[Revisto por Sebastião Viana]
A primeira coisa que fazemos ao nascer é respirar. Sentimos um ar que nos corta, da faringe aos pulmões, e é tão frio e novo e tão surpreendente, que choramos. Quando Beatriz conheceu a avó Emília, achou impossível que ela tivesse nascido neste mundo com uma aparência diferente. A sua alma era velha, talvez mais do que o corpo, e ela nunca fora um bebé. A avó viera ao mundo assim e nem sequer chorara. Não, ela sempre fora assim. As mãos grossas e brutas, a pele sempre suja de terra, os cabelos despenteados sempre escondidos pelo chapéu de flanela e aquela cara encolhida sem lábios. O cheiro a éter da roupa e da sala das borboletas fazia Beatriz desejar estar em todo o lado menos ali. No entanto, foi ali que ela soube, ou passou a desconfiar, da continuidade da vida após a morte. Ficou com a certeza de que avó viera assim ao mundo: velha, de pele áspera, de voz rouca, de cara enrugada sem espaço para lábios que sorrissem e sem chorar. A tua avó sempre esteve sozinha, explicou-lhe a mãe. Só sai de casa para fazer compras e apanhar borboletas… mas gostava imenso que fosses lá passar uns dias, pode ser Beatriz? Beatriz virou-lhe as costas, chateada, mas acabou por dizer que ia. Não queria ficar numa casa estranha sem a mãe, numa aldeia deserta, onde nem um parque existia… mas gostaria de conhecer as tais borboletas que a avó coleccionava. No entanto, o destino das borboletas preocupava-a. Será que a avó as guardava numa gaiola para que pudessem voar sempre, inconstantes, livres para saírem quando quisessem? Mais tarde, iria aprender com a avó tudo sobre a metamorfose das borboletas e sobre a sua curta vida. Só duram, no máximo, um mês. É, então, por isso que voam tão rápido, com tanta pressa? Pensou Beatriz, depois de ler umas páginas da enciclopédia que a avó lhe emprestara.
Beatriz também se lembrava do dia em que a avó a levou pela primeira vez a procurar borboletas. Chorou um pouco quando percebeu que as matava com éter. Um choro sem lágrimas, interno e subtil. Mas acompanhou-a na mesma. Numa mala velha e gasta, a avó levou o bloco de notas, uma caneta, um frasco de éter, uma pinça e um envelope. Pediu à neta para se manter atenta ao chão e ao céu, ajeitou o seu chapéu de flanela e deu-lhe a rede com que apanhava as borboletas. Avó e neta caminharam em silêncio durante dois quilómetros debaixo do Sol quente. Beatriz recordava o dia anterior, quando pôde finalmente pegar numa borboleta com a pinça e colocá-la numa das caixas da avó. Antes de a sepultar no seu eterno expositor, aproximou-a dos seus olhos e sentiu um arrepio. Era horrível toda aquela beleza… todas as cores e riscas, pintadas, desenhadas por quem? Não lhes toques com a mão, Beatriz! Avisou a avó. Beatriz respirou fundo, tão fundo, que uma das asas mexeu… ela só queria sentir, saber se aquelas asas eram feitas de veludo… Não lhes toques! Só com a pinça, já te avisei! Como a sala das borboletas cheirava a éter, Beatriz abria sempre uma das janelas para que as borboletas pudessem respirar e imaginar que estavam livres, a voar pelos campos, como nos velhos tempos, a comer néctar de todas as flores. A avó não gostava e, quando sentia a mínima brisa, repreendia-a e fechava a janela. A mãe não lhe contara muita coisa sobre a vida da avó. Só sabia que o avô nunca a deixava sair de casa quando era vivo. Prendia-a a ele. Só saía para fazer compras e apanhar borboletas. Quando o avô morreu, a avó não chorou. Ficou sozinha, mas presa na mesma. À casa, à memória dele, às borboletas.
No dia anterior à tua visita, disse-lhe um dia a avó, entrou uma borboleta pela janela. Não costuma acontecer. Nunca abro as janelas e elas nunca entram. Dizem que, quando isso acontece, vêm para anunciar a morte ou uma visita. A tua mãe ligou-me e, no dia seguinte, tu vieste. Beatriz sorriu, pois pensou que a avó estivesse contente por ela estar ali, mas tinha a mesma expressão de sempre, sem lábios e muito séria. Ensinas-me tudo sobre borboletas? Perguntou Beatriz. A avó dirigiu-se à estante e dela retirou um livro muito grande e pesado. Toma, disse. É uma enciclopédia sobre borboletas. Sabes ler, não sabes?
Beatriz lembrava-se de todos os detalhes da casa da avó, da viagem longa até lá no carro barulhento da mãe, do dia quente e abafado, da casa triste sem tinta nem flores, do silêncio e do ar asfixiante, quase claustrofóbico, de todas as divisões da casa. Só gostava de estar na sala das borboletas. Abria a janela às escondidas, inventava uma história para cada uma delas, imaginava que a avó a levava a viajar pelo mundo em busca de borboletas nunca antes vistas… bem, para isso, teria de ter uma avó diferente e menos presa. A avó Emília só parecia realmente existir quando estavam na sala das borboletas e ensinava a neta a prepará-las para a sua colecção. Ali, avó e neta existiam, estavam ligadas apesar do silêncio, do isolamento, da lonjura de tudo e de todos. Naquele dia, quase chocou contra um pinheiro. Estava concentrada na sua busca e decidiu desobedecer à avó. O seu objectivo era encontrar borboletas no chão, já mortas. Mas aquele pinheiro… olhou para cima, assustada, e viu uma borboleta magnífica a voar em redor da árvore. Media cerca de trinta centímetros e era assustadora. Mais tarde, a avó disse-lhe que era uma mariposa (pois era nocturna) e que era impossível ela estar naquela zona do mundo. A bruxa-branca era originária da América do Sul. O Sol estava enorme e alto naquele dia. A avó devia estar enganada, pensou, ou então mentiu-me. Beatriz quis esconder aquela descoberta e adiar o destino da mariposa, mas quando a viu soltou um aaahhh! de admiração e horror e deixou cair a rede no chão.
Para além dos quadros que enfeitavam as paredes da sala das borboletas, a avó tinha dezenas de caixas de madeira que conservavam diversos espécimes de insectos. Beatriz passou grande parte do seu tempo a observá-las, uma a uma, lendo os nomes complicados escritos em latim nas etiquetas. A avó não a deixava abrir as caixas. Tudo na sua casa era fechado, oculto, intocável. Achas que elas fogem se eu abrir? Perguntou Beatriz. Sua tola, respondia a avó, estão mortas! Também se lembra de se sentir constantemente desiludida. Não gostava de ver as borboletas penduradas e imóveis. Desiludida por perceber que, afinal, elas não ficavam numa gaiola ou numa espécie de aquário a voar sempre, inconstantes, livres para saírem quando quisessem. Os defeitos da avó intensificavam-se de dia para dia. As rugas da cara ficavam mais pronunciadas, as mãos cresciam, pesadas, a voz tornava-se profunda, embargada. E os olhos… os olhos dela, nunca tinha reparado antes, eram cinzentos e muito húmidos. Era como se a avó estivesse a passar por uma metamorfose.
Tens de ser tu a matá-la, disse a avó, segurando a rede que prendia o corpo frágil da borboleta contra o pinheiro. Agarra no frasco, Beatriz! Bastam umas gotas de éter no corpo dela. Morrerá rápido. Mas Beatriz não queria. Só se me deixares tocar-lhe! Suplicava. Está bem, combinado. Agora mata-a antes que a deixe fugir!
Quando a mãe chegou para a levar de volta a casa, perguntou-lhe o que tinha acontecido. A enciclopédia estava no chão, aberta, e a sala das borboletas toda desarrumada. Algumas das caixas de madeira tinham caído e estavam partidas, e o material da avó espalhado pelo chão. O que aconteceu, Beatriz? Os bombeiros levaram o corpo da avó numa maca. E agora? O que aconteceria às borboletas? Alguém tinha de ficar com elas… A janela, entreaberta, deixava entrar uma aragem fresca que a chamava para a rua e iluminava o caos da sala. Por momentos, as borboletas ganhavam vida. Mas o que aconteceu Beatriz? A mãe chorava. Depois de matar a mariposa rara, a avó deixou Beatriz colocá-la no envelope. As suas asas eram brancas e centenas de linhas pretas, cinzentas e castanhas traçavam formas hipnotizantes. Queres tocar numa asa? Perguntou a avó. Beatriz hesitou. Tinha medo do que iria sentir. Será que, ao tocar-lhe, retiraria a cor? Não quero, avó. Agora não. Quando chegaram a casa, a avó pegou na enciclopédia e, por fim, escreveu o nome da borboleta no seu bloco de notas: thysania agrippina, conhecida por bruxa-branca.
A avó colocou a mariposa numa trave de madeira. Prendeu-lhe o tronco com um alfinete e abriu-lhe as asas com muito cuidado, colocando diversos alfinetes ao seu redor. Beatriz mantinha-se quieta e de respiração suspensa sempre que as mãos pesadas e gigantes da avó posicionavam as asas na trave, bem abertas, para que ficassem para sempre em posição de voo. Um voo simulado e preso. Falso. O que aconteceu, Beatriz? A avó entrou e a borboleta já tinha desaparecido. Bateu-lhe com a enciclopédia no ombro e chamou-lhe mentirosa. Não sou mentirosa, avó. A borboleta voou. Fugiu pela janela. Bateu-lhe no ombro, gritou muito e Beatriz tentou explicar-lhe que era um milagre. Se calhar não a matei, avó! Mas ela não acreditou. Onde a escondeste? Gritou. Beatriz tapou a cara com as mãos para não ver a face vermelha da avó, que começava a vasculhar a sala, procurando pela bruxa-branca e atirando tudo ao chão.
Depois, ela pôs a mão no peito assim como se segurasse alguma coisa e caiu no chão, mãe. Contou Beatriz. Ainda sentia a pancada que a avó lhe dera no ombro, forte e seca e muito injusta. O que aconteceu, Beatriz? Era tudo o que a mãe conseguia dizer. A avó tinha saído por instantes da sala e ela, Beatriz, tinha, por fim, tocado na asa da bruxa-branca. Era macia como imaginava. Olhou para o dedo e estava branco, da cor da asa, como quando tocava no giz da escola. Assustou-se. A asa mexeu-se e, pouco a pouco, toda a borboleta estremecia como se tivesse levado um choque. Não conseguia soltar-se e começou a bater as asas muito depressa. O único alfinete que a prendia era o que a avó colocara no seu tronco. Beatriz aproximou-se, ofegante, e retirou o alfinete. Como era horrível toda aquela beleza! Depois, a avó entrou.
Olhou pela janela e viu o corpo da avó ser transportado para a ambulância. Lembrou-se da bruxa-branca. Olhou para o campo, para as ervas, para o céu, mas ela fugira sem voltar para trás. E foi ali que ela soube, ou passou a desconfiar, olhando o corpo morto da avó, que a vida tinha continuidade mesmo após a morte. Uma borboleta saíra debaixo do lençol branco que tapava a avó. Era castanha, pequena e ágil. Voou por uns instantes em redor da maca, talvez para observar o seu antigo corpo e, por fim, abandonou o local para voar e desaparecer para sempre. Para sentir a vida entre as asas durante os poucos dias que lhe restavam, em liberdade. E Beatriz lembrou-se daquele mito que dizia que as borboletas eram as almas dos mortos. Abandonavam os corpos quando começavam a arrefecer e fugiam. Só depois da morte eram livres. Era assim que as borboletas nasciam e renasciam para sempre, pensou. Quando vêm ao mundo, as borboletas não choram como nós. A primeira coisa que fazemos ao nascer é respirar. Sentimos um ar que nos corta, da faringe aos pulmões, e é tão frio e novo e tão surpreendente, que choramos. A avó não. Ela já veio ao mundo assim e nunca chorou.