a tal espiritualidade afrodescendente é utilizada como forma de revolta: o saci ao vingar-se da violência dos senhores e o lobisomem, no fim de contas, ao fugir do cativeiro. Poderíamos até imaginar que as lendas sobrenaturais são formas de registar as rebeldias escravas: seja na figura do lobisomem como “negro fujão”, seja na “sacizada” que forma um verdadeiro quilombo de afro-brasileiros escondidos no ermo da mata.

O estrume na comida

Benedito Prado, mestre de um cortejo devocional à São Benedito (a Congada), relata duas lendas sobrenaturais em torno do destino de Mané Santana – patriarca da fazenda em que se noticiam as atrocidades contra os escravizados.

Mané Santana estava atormentado pelo facto de não se conseguir alimentar adequadamente: sempre que a mesa estava posta para refeição, vinha uma terrível ventania que cobria todos os alimentos com esterco de burro. Descendente de escravizados da Fazenda Santana, Prado atribui o facto sobrenatural a um castigo sofrido em virtude de haver maltratado muitos cativos.

Essa mesma maldição atormentou Mané Santana na ocasião da sua morte. Conta-nos Benedito Prado que houve um grande cortejo até a Igreja católica local para carregar o caixão do falecido. Antes de adentrarem na terra santa, contudo, o padre local parou o cortejo fúnebre e solicitou que abrissem o ataúde. Para surpresa de todos, havia ali unicamente um cacho de bananas.

Para o contador de histórias, o misterioso sumiço do corpo do defunto foi obra de uma maldição que o impedia de ser enterrado em solo sagrado. Dessa forma, não alcançaria a salvação eterna prometida aos verdadeiros cristãos, em virtude dos muitos pecados cometidos contra os escravizados.

Tal enredo será a tónica de outros casos de assombração relatados adiante. As estórias do esterco e do sumiço do corpo do defunto parecem revelar a desaprovação da comunidade em relação aos atos do algoz, assim como a convicção de que fora amaldiçoado e castigado por força divina.

Sangue na senzala   

A lenda mais comentada sobre a Fazenda Santana menciona uma senzala em que os escravizados eram mortos em torturas. Diz-se que há,  numa das paredes, uma mancha de sangue que jamais cessa de jorrar o sangue dos açoitados. Mestre Zé Tomé, afro-brasileiro que trabalhou na Fazenda Santana na sua juventude, comenta que tentaram pintar a referida parede inúmeras vezes, mas, em poucos dias, reaparecia a mancha de sangue fresco.

Acredita-se que o sangue sobrenatural é evidência da presença de escravizados que não conseguiram abandonar o local após a morte violenta. Por esse motivo, a fazenda permanece assombrada até os dias atuais. Não apenas os espíritos dos escravizados torturados permanecem no local. 

Ilustração 3 – Ruínas das Senzalas da Fazenda Santana

Fonte: documentário Assombração da Escravidão (2021)

Boiada assombrada

Um dos desejos de Manoel Antônio Domingues de Castro aos seus herdeiros era aquele de não venderem uma boiada de sua estimação, utilizada nos carros de boi e arados da fazenda. Contudo, José Marcolino narra que os filhos do fazendeiro negociaram a venda após a morte do patriarca e amealharam a boiada na antiga cocheira, para ser retirada pela manhã pelos seus compradores. Grande surpresa ocorreu quando, com os primeiros raios da aurora, a boiada não se encontrava mais no local, retornando ao pasto do qual foi retirada. Tal lenda, na opinião de José Marcolino, leva a crer que o finado Mané Santana ainda vive no local, resguardando os seus pertences e assombrando a fazenda.

O trole assombrado

O trole assombrado de Mané Santana é, sem dúvida, a lenda que mais tira o sono aos moradores da vila de São Pedro de Catuçaba. A opulenta carruagem do fazendeiro era puxada por quatro burros e conduzida por um serviçal chamado Guilherme. Após a morte do fazendeiro, muitos moradores ainda ouvem os rangidos do trole ao atravessar o povoado, assim como os gritos de Mané Santana: “Toca, toca Guilherme”, ordena o condutor imperativamente.

Dona Lia, moradora do sertão do Rio do Chapéu (nas imediações da Fazenda Santana) conta que, ainda hoje, as pessoas não saem de casa durante a noite, com medo da carruagem assombrada. Relata a estória de dois vizinhos que estavam retornando aos sertões, de madrugada, pela mata circunvizinha. De repente, ouviram um sonoro grito de bode, seguido de forte ventania: era o alerta de que o trole assombrado estava naquelas paragens. Os viajantes correram desesperados, conseguindo fugir da perseguição do trole apenas ao raiar o dia.

Mestre Renô Martins de Castro, contudo, observa que já não se ouve mais falar no trole assombrado nas ruas calçadas do povoado. Segundo a sua opinião, Mané Santana vagou como alma penada por mais de um século, pois “nem o inferno o quis”, em virtude dos crimes que cometeu. Entretanto, passado o seu tempo de expiação dos pecados, Renô Martins acredita que a assombração não mais ocorra, pois a alma penada conseguiu outro destino.

A maldição da escravidão

Após a abolição da escravidão, em 1888, o Brasil entrou no seu período republicano, no ano seguinte. A tónica do discurso republicano era de que as atrocidades da escravidão maculavam o exercício da cidadania numa sociedade fraterna. Houve uma ciência racista e eugenista que sugeriu a extinção da raça negra através da miscigenação com imigrantes europeus. Houve a queima de arquivos públicos como tentativa de esquecimento da escravidão. Contudo, além dessas medidas mais extremas, houve um consenso falacioso que anunciou a vitoriosa democracia racial brasileira: pautada na confraternização entre portugueses, africanos e indígenas.

Conhecida como o mito das três raças, esta lenda nacional brasileira penetrou nos sertões a partir da convicção de que não há racismo no país. – “Na roça, não há raça” – ouvimos de muitos dos interlocutores desse ensaio. Trata-se de uma afirmação cotidiana que ratifica a necessidade de apagar as memórias da escravidão, cujos acontecimentos desmascarariam o mito.

São exatamente os casos de assombração anteriormente narrados que constituem a

principal memória da escravidão nos sertões de Catuçaba (nome tupi que significa “terra de gente boa”). Não podendo falar abertamente sobre a escravidão, recalcada pelo mito da confraternização racial, os sertanejos perpetuam as lendas como forma de manter vivas as memórias dos seus antepassados. A moral da história, subjacente a essas lendas, parece ter um fundo comum: a escravidão foi uma maldição, que assombrou o sertão com a desumanização de senhores e escravizados, sendo estes últimos açoitados em relações étnicas intolerantes e violentas. É imprescindível que a igualdade racial no país possa ser construída por cidadãos críticos, que saibam reconhecer nas lendas e mitos, do passado e do presente, um processo de construção da sua própria história.

Referências:

Assombração da Escravidão. Documentário de Ricardo Mattos e Sabrina Prado. 2021. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=-AD3M_br8PI> Acesso em 10 de janeiro de 2022.