Genoveva, Maria da Conceição Silva Soares

Texto de Sabina Silva Soares. Revisão de Tomás Vicente Ferreira. Imagem: Olympia, Édouard Manet, 1863.

O facto de Eça ter sido assente como filho de mãe incógnita à nascença está parcamente perscrutado. De onde é, se de Vila do Conde ou da Póvoa de Varzim, é matéria de várias teorias; todavia de onde veio, a saber, da vagina da sua mãe, não. 

Por vezes, este desvario suave da civilização, que reside em sobrevalorizar os aspectos externos à vida privada de um indivíduo, mostra-nos menos do que é esperado. Se calhar é essa a razão por detrás de um estudioso transcendentalista de Concord ter assertado que não há história, só biografia; e de um romancista russo qualquer ter proposto, a propósito de Flaubert, que se das três forças que moldam o ser humano – a hereditariedade, o meio, e o desconhecido agente X ​​– a final é a mais influente, a segunda é a mais supérflua. Tal tríade exibe uma bela revisão de parâmetros positivistas tanto do realismo como do naturalismo, que falsamente simplificam a inefabilidade do génio a uma causalidade calculável em papel quadriculado. O olho de vidro do Eça escreveu sobre os mistérios de Lisboa sob esse processo maçador com maior e menor adesão, já que desde logo o contamina um cinismo típico de idealista desapontado com as quimeras republicanas e os sonhos socialistas; mas é cómico na mesma como também o escrutínio da posteridade sobre a sua própria pessoa foi tão infectado pelo mesmo método medíocre, reduzindo-o irrazoavelmente à coleira “realista” com a qual foi canonicamente domesticado. 

Tal como Camilo, outro filho de mãe incógnita, também Eça colheu da sua conjuntura conturbada os frutos podres de uma miríade de energias próprias à bastardia, desde o preconceito provinciano da sociedade oitocentista, que por causa dessa o ostraciza, à sua misoginia ressentida com que enviesadamente vê o que fazem as mulheres. O trauma de tal anátema é a base plausível não só para a ironia refinada com que desfia a parafernália de frivolidades da gente civilizada que o inferiorizou, como também para o rebaixamento de muitas das figuras femininas dos seus romances. Um sentido de justiça assim tão infantilmente arrogado é um caso clássico de inveja sublimada em desdém; recordando-nos, por um lado, que a superioridade moral é a pobreza primária de quem não tem mais nada com que se sentir superior, e, por outro, que é comum confundirem-se em grandes autores o livro e a vingança privativa.

O exemplo por excelência de ambos na obra queirosiana é A Tragédia da Rua das Flores. No meio da trilogia temática, é escrito depois das cenas secas de incesto inofensivo e historicamente corriqueiro d’O Primo Basílio e antes do revisionismo que romantiza a narrativa d’Os Maias, para a qual, como percebemos também pelo transporte de personagens como Mélanie, Miss Sarah ou Dâmaso, foi o primeiro protótipo. A trama é o incesto edipal entre mãe e filho, onde Genoveva e Vítor se envolvem desconhecendo as estrelas funestas sobre si, que fazem da consanguinidade coincidência e propiciam o suicídio da primeira. Mas qualquer catarse pura que o desfecho nefasto da morte da mãe pudesse causar ao leitor é anulado não só por ser abrupta e forçada, como também pelos parágrafos gastos por parte do escritor naquela prosa crua que se compraz em gozar com a baixeza alheia e assim subverte o quer que houvesse de verdadeiramente trágico na narrativa. 

O livro em questão, inicialmente intitulado Genoveva ou O Caso Atroz de Genoveva, foi o recinto simbólico para um ritual apotropaico que afugentasse o espírito que apoquentava o autor – proverbialmente, o esqueleto no seu armário biográfico. Os episódios do pontapé ao bebé abandonado e da renomeação do sobrenome materno de Ega para Curvelo (que ecoa a escolha de Queirós em vez de Eça), são representações de segunda ordem da revanche contra as origens, que culmina com a imolação de Genoveva, cujo suicídio simbólico satisfaz o escritor de maneira compensatória e apazigua a ambivalência agressiva que sentia relativamente ao passado que o possuía. Contudo, se o risco no contacto entre o escritor e a personagem é a familiaridade, no caso do leitor é a estranheza que a torna rica para lá do referente real que ocasionou a sua conceção.

Genoveva é o centro e a circunferência do romance, talvez descritível por uma série de arquétipos acolchetáveis: a mulher fatal, a sereia, a amante, a mãe prostituta, a prostituta-mãe – enfim, a Ur-Mulher que atormenta o imaginário literário. O perfil de cortesã afrancesada é a tabula rasa para o fetichismo virtuoso do Eça, que detalhadamente traça toilette atrás de toilette, ora obcecando com as subtilezas insidiosas da seda de um vestido vistoso, ora rangendo os dentes por umas meras meias de renda. Todavia, a superfície apolínea da beleza luxuosa deixa entrever as mandíbulas hiantes da Esfinge: a pose hierática de Genoveva tiraniza não só o jovem Vítor, o quase Átis dessa Cíbele, como até mesmo o escritor, a quem nem os anos de prosa gastos em cenas contemporâneas serviram para manter cativa a sua criação, que, tal qual qualquer grande personagem, devora e absorve a devoção dos seus leitores e mora fora do controlo do seu criador. 

Além dos seus caprichos impertinentes e da sua voluptuosidade volátil, Genoveva é visceralmente introspectiva, o que é expresso pelo trecho extenso em que, divagando de reminiscência em reminiscência, pondera sobre algumas alturas árduas e indissociáveis à profissão difícil de que se ocupou ao longo da sua vasta vida. Munida de sabedoria erótica sexualmente maturada, Genoveva tem à sua disposição uma panóplia de provocações ovidianas com que desarmar quaisquer adversários nessa arena. Talvez até esteja a exagerar: Dâmaso e Vítor nem são jogadores, mas sim joguetes nesse manusear meticuloso do desejo esquivo dos homens, ora humilhando-os quando a veneram, ora maravilhando-os mal a desprezam. Aliás, se estes homens são tão intensamente misóginos é por puro desespero face à prostituta, ao saberem que, na verdade, são eles que se prostram perante o poder dela. Sempre que a ela comparadas, as herdeiras de Genoveva, Maria Monforte e Maria Eduarda, não são senão paródias estéreis da figura mais singular e original do romancista.

Assim, o suicídio súbito que celeremente encerra a narrativa deve-se não só à problemática peculiar da hereditariedade do autor, mas também a X, àquela influência endémica ao génio, que no seu significado etimológico antigo é o espírito que preside sobre alguém. Talvez Genoveva seja isso para Eça, a sombra materna de uma musa interior a ser esconjurada, pois, assim como a Dido de Vergílio, a Madame Bovary de Flaubert e a Anna Karenina de Tólstoi, também ela parece morrer somente e apenas para pôr termo à autoridade desmesurada que exerce sobre o autor.

Bibliografia

Camille Paglia, Sexual Personae – Art and Decadence from Nefertiti to Emily Dickinson (London: Yale University Press, 1990)

Eça de Queirós, A Tragédia da Rua das Flores (Lisboa: Discolivro, 1984)

Margarida Vieira Mendes, “«A Tragédia da Rua das Flores»: variações sobre alguns temas queirosianos”, Revista Colóquio/Letras, nº 63 (Setembro, 1981)

Maria Manuel Lisboa, Uma Mãe Desconhecida: Amor e Perdição em Eça de Queirós (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2008)

Ralph Waldo Emerson, Selected Essays (Harmondsworth: Penguin Books, 1984)

Vladimir Nabokov, Aulas de Literatura (Lisboa: Relógio d’Água, 2004)