Dossier: Eros

Parafilias (ou o maravilhoso horizonte da representação em segunda ordem)

Texto de João N.S. Almeida.

Nesta secção pretendemos apresentar uma lista, não absoluta nem extensa mas algo abrangente, uma selecção das mais interessantes expressões do imaginário humano para a fantasia sexual. Eis aqui então uma breve mas muito colorida colecção do mundo fantástico das parafilias sexuais, sobre a qual recomendamos a obra pioneira de Krafft-Ebing, Psycopathia Sexualis (1886), precursora de Freud. A lista, uma tão diversa e mentalmente estimulante colecção de invenções, elucida-nos sobre o universo fantástico e inesgotável da capacidade humana para enunciar representações de segunda e terceira ordem sobre os objectos originais, ou, como também é conhecida, a capacidade para a arte. Podem ler algo mais sobre o assunto aqui.

Antes de enunciarmos a lista, queríamos lembrar como os critérios que regem a classificação de parafinai (ou fetiche, ou desvio, ou aberração, etc.) não são critérios objectivos, e que muitas destas práticas são em termos concretos perfeitamente equivalentes a outras tomadas por normais. Para sublinhar esse ponto, abrimos então com uma citação do genial Sigmund Freud, na obra Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, que recomendamos no final:

DEVIATION IN REFERENCE TO THE SEXUAL AIM
The union of the genitals in the characteristic act of copulation is taken as the normal sexual aim. It serves to loosen the sexual tension and temporarily to quench the sexual desire (gratification analogous to satisfaction of hunger). Yet even in the most normal sexual process those additions are distinguishable, the development of which leads to the aberrations described as perversions. Thus certain intermediary relations to the sexual object connected with copulation, such as touching and looking, are recognized as preliminary to the sexual aim. These activities are on the one hand themselves connected with pleasure and on the other hand they enhance the excitement which persists until the definite sexual aim is reached. One definite kind of contiguity, consisting of mutual approximation of the mucous membranes of the lips in the form of a kiss, has received among the most civilized nations a sexual value, though the parts of the body concerned do not belong to the sexual apparatus but form the entrance to the digestive tract. This therefore supplies the factors which allow us to bring the perversions into relation with the normal sexual life, and which are available also for their classification. The perversions are either (a) anatomical transgressions of the bodily regions destined for sexual union, or (b) a lingering at the intermediary relations to the sexual object which should normally be rapidly passed on the way to the definite sexual aim.

Sigmund Freud, Three Contributions to the Theory of Sex, 1905

Começamos por um derivado de um comportamento comum: a pigofilia, a excitação além do comum por nádegas. É certo que toda a gente conhece o potencial erótico das mesmas, anexas que estão às zonas sexuais mais explícitas: mas o fetichismo, aqui, transforma o objecto secundário no objecto principal. É este mesmo processo que vamos encontrar em todas as outras parafilias: só que nalgumas delas o objecto não era secundário, era terciário ou mesmo até de todo não relacionado, e isso as torna encantadoras.

Um apetite erótico bastante macabro encontramos na vorarefilia: a excitação ao comer ou ter partes do corpo sendo comidas por outra pessoa. São poucos os casos em que isto sucede, e em geral ficamos a conhecê-los, pois são casos de polícia e aparecem na televisão.

A simforofilia é a excitação ao assistir tragédias e desastres naturais ou praticar relação sexual com tais acontecimentos. Este é descrito em Sade, e está seguramente relacionado com jogos complexos com conceitos de poder.

É sabido que o desejo humano tem uma vasta extensão. Sendo assim, é apenas natural que a atracção pelo corpo humano conheça um desvio (um clinamen, como diria Harold Bloom) e se metamorfoseie numa atracção por outros corpos, ou seja, corpos animais. A isto chama-se zoofilia. Sejam mais peludos, mais esponjosos, mais pequenos ou maiores, é a forma ideal de não fetichisar em demasiado – num ponto em que chegue, por exemplo, aos objectos — mas manter-se ainda dentro da forma orgânica. Diz-se que, no campo, as experiências com galinhas e cabras são comuns.

A fixação aflorada brevemente no filme de Luís Bunuel, L’Age D’Or, por manequins e estátuas, é dos fetiches potencialmente mais apresentáveis e semi-nobres desta lista. Na agalmatofilia, o objecto inanimado é uma reprodução do corpo humano, portanto é uma representação não tão distante assim; isto, juntamente com o facto da tradição escultórica ser das mais antigas e respeitáveis das sete artes, torna o fetiche algo de clássico e erudito.

Apesar de tão perto de outras zonas do rosto frequentemente usadas como lugar erótico — os lábios, as orelhas, as maçãs do rosto, etc. — os narizes não são frequentemente vistos como acessórios físicos interessantes para a prática. Não assim na nasofilia, onde o fetichista ostenta um interesse desmesurado por essa parte do corpo, interesse que pode ou não envolver fluidos.

De um modo geral, o desejo de manter relação com objetos inanimados específicos chama-se de objectofilia; parece ser, à partida, uma fixação relativamente inofensiva. E parece também particularmente interessante por juntar tanto um dos impulsos conceptuais primordiais, o da constituição mental de objectos, como também a elevação dessa espécie de tropo ao extremo, tomando o objecto por corpo copulável, preferível até ao corpo humano que supostamente representaria. É mais uma homenagem às representações de segunda ordem.

Uma variante deste último fetiche pode ser aquilo que é considerado como mecanofilia: a atracção sexual por carros ou outros veículos; também conhecida como “mecafilia”. Abordámos já um pouco deste tópico numa secção anterior.

Ligado seguramente a um impulso primordial e infantil relacionado com os primeiros tempos da infância, e com a figura da deusa-mãe, temos a expressão a que se chama de lactofilia: a excitação ao observar o leite materno sendo expelido pelos seios.

Mais bizarro, mas perfeitamente compreensível, é o comportamento da teratofilia: a atracção por pessoas deformadas ou semi-deformadas. Calculamos que o apelo da morte e da distorção do corpo vivo representem algo de mentalmente desafiante, que estimula as zonas da mente relacionadas com o erotismo.

Um fetiche muito simples mas a todos os níveis provavelmente intragável é a emetofilia: a atracção pelo vómito. Semelhante à atracção por outro tipo de dejectos, esta parafilia não está no entanto associada a zonas próximas dos orgãos sexuais, mas sim à boca. Encaminhamos o leitor para a descrição de Freud com que iniciámos este capítulo.

Uma outra fixação que parece ser relativamente inofensiva e que, de acordo com muitos critérios, seria até considerada semi-nobre, é a da quirofilia: a atração sexual por mãos. De facto, praticamente toda a gente convive à vontade com o facto de as mãos serem instrumentos e receptores sexuais de grande importância; mas talvez este fetiche leve as coisas a outro nível.

Relacionado também com a anteriormente abordada objetofilia, temos aqui uma inversão dos termos da mesma: na fornifilia, o parceiro fica subordinado a permanecer como uma peça de mobiliário. É sem dúvida interessante que se queira reduzir o corpo humano ao mobiliário, ao contrário do anterior exemplo, que reduzia o mobiliário ao seu papel enquanto corpo copulável.

Um curioso fetiche que talvez combine parte do desejo de se converter a si mesmo numa criança com o interesse por animais de pequeno porte é aquilo a que chamamos de plushofilia: a excitação desmesurada com animais de peluche. A fofura dos mesmos costuma ser reconfortante a vários níveis, mas não de forma comum para a prática erótica.

Uma das parafilias mais interessantes desta lista é a formicofilia, que consiste no desejo sexual de interacção próxima com insectos como formigas, baratas, besouros, etc. Apesar da sua ideia e da sua prática estar em absoluto longe de ser comum, cremos que será dos fetiches presente nesta lista mais imediatamente familiares para o leitor, devido ao frequente apelo a medos primários de criaturas pequenas e rastejantes que a quase todos nos assola, e que encontra ocasionalmente lugar nos pesadelos.

Outro desvio perverso de um impulso muito comum é a tricofilia: o interesse fetichista por cabelos. Vai muito além, é claro, do mero apreço por essa parte do corpo que está presente em quase todas as pessoas. A prática do fetiche passa mais por enrodilhar o rosto ou outras partes do corpo estaticamente na massa dos cabelos, e ter climaxes mentais ou físicos perante a textura e o cheiro dos mesmos.

Salirofilia é o interesse particular por saliva ou suor, não apenas naquela proporção derivada da interacção sexual normal, mas em maiores e enormes quantidades, chegando ao ponto de ser interessante para o parafílico a ingestão de um copo um jarro cheio dos mesmos. Casos destes são relatados em Krafft-Ebbing e em Sade.

Não querendo associar de forma inquebrável a seguinte parafilia ao mundo algo exótico do ambientalismo tree-hugger, a verdade é que existe, aparentemente um fetiches por árvores: a dendrofilia. Imaginamos que a robustez do tronco e a leveza das folhas ofereçam estímulos para todos os gostos.

O sangue, na interação erótica, corre forte: mas dentro da pele, claro. Não assim na hematolagnia, que sumariamente consiste em ingerir ou observar o sangue do parceiro. Uma das fronteiras mais perigosas do erotismo, a da pele, é aqui atravessada, sendo necessária a libertação do líquido, provavelmente forte das aberturas naturais do corpo, para a realização do fétiche.

O frotteurismo (também conhecido por frottage) é uma forma de excitação infelizmente muito commumente praticada nos transportes públicos, conforme o atestarão as muitas mulheres que nos estão a ler. Consiste em aproveitar a sobre-concentração de pessoas no mesmo espaço para forçar o aperto e esfregar dissimuladamente partes do corpo no corpo de outra pessoa.

Curiosamente, a urofilia é, estamos em crer, talvez aquele dos fetiches mais ousados desta lista que recebe maior aceitação e prática entre a população em geral. É fácil entender a associação entre a fecundidade e potência do orgão sexual, responsável pelos líquidos relacionados com o sexo e a reprodução, e a associação dessas jactâncias ao despejo das demasias do corpo. Consiste, como já perceberam, em urinar ou receber a urina do parceiro, com a ingestão ou não do líquido.

Há uns anos atrás, um vídeo muito famoso que circulou na internet ilustrava este próximo fetiche: servia de desafio para quem o conseguisse ver até ao fim. Incluía, entre outras expressões como a emetofilia, a coprofilia: a ingestão de fezes durante o ato; também conhecida como fecofilia ou escatofilia. O vídeo de facto batia todos os recordes, particularmente quando misturava a emetofilia com a coprofilia.

A oculofilia trata do deslumbre sexual que aguem pode sentir com actividades envolvendo o globo ocular. Atenção: não se trata de nada relacionado propriamente com o olhar ou o acto de olhar, mas sim com o próprio orgão. É certo que há pessoas que apreciam muito comer os olhos do peixe e dizem que é muito saboroso, mas o fetichismo quando estendido até ao corpo humano do parceiro é realmente uma coisa de outro nível.

Por último, e querendo terminar esta secção com a dimensão mais acessível e até aceitável das parafilias, o mundo do sado-masoquismo e da sado-dominação, destacamos aquele que é hoje ainda um ícone bastante visível e conhecido da vertente mais erótica da música pop. Madonna ganhou esse estatuto de titã da indústria quebrando sequencialmente barreiras relacionadas com o sexo. Por volta de 1992 era uma figura absolutamente definidora de tendências, e foi quando publicou um livro de fotografias intitulado simplesmente Sex, onde tentava trazer para o domínio público várias práticas mais obscuras como o SDSM, as ambiguidades do transgénero, etc. Alguns críticos de arte apreciaram, outros acharam pouco conseguido, mas a edição deixou a sua marca. Apresentamos também o fantástico vídeo da música “Erotica”. precisamente da mesma fase.

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