Editorial: acerca da exposição do privado nas redes sociais, João N. S. Almeida

Texto de João N. S. Almeida. Revisão de Sebastião N. Viana.

Algumas das interacções que temos com os nossos leitores, além do que observamos rotineiramente no “admirável mundo novo” das redes sociais, levantam-nos frequentemente preocupações com a falta de clareza no acordo social quanto a certas expressões — verbais, visuais, etc. — e à liberdade de expressão a elas associadas. Ocorreu-nos isto quando comentámos com reprovação uma manifestação de um hábito recente e muito preocupante: pessoas a mostrarem imagens de pós-operatório em redes sociais não apenas a um círculo próximo de amigos mas para toda a gente ver: por assim dizer, equivalente a mostrá-las “no meio da rua”.

Em primeiro lugar, deixemos bem claro que a noção substancial de “privado” ou de “íntimo” não depende só do juízo do portador, depende também da convenção social. E a convenção vigente não pode ser meramente descrita como uma “construção social”, em tom desmerecedor. Embora as convenções frequentemente decaiam em formalidades desactualizadas em relação à cultura de cada tempo, elas são estabelecidas por acordo mais ou menos transversal às camadas, divisões ou unidades mínimas da sociedade. Isto ocorre tanto a nível de costumes como também, por exemplo, e de modo signitivamemente importante, da linguagem. Sobre isto, recomendamos aliás a leitura de Stanley Fish em Is there a text in this class?.

Sendo assim, cabe-nos perguntar quais os propósitos da existência de convenções sociais que envolvem o pudor face à exposição pública do corpo humano. O mais óbvio e mais frequente é aquele relacionado com a ligação do corpo humano, e de certas partes do corpo humano, à sexualidade: e envolve o reconhecimento deque a sexualidade não é isenta de carga pesada e significativa nas operações da nossa vida psíquica. É assim nas civilizações que conhecemos, não é tanto assim nalgumas sociedades tribais primitivas — mas é do ponto de vista das primeiras que vos falo e é do ponto de vista das primeiras que nos lêem. Seguramente muita micro-crítica poderia ser feita à aplicação exacta dos critérios do pudor em cada época (envolvendo a benignidade ou não de bikinis, topless, amamentação em público, andar de tronco nu na rua, algo proibido em alguns países tropicais, ou até mesmo a exibição do cabelo, já considerada em tempos indecorosa também). Mas percebe-se a ideia geral: o reconhecimento da carga erótica ligada ao corpo leva ao estabelecimento de limites que, quer queiram quer não, toda a gente cumpre — e dos quais toda a gente mentalmente desenvolvida, de uma forma ou outra, acaba por necessitar.

Ora o caso em questão não tem nada a ver com sexualidade, embora pudesse ter. Trata-se de uma valência diferente, também ligada ao corpo: o tabu que existe em relação à violação da fronteira última entre esse corpo e o resto do mundo, a pele, manifestada em cirurgias e nos seus resultados. É inegável que nas sociedades ocidentais não existe nenhum costume vigente de achar admissível pessoas dirigirem-se à praça pública, perante perfeitos estranhos, e exibirem ostensivamente imagens de pós-operatório, seja de carácter celebratório ou não. É perfeitamente reconhecível que mesmo que o leitor admita que isso não o incomodaria a si, mas que poderia perfeitamente incomodar outros. As razões por detrás disto têm mais a ver com vida e com morte do que propriamente com sexualidade (embora se cruzem e misturem, como sabemos): o corpo, nas suas melhores expressões, é digno e deslumbrante, embora também carregado de conotações perigosas; mas nas suas piores expressões é maculado e diminuído, podendo mesmo assim, é claro, reter a dignidade — já não através do corpo-enquanto-corpo, mas dependendo da volição particular do seu dono. Seguramente só uma mente tendente ao doentio ou ao fetiche, ambas situações que respeitamos, poderia achar a existência de cicatrizes uma expressão do corpo no seu melhor. É, evidentemente, uma expressão mais ligada ao prejuízo, à morte, ao dano de quem exibe como de quem vê. Esta é uma maneira de explicar o tabu existente em relação a feridas, tabu que sabemos que toda a gente reconhece — e sobre o qual juízos morais sobre se deve ser ou não ultrapassado é uma questão completamente diferente de reconhecer que existe.

Assumindo assim a existência do tabu, que leva a que seja perfeitamente normal classificar de indecoroso alguém exibindo cicatrizes de pós-operatório na praça pública, desenvolvamos um pouco mais dois aspectos: primeiro, porque é que não é só para o público que tal acto pode ser visto como muito duvidoso, mas também para o portador das mesmas. Efectivamente, uma cicatriz é sempre uma mácula, representante de uma crise — no sentido de separação, cisma — sendo imanentemente assim, para o seu portador, um caso sensível e íntimo. É claro que umas serão mais que outras, mas não deixa de ser alida esta caracterização substancial da matéria. E aquelas que envolvem dimensões ou complexidade significativa — como intervenções sobre questões delicadas física ou psicologicamente — são, innevitavelmente, mais ainda íntimas e delicadas.

Por último, abordemos o aspecto mais epifenoménico desta declaração aparentemente tão normal mas tão mal recebida. Cremos que está inteiramente ligada a uma série de falácias ligadas à expressão nas redes sociais: algumas estão profundamente ligadas à ideia de liberdade de expressão, quando, por exemplo, se considera louvável e libertador que alguém exponha as ditas imagens mas não se considere que faz parte da mesma liberdade que alguém declare que tal acto é indecoroso. Mas mais importante ainda, está ligado à enorme confusão entre esfera pública e esfera privada trazida pela prevalência do modelo de rede social na comunicação corrente, principalmente entre as mais jovens gerações das quais quase todos nós na revista fazemos parte. É importante dizer que a nossa vida psíquica e a nossa cultura dependem da distinção entre público e privado. E é importante também dizer que está amplamente estudado o efeito nocivo da instalação de tal confusão nas mentes, principalmente nas mais jovens, situação que tem levado a aumentos de depressão, ansiedade e suicídios, como todos sabemos. 

Ainda por último, resta saber se tudo isto é de facto assim, quais as razões específicas que levaram uma afirmação tão normal a ser tão mal recebida. Porque é que é normal para umas pessoas fazerem tal afirmação, mas outras não; e porque é que é considerado normal fazermo-la perante certas pessoas mas não perante outras ? Estamos em crer que está ligado à utilização política de uma pequena camada da população a que chamamos de trangénero, usados hoje como espécie de mascotes de certas ideologias políticas habituadas a usar segmentos minoritários da população como “carne para canhão” dos seus objectivos de igualitarismo sem critério — igualitarismo esse que leva às sociedades mais desequilibradas e mais desiguais do mundo. Tipicamente a sua estratégia passa, em primeiro lugar, por tratar as pessoas como grupos e não como indivíduos: são “os trans”, “os negros”, “as mulheres” (que nem sequer são numericamente uma minoria), e não indivíduos em específico, como se não existissem trans com ideias idiotas, negros mais racistas do que brancos, e mulheres que não têm nenhum interesse em feminismo. O segundo passo das referidas ideologias depende da dicotomia básica com que doentiamente vêem tudo o que se passa under the sun: o binómio oprimido/opressor, a partir do qual semeiam o conflito entre grupos (que não têm de ser necessariamente, como já vimos, numericamente minoritários) com o objectivo de lançar as sementes que levem a uma “sociedade sem classes”. Nesse sentido, utilizam grupos da sociedade de modo identicamente instrumental ao de como o regime nacional-socialista de Hitler utilizou o bode expiatório dos judeus: como massas informes, descritas de forma genérica, tratadas como corpo único com as mesmas opiniões e as mesmas disposições, e jogando-os em conflito com outros grupos. A diferença assim é de grau e não de espécie e o facto de os nazis usarem o grupo minoritário para prejuízo do mesmo e os ideólogos progressistas usarem o grupo minoritário aparentemente para seu próprio benefício (o que pode ser ou não falacioso, depende das consequências) não muda o factor principal transversal a ambas as maneiras colectivistas de tratar a sociedade e a política: o uso do grupo é meramente instrumental para preencherem a sua ideia de sociedade ideal.

É evidente que não acompanhamos nada disto, que consideramos qualquer grupo social como um conjunto de indivíduos, que os indivíduos têm todos os mesmos direitos e os mesmos deveres, que um trans não é menos mas também não é mais do que qualquer outra pessoa, e que é nesta cultura que existimos e continuaremos a existir, pois é nela que se pode exercer correctamente, de maneira fina e com honestidade moral e intelectual, a tradição crítica que faz parte do nosso trabalho. Nessa conclusão, afirmamos que (1) a exibição de uma imagem de pós-operatório para público em geral é convencionalmente considerado algo de indecoroso, sendo habitual no entanto ser feito entre amigos próximos; (2) o caso de ser uma cirurgia mamária ligado à questão “trans”, portanto imbuído de um carácter celebratório de “luta social”, em nada altera a vigência dessa convenção; e (3) tais partilhas de conteúdos privados/íntimos em público nas redes sociais merecem reparo, admoestação e razões para alarme, pois os efeitos nocivos dessa cultura estão mais que estudados e não são, grosso modo, negados por ninguém.