Newsletter Dezembro 2021

É com renovadas jornadas de trabalho e com sincera alegria que vos desejamos, em primeiro lugar, um Feliz Natal e um próspero Ano Novo. É chegado o final de 2021 e apesar de não sermos muito dados a balanços e marcar efemérides, temos de assinalar a grande felicidade que é, e o agradecimento que devemos aos nossos leitores e os nossos colaboradores por isso, este ter sido o melhor ano de sempre da revista Os Fazedores de Letras desde que existimos neste iteração digital, que está a entrar no seu quinto ano. Mais do que quadruplicámos o número de leitores e de visualizações dos artigos no nosso site, que é e continuará a ser a principal bitola que mede a atividade que fazemos, desde que timidamente iniciámos este formato. Isso deve-se, claro está, ao trabalho muito mais que redobrado em que nos empenhámos este ano que passou, pelo qual agradecemos em especial às seguintes pessoas: o director Tomás Vicente, o vice-director João N. S. Almeida, os ex-diretores Luís Rodrigues e Lourenço Duarte, e as colaboradoras Joana Rebocho e Ana Sofia Souto. A composição da nossa equipa sempre foi auto-renovada e esperamos futuramente ter também razões para agradecer a novos colaboradores que se estão a encarregar de novos projetos connosco. Convidamos todos a nos proporem também os seus projetos de colaboração, pois somos uma plataforma aberta a todos.

Crescimento exponencial do nosso universo de leitores desde há quatro anos. Em 2021, publicámos quatro edições, dois suplementos, um dossier temático, organizámos cinco debates, duas conversas e três entrevistas, além da partilha ininterruptamente diária de conteúdos de vários tipos — sugestões literárias e não só, pontos para debate, questões, curiosidades, etc. — nas redes sociais.

Tivemos também o prazer de publicar recentemente duas edições dedicadas a dois gigantes da literatura universal: Eça de Queirós e Dostoevsky, que convidamos os leitores a espreitarem ou a reverem. E neste mês de dezembro tivemos também a oportunidade de esclarecer, em assembleia-geral de alunos, o nosso actual estatuto, desde há três anos absolutamente independente logística e financeiramente da Associação de Estudantes. Em breve lançaremos ao debate público o modelo associativo para o qual pretendemos migrar.

Organizámos, desde há algumas semanas para cá um suplemento/dossier sobre erotismo. Deveu-se isto a termos notado que existirá uma certa falta de cultura visual quanto ao tópico em questão junto não só de gerações mais novas mas também de alunos universitários quase plenamente formados. Isto foi suscitado pela partilha, em redes sociais, de uma belíssima fotografia — a primeira da galeria abaixo — cujo conteúdo não se aproxima sequer do pornográfico mas tem toques de BDSM, o que mesmo assim não desculpa a excitação inócua e pueril a que foi sujeita, onde verificámos que uma série de colegas pura e simplesmente não sabem reconhecer fotografia erótica, confundindo-na com pornografia e “kink click baits” (seja lá o que isso for), veículos utilitários para comércio de sensações sexuais, etc. Ficámos impressionados com estas reacções; alguns de nós têm idade para já ter visto várias gerações e parece-lhes que nunca viram gente tão nova ser tão retrógrada e puritana com o sexo, contrariamente às evidências e à propaganda. Outros de nós têm a mesma idade destes colegas e estranham e sentem-se desconfortáveis perante um clima irrespirável em que cada parcela de apreciação estética é furiosamente interpretada politicamente, e das piores maneiras. Estas são reacções de crianças, expectáveis em ciclos de ensino muito anteriores ao universitário. Por isso, iniciámos partilhas de fotografia, pintura, escultura, e tópicos filosóficos com tons e conteúdos eróticos bem vincados, afirmando a necessidade deste vocabulário ser perfeitamente naturalizado para estudantes de artes e humanidades. Continuaremos a fazê-lo e apresentaremos o dossier completo durante o mês de janeiro. Nele poderão encontrar, entre outras coisas, tópicos como Caravaggio, Madonna, relação professor-aluno, tentacle porn, John Wayne, Elvis Presley, petróleo, Giger, James Bond e meias da Adidas.

Apresentámos três lembretes que cremos serem úteis para o estudante de humanidades em geral: primeiro, quando nos interrogamos sobre os “porquês” de algo, muitas vezes anexos a tópicos mais humanamente complexos como a “culpa”, a “responsabilidade”, etc., muitas vezes observamos notórias confusões de grau e de espécie no raciocínio de todos nós, o que é natural pois as questões das causas, das intenções e dos fins não são claramente preto no branco. Por isso, e apenas para nos ajudar quando preciso, convém ter sempre à mão a leitura aristotélica que aponta quatro tipos de “causas“, do grego aitia, mais correctamente traduzido por “explicação”. Deixamos aqui a referência básica sobre o assunto. Segundo, voltamos a divulgar o site tvtropes.org: uma base de dados de construção amadora e colaborativa mas muito ampla e bem referenciada sobre tropos e figuras retóricas, estilísticas, narrativas etc., usadas na televisão e no cinema da cultura pop. Não conhecemos outra base de dados com tanta variedade sobre os tópicos, e muito menos com observações tão finas sobre distinções de tropos específicos. Terceiro, recomendamos duas fontes de conteúdo audiovisual sobre filosofia, muito úteis para esclarecimento dos mais leigos ou semi leigos nessa matéria: o canal de YouTube da royal institute of philosophy e as entrevistas de Bryan MaGee a filósofos de renome, dos anos setenta. Espreitem!

Ainda dois esclarecimentos relacionados com percepções e linguagem comum: primeiro, três estatísticas sobre minorias muito referidas e por vezes muito instrumentalizadas para vários efeitos sociais e políticos, sem que se saiba ao certo a que real quantidade da população é que respondem. Entendemos que o esclarecimento sobre estas coisas nos permite a todos pensar e falar com mais propriedade sobre os assuntos. Segundo, entre as muitas palavras, a maior parte das quais neologismos ou anglicismos, usadas de forma comum hoje pelas gerações mais novas nas redes sociais, encontramos algumas a que gostamos de dar destaque: queremos falar de gaslighting, e queremos falar somente porque tem origem em bom cinema: Gaslight, de 1944, de George Cukor, com um excelente elenco, é a história de uma mulher manipulada pelo marido para pensar que está louca. Calculamos que enorme parte das pessoas que usam o termo desconheçam esta origem. E chamamos a atenção para o abuso do mesmo tal como com “mansplaining”: é possível que grande parte das ocasiões em que surja signifiquem apenas que uma pessoa não está disposta a ouvir contra-argumentos ou a ser contrariada, uma situação em que qualquer um de nós, criaturas imperfeitas,

Abordámos um tópico colorido, cujos conteúdos estão bastante disseminados mas que não é muito referido: o do universo visual das revistas de adolescentes e de mulheres de meia idade, que é absolutamente único: não conhecemos na história da arte dos arranjos de capa tanta concentração de elementos textuais e visuais num único espaço tão estrito, com tanta berrância semântica e cromática, suplantando bastante a imprensa tablóide, a única que talvez se assemelhe. Deixamos aqui uma série de exemplares desta tradição: revista Maria, Teen Boss, Bravo, etc.

Sugestões literárias e de outras formas de arte em geral estão sempre presentes, e este mês tivemos o prazer de abordar a edição da Relógio d’Água (2017) dos “Contos” de Beatrix Potter (1866-1943). Autora de histórias infantis primorosamente ilustradas, Beatrix Potter tornou-se conhecida com “The Tale of Peter Rabbit” (1902). Um grande sucesso no seu próprio tempo, os seus contos tornaram-se clássicos intemporais, estatuto que bem merecem. Ainda nas recomendações literárias, uma homenagem a Christopher Tolkien (1924-2020), o terceiro filho e executor literário de J. R. R. Tolkien (1892-1973), com a nossa recomendação de leitura de “The Book of Lost Tales – Part One” (1983), a primeira parte de “The History of Middle-Earth”, uma compilação sua, em 12 volumes, publicados entre 1983 e 1996, de escritos inéditos e inacabados do seu pai que permitem observar o desenvolvimento do mundo ficcional criado por Tolkien, desde a sua génese em c. 1916 até aos escritos tardios em que Tolkien trabalhou até à sua morte em 1973. Também a 22 de Novembro comemoraram-se os 58 anos da morte do escritor britânico C. S. Lewis, autor da famosa série de fantasia juvenil “As Crónicas de Nárnia (7 vols., 1950-1956), mas também de muitos outros livros de ficção, poesia, teologia, ética e crítica literária. Membro da Faculdade de Inglês da Universidade de Oxford, Lewis foi amigo de Tolkien, com quem participou no grupo literário “The Inklings” (a partir de 1929). Foi, além de medievalista (lembremos livros como “The Allegory of Love. A Study in Medieval Tradition” (1936)), um conhecido apologista cristão anglicano de tendências ecuménicas, tendo tido um papel relevante durante a II Guerra Mundial através da sua participação na rádio BBC. Das suas muitas obras, recomendamos hoje os três livros que constituem The Space Trilogy (1938-1945), cujo gérmen foi uma conversa entre Tolkien e Lewis acerca daquilo que ambos achavam ser a “desumanização” operada nas obras de ficção científica corrente ao tempo.

Revisitámos também uma outra questão que deu origem a boas conversas: as áreas cinzentas do consentimento sexual. Este é um tópico que vai em contra-ciclo com algumas representações infantilizadas do tema no discurso público contemporâneo, representações que provavelmente representam uma forma de pudor e de simplificação abstracta derivada do eterno peso do ethos sexual nas nossas vidas. Para isso, recomendamos The Politics of Bad Sex: um livro lançado recentemente com o argumento de que as áreas cinzentas no consentimento/não-consentimento no que toca a questões de sedução e sexo são vastas e não cabem numa dicotomia clara: nomeadamente, nem sempre é explícito que saibamos o que queremos, nem é necessariamente natural que o saibamos. Como anexo a este tema, sugerimos uma recensão ao livro e um artigo sobre como a difusão explícita do sexo nos meios de comunicação encobre o que é na verdade uma sociedade com uma atitude negativa face ao tema. Partilhámos também um interessante artigo da Harper’s Magazine que põe em causa a operacionalidade da noção de “trauma” psicológico conforme a entendemos. O autor alega que não se trata de uma característica inerentemente humana mas algo próprio da aceleração perceptual e cognitiva da modernidade e da sua tendência para criar sociedades “traumatogénicas”. Uma excelente leitura para qualquer pessoa em geral, e uma possível leitura para as hordas de indignados e ofendidos que pululam pelas redes nos dias de hoje. E, por último, dois itens interligados: primeiro, um interessante artigo da New Yorker que descreve como descrições hedonistas das nossas personalidades pecam por não abarcarem muitas das actividades que realizamos voluntariamente. Muitas ideologias materialistas, como o marxismo ou o liberalismo económico, explicam isto de maneiras mais distorcidas do que Freud ou alguma psicologia da contemporaneidade. Segundo, uma interessante obra sobre a perspectiva filosófica e histórica de uma coisa que marca a modernidade actual: o fenómeno da ansiedade. Partilhámos ainda um livro novecentista muito interessante, parcialmente baseando em ideias de Nietzche e outras em voga na altura, ligadas ao carácter ficcional dos nossos sistemas de conhecimento. Trata-se de The Philosophy of ‘As if’: A System of the Theoretical, Practical and Religious Fictions of Mankind, de Hans Vahinger.Espreitem todas estas recomendações e desfrutem.

Por último, ainda nas sugestões, aconselhámos a leitura de uma brilhante biografia da rainha Marie Antoinette. Num retrato equilibrado, Antonia Frazer descreve não só as excentricidades dos seus costumes de corte, como também a insólita difamação da sua pessoa nos jornais jacobinos da altura. E ainda sobre a Revolução Francesa, leiam “In Defence of Terror” de Sophie Wahnich, que vê no processo revolucionário o projecto político de integrar e controlar violência popular legítima; não a reduzindo a mero erro como alguns frágeis estômagos liberais. Recomendámos também o estudo, hoje clássico, de Rosemary Horrox sobre a ascensão e o reinado de Ricardo III de Inglaterra, “Richard III: A Study of Service” (1989, nova ed. 2010). Neste livro, essencial para se compreender melhor o percurso e a queda do último rei inglês da Casa de York, Horrox centra-se num aspecto crucial do governo régio: o papel dos servos do rei.

Além do grande destaque do erotismo deste mês, tivemos oportunidade para abordar o grande universo das bizarrias, casos extremos, e fenómenos inclassificáveis que podem ou não estar de algum modo ligados ao território das humanidades. Começámos assim por recordar uma espécie de tradição muito em voga em particular nas décadas de 70 e 80 do passado século: a existência de pequenas seitas ou cultos de características isolacionistas, em geral lideradas por uma figura carismática e semi-enlouquecida, que acabavam muitas vezes em suicídios colectivos ritualísticos ou relacionados com o aproximar de um apocalipse. Actualmente, comportamentos semelhantes podem ser encontrados nas pessoas que dizem “o capitalismo tardio” ou principalmente no ambientalismo contemporâneo, embora não terminem em dramas deste género, mas se aproximem do ritual macabro. Mas neste caso queremos chamar a atenção para três casos: o do People’s Temple, de Jim Jones, o Heaven’s Gate, e Shoko Asahara, do Aum Shinrikyo do Japão. Podem ler mais aqui e aqui. Abordámos também a vida e obra do fundador da igreja da cientologia, J. Ron Hubbard. Para quem não sabe, a igreja, fundada em 1952, deriva de uma série de práticas pseudo-científicas e neo-místicas desenvolvidas por Hubbard, um escritor de ficção científica de talento mediano com inclinação para delírios de grandeza. Talvez a peculiaridade mais interessante, para nós, da igreja da cientologia seja ter uma mitologia absolutamente única: entende cada pessoa como corporização de entidades etéreas e eternas que se esqueceram que o eram, vitimadas por lavagens cerebrais praticadas ao longo de milénios por impérios inter-galácticos e por bombas atómicas detonadas na base de vulcões. É este o universo mitológico da cientologia: ficção científica de média ou pobre qualidade, datada da segunda metade do século XX, elevada a palavra de revelação religiosa. Seguramente um universo interessantíssimo para a realização de um estudo comparatista de religiões. Espreitem e desfrutem!

De sugestões de música fomos menos profícuos, mas aqui ficam. Primeiro, o disco “BACH: The Art of Life” do pianista virtuoso russo Daniil Trifonov, publicado recentemente pela Deutsche Grammophon. Nele, Trifonov interpreta magnificamente, entre outras peças, a “Arte da Fuga” de Bach completa, bem como algumas peças muito belas dos vários filhos de Bach, também eles compositores talentosos, ainda que frequentemente deixados à sombra do seu titânico pai. Recomendamos vivamente! Depois, apresentámos as sonoridades fantásticas do país de Laos, numa edição da estupenda editora Ocora Radio France, na tradição vocal mor iam e com o uso do estupendo instrumento khene, um órgão de boca: oiçam aqui. Lembrámos também um “murder most foul”: o assassinato que marcou várias gerações, e que lembrou a todos a efemeridade da vida, tão cedo esquecidas depois da trincheiras da 1ª guerra e da Normandia e dos campos de concentração da 2ª: o assassinato de John F. Kennedy. Ocorrido em 1963, de modo surpreendente e envolvendo especulativamente conspirações desinteressantes, ecoou pelo mundo inteiro e manteve o seu estatuto marcante e mítico. Bob Dylan, no seu último disco, compôs uma extensa e complexa composição dedicada ao tema. Notamos que as obras de Dylan, na fase actual e muito madura da sua carreira, inclinam-se para uma forma algures entre a canção, a spoken word e o free jazz/música e verso experimental, algo para o qual Dylan sempre se mostrou talhado – e que é muito difícil atingir. Espreitem a composição aqui.

Ainda em jeito de balanço, já não apenas referente a este fantástico ano que vivemos, lembramos que o percurso que fomos construindo pautou-se pelo aperfeiçoamento das ideias boas entre nós e também por expurgar as ideias más. Entre estas segundas estão as seguintes: a ideia de que devíamos ter um jornal mais levezinho; os critérios de seleção editorial baseados em gostos e antipatia pessoais; a ideia de que rejeitaríamos textos sem dar qualquer justificação disso aos autores; a ideia de que seriam admitidas na direção pessoas de incontornável tendência para o activismo político; e, finalmente, a ideia de sermos um “jornal de faculdade“ e não, na verdade, uma revista de artes e humanidades. E entre as primeiras, as boas ideias, estão as seguintes: que o processo de revisão e colaboração entre revisor/editor e autor é absolutamente fulcral e leva sempre bons resultados; que iríamos fazer todo o possível para jamais rejeitar textos mas sim para ajudar os autores a melhorá-los; que a preocupação com a pluralidade de pontos de vista continua ser, como foi desde o início, central para esta publicação e que continuaremos a ser uma forte plataforma de liberdades de expressão para isso. Por último, descrevemos também as ideias e práticas que ainda não sabemos muito bem como funcionam ou como devem funcionar: o nosso modelo de interação nas redes sociais, onde temos uma voz frontal e comprometida com os princípios da racionalidade e da liberdade de expressão; alargarmos o universo da revista além da Faculdade de Letras e expandirmo-lo a todos os alunos da Universidade de Lisboa; evoluirmos a revista para um modelo associativo próprio. Continuaremos a descobrir tudo isto, sempre com espírito crítico, curioso, mentalidade aberta, num projeto que está disponível para acolher as propostas de trabalho em arte e humanidades de qualquer aluno da faculdade ou fora dela: em relação à FLUL concretamentamente, mantivemo-nos sempre próximos dos alunos, de todos os alunos, das suas preocupações, opiniões, tanto para trazer as suas ideias e as suas produções para o amplo alcance da nossa plataforma, sob revisão e edição dedicada e que muito as melhora, como também para dizer claramente quando as suas ideias e propostas eram erradas, preconceituosas, e prejudicavam outros colegas. Fomos sempre absolutamente frontais, francos e críticos, e continuaremos a sê-lo. Concluímos com um mosaico de outras sugestões que já podem ter sido ou não mencionadas. Um grande bem haja para todos e muitos calorosas saudações na continuação deste caminho!