Ecite (segunda onda): uma epidemia literária em tempos sombrios , Breno Góes

Texto de Breno Góes (PUC-Rio). Revisão de João N.S. Almeida.

Este texto busca tecer algumas considerações sobre a obsessão pública em torno de Eça de Queirós, verificável em Portugal no ano de 1945, quando se celebrou o centenário de nascimento do autor. Recorre-se à metáfora da “ecite” (criada por Monteiro Lobato) para se averiguar a seguinte suspeita: de que a obsessão em torno de Eça terá sido uma tática pública para driblar a censura salazarista, tornando o autor oitocentista um subterfúgio através do qual assuntos interditados puderam ser, apesar de tudo, discutidos. Ao final, se sugere a possibilidade do caso apresentado ser um ponto de partida para elaborar uma contribuição ao conceito de realismo. 

I:  

O escritor brasileiro Monteiro Lobato cunhou o termo “ecite” para designar uma espécie de obsessão dos brasileiros por Eça de Queirós, que, segundo ele, parecia acometer o país nas primeiras décadas do século XX, logo após a morte do autor de Os Maias em 1900. Se quisermos crer nas palavras de Lobato, a “ecite” seria uma doença transmissível sobretudo entre os escritores, e seu sintoma mais notável seria a imitação do estilo queirosiano. Certa vez ele anotou: “a moda de hoje é o adjetivo eciano. Aquele ‘cigarro lânguido’ do Eça fez mais mal à nossa literatura do que a filoxera aos vinhedos da Champagne.”1 Trata-se de uma síntese feliz, ainda que irônica, da notável, duradoura e já muito discutida influência queirosiana no Brasil. Não que este pequeno ensaio vá tratar desse tema: apenas interessa-me aqui o termo “ecite”. 

Continuemos a metáfora epidemiológica do Lobato, em que pese o fato de ela estar por demais alinhada com o zeitgeist proporcionado pela COVID-19. Algumas décadas depois da invenção do neologismo, quase já na metade do século XX, podemos dizer que houve uma segunda onda de “ecite”, que acometeu não o Brasil, mas o próprio país em que Eça de Queirós nasceu e que de que tanto tratou em seus escritos. No ano de 1945, quando foram comemorados os cem anos de nascimento de Eça, as livrarias de Portugal viram ser publicada uma verdadeira “avalanche” de escritos queirosianos, que incluiu uma polêmica biografia escrita por João Gaspar Simões (Eça de Queirós: o homem e o artista2), alguns volumes de crítica que permanecem ainda hoje atuais (entre eles:  As ideias de Eça de Queirós3 e Uma estética da Ironia4, respectivamente de António José Saraiva e Mário Sacramento) e até um Livro do Centenário de Eça de Queirós5 organizado por Luiz da Câmara Reis e a brasileira Lúcia Miguel Pereira, contendo um imenso número de artigos críticos produzidos por nomes notáveis das vidas literárias portuguesa e brasileira, em que Eça era abordado através de uma miríade de distintas perspectivas teóricas, críticas e políticas. Neste último volume, por exemplo, o jornalista Jaime Brasil compara a obra de Eça ao neo-realismo português, Roberto Nobre imagina o que Eça diria se visse os campos de concentração nazistas e António Sérgio elabora um célebre ensaio pensando a categoria do “tédio” em Eça, no qual aproveita para reapresentar alguns de seus mais importantes conceitos sobre temas da filosofia e da educação. Como se vê, essa segunda onda de “ecite” deve ter sido provocada por uma variante do vírus original, dada a drástica mudança na sintomatologia: se na epidemia descrita por Lobato a mania era falar como Eça de Queirós, o que parece ter estado em questão no Portugal de 1945 era falar de Eça de Queirós. Tomá-lo como assunto. 

Também as vítimas preferenciais mudaram: A “ecite” portuguesa não contaminou apenas escritores ou grandes especialistas em literatura. Uma sumária pesquisa em torno de textos sobre Eça de Queirós publicados para além de um círculo de especialistas, em 1945, nos revela, por exemplo, que naquele ano o médico Alberto Pessoa republicou seu ensaio Ideias médicas de Eça de Queirós6, o geógrafo Luiz Schwalback se saiu com o pequeno livro Alguns elementos geográficos na obra de Eça de Queirós e até mesmo um certo coronel Belisário Pimenta publicou um artigo na Revista Militar versando sobre “idéias militares na obra queirosiana”7, que deve ter demandado alguma criatividade de seu autorVisando um público leitor menos rigoroso e mais ágil, interessado na infinidade de tiradas cômicas distribuídas ao longo da obra de Eça, o humorista Luiz D’Oliveira Guimarães fez sucesso publicando uma pequena série de compêndios desse material, separados tematicamente: Eça e os Políticos8, As mulheres na obra de Eça de Queirós9 e o Conselheiro Acácio10. Esses compêndios vinham acompanhados de saborosos textos cômicos de Guimarães, que não eram propriamente ricos de referências a Eça, mas discutiam os próprios temas de cada volume (os políticos, as mulheres, e o tipo do português obtuso e pomposo representado por Acácio). Até mesmo a extrema-direita católica (que na altura era hegemônica em Portugal, e chegou a promover uma intensa campanha anti-queirosiana nas páginas do jornal As Novidades11) participou da “avalanche” editorial. O padre Allyrio de Mello publicou um raivoso libelo atacando a obra de Eça de Queirós e seus valores morais, intitulado O exilado da realidade.12 Para além disso, não foram poucos os textos produzidos neste momento de obsessão queirosiana que se desdobraram em polêmicas, com sua multiplicidade de réplicas e tréplicas que aumentaram ainda mais a massa de texto produzida ao redor do autor do Mandarim. Ao fim e ao cabo, em 31 de dezembro de 1945, o Jornal lisboeta Diário Popular teve razão quando afirmou que o ano literário português se passara “sob o signo de Eça de Queirós”13

II: 

Mesmo a mais apressada das pesquisas históricas em torno desse assunto descobrirá que a “ecite” portuguesa não se deu como fenômeno espontâneo. Ao contrário, o patógeno foi inoculado de propósito no tecido social, a partir da ação governamental. Ainda em fins de 1944, António Ferro, então Secretário de Propaganda Nacional (SPN) do governo de António Salazar, foi à público anunciar que o Estado Novo português tinha decidido investir pesadamente no propósito de celebrar com pompa e circunstância o centenário queirosiano, não apenas patrocinando uma reedição popular das obras completas do escritor como também promovendo ao longo de todo o ano espetáculos teatrais, programas radiofônicos e ciclos de debates em torno da sua figura.14 Até um concurso de roteiros cinematográficos foi realizado, visando produzir filmes a partir de A Cidade e as Serras A Ilustre Casa de Ramires, embora nenhuma película tenha visto a luz do dia. Esse ímpeto governamental por comemorar o centenário de Eça de Queirós pode parecer estranho para nós, quando lembramos que o Estado Novo chefiado por Salazar era não apenas um regime autoritário de extrema-direita, que buscava o controle social a partir da violência, da interdição da esfera pública e do controle de mentalidades a partir da propaganda (é aqui que Ferro se encaixa), como também foi marcado pelo seu extremo conservadorismo nas políticas de costumes e na associação com as formas mais reacionárias do catolicismo. Mesmo tão merecedor do epíteto de “fascismo à portuguesa”15, que lhe tem impingido o historiador Fernando Rosas, o salazarismo ainda assim decidiu celebrar de forma estridente o centenário de Eça de Queirós, um autor marcadamente anticlerical, famoso por por seu erotismo, sua iconoclastia e sua simpatia por certas vertentes do socialismo. 

Não é simples entender o motivo dessa decisão tomada pelo regime através do SPN (que nessa altura mudou de nome para Secretariado Nacional de Informação, SNI) chefiado por António Ferro. Tenho tentado entender ao longo de minha investigação de doutoramento. Para já, a minha suspeita é a de que tenha havido uma conjugação de três fatores, que apenas resumo aqui, tendo-os já explorado um pouco melhor em um texto anterior16: em primeiro lugar, 1945 foi o ano em que o salazarismo amargava uma forte crise econômica, agravada pelos anos de guerra na Europa, e ficava em maus lençóis internacionalmente graças à derrota do Eixo. Era importante para o Estado Novo retirar das oposições consentida e clandestina quaisquer símbolos em torno dos quais elas pudessem se agrupar para rebelar-se. Celebrar oficialmente Eça de Queirós, tornando-o um símbolo salazarista, seria assim uma tentativa de tirá-lo das mãos dos inimigos do regime. Em segundo lugar, na medida em que Eça foi um produto da modernidade portuguesa (por seu cosmopolitismo dândi, pela sociedade liberal da regeneração que emerge representada em sua obra, etc.), o autor corria o risco de ser percebido como um índice da própria existência de uma distinção entre um Portugal moderno e outro arcaico, ancestral. Isto é, uma figura representativa da história entendida como diferença. Ora, se entre os pressupostos do salazarismo estaria o de que Portugal seria uma nação orgânica, essencial, umbilicalmente ligada à seu passado medieval, em que de alguma maneira o tempo não passaria (segundo Ferro, a tradição seria a “soma dos progressos”, e o progresso seria o “acúmulo das tradições”, não havendo diferença radical entre um ponto ou outro da história) a ideia de transformar o moderno Eça de Queirós em um símbolo do salazarismo seria uma neutralização dessa possibilidade, transformando Eça numa síntese perfeita (e legível pela sociedade de massas) da concepção historiográfica salazarista. 

Por fim, como um terceiro fator — subsidiário, mas incontornável — devemos citar o fato de que Ferro pode ter sido influenciado a dar mais importância ao centenário de Eça por seu braço direito no SPN/SNI: ninguém menos do que António Eça de Queirós, o filho caçula do escritor, cuja família evidentemente colheu benefícios materiais com o incremento editorial proporcionado pela republicação das obras completas. 

III: 

Ora, por tudo o que se disse até aqui, só poderíamos supor que os planos de António Ferro e de seu SPN/SNI de celebrar Eça de Queirós teriam sido — do ponto de vista deles próprios — um estrondoso sucesso. Algumas evidências, entretanto, sugerem que não foi assim que o secretariado e seu chefe se aperceberam da situação. Ao contrário. Como tempo,  parece ter havido, por parte do órgão de propaganda, um constrangido arrependimento por ter disseminado a segunda onda da “ecite”. Ainda em 5 de dezembro de 1945, João Ameal — que era, com Ferro e António Eça, um alto funcionário do SNI — publica no Diário de Notícias uma crônica em que lamenta a quantidade de “opiniões e hipóteses desenroladas” em torno de Eça de Queirós, ao longo de tantos “artigos, palestras, folhetos e volumes sobre volumes”17. Ele se pergunta, inconsolável: “Com tal avalanche de palavra e de textos deu-se algum passo considerável?”, antes de lançar uma hipótese que nos interessa muitíssimo: “Eça de Queirós se transforma, para a maior parte dos que se lhe referem, em mero pretexto para engenhosas divagações ou para alarde dos próprios conceitos e preferências”18. Poucos meses depois, na cerimônia de encerramento das comemorações oficiais do centenário queirosiano, é António Ferro quem admite de maneira mais pública e direta seu desconforto com a “ecite”, que ele entende como um fenômeno explicitamente político desencadeado por suas próprias ações: 

A partir de há pouco tempo, é certo, desde há 15 ou 20 anos, a obra de Eça de Queirós parecia-nos já coberta daquela pátina que a imunizava das curiosidades doentias dos leitores doentios de todas as épocas. Julgamos assim que foi, talvez, imprudente libertá-las dessa pátina, limpá-las dessa poeira de quase um século, precipitar, outra vez, as novas gerações para certas páginas de O Primo Basílio ou A Relíquia de sentido já obliterado ou esquecido. (…) Eça de Queirós já era hoje considerado, acima de tudo e para além de tudo, um grande português. Terá sido útil, para a sua glória e para a glória de nossa literatura, misturá-lo de novo com as nossas lutas políticas e religiosas, procurar aliciá-lo, por todas as formas e com todos os pretextos, para o fazer ingressar no MUD ou na União Nacional?19 

Talvez este seja o momento mais propício para interrompermos nossa análise e recordarmos de um passo interessante do pensamento da politóloga alemã Hannah Arendt. Em certa ocasião, Arendt foi muito feliz ao definir o que para ela seria o “mundo”, através de uma metáfora: o mundo seria uma mesa. Por um lado, a mesa é aquilo que separa os comensais em torno dela, impedindo aproximações mais intensas entre eles. É, neste sentido, um fator de distanciamento. Por outro lado, se se retira a mesa, aqueles comensais não estão mais em torno de nada: são elementos autônomos, dispersos, perdem a relação que tinham entre eles. Neste sentido, o mundo, segundo Arendt, é aquilo que ao mesmo tempo distancia e aproxima (no sentido de colocar em relação) uma população. Pertence ao mundo tudo o que estiver sobre essa mesa, mediando as relações entre aqueles que estão em torno dela. No pensamento da politóloga alemã, a experiência de “perda do mundo” resultaria na desagregação social (o não haver fator de aproximação) ou na transformação de uma comunidade em uma “massa” em que desaparece a individualidade (o não haver fator de distanciamento)20. Arendt, que estava preocupada com a descaracterização do espaço público na modernidade, e associava esse processo ao avanço dos fenômenos totalitários do século XX, compreendia que os povos ameaçados por estados com pretensões totalitárias vivenciavam precisamente essa experiência: se lhes retirava a mesa. Através do cerceamento da esfera pública e do controle de mentalidades, se lhes retirava o mundo que simultaneamente os individualizava e colocava em relação. 

Neste sentido, o salazarismo, em Portugal, pode ser entendido como uma inequívoca experiência de perda do mundo. Aquela célebre sequência de negativas proferidas por Salazar, em um discurso no dia 28 de maio de 1936 (“Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a pátria e a sua história. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a família e a sua moral. Não discutimos a glória do trabalho e o seu dever”21) sintetiza admiravelmente bem esse caráter da sua ditadura. Tratava-se de um regime que interditava o debate exatamente sobre aqueles valores em torno dos quais se dizia fundado: deus, pátria, família. As palavras que compunham tal mote, ainda que fossem espetaculosamente apregoadas por António Ferro, não estavam à mesa para que fossem debatidas. Não estavam, portanto, no mundo. Censurados e cooptados, os jornais podiam pouco mais que discutir trivialidades e reproduzir acriticamente notas oficiais. 

Cientes de tal contexto, retornemos à onda de “ecite” que acometeu Portugal. Embora o SPN/SNI tivesse interesses bastante específicos ao tornar Eça o objeto de uma celebração, a apropriação dessa efeméride por parte do país parece ter se desviado bastante dos propósitos oficiais. O juízo de João Ameal é diabolicamente acurado: em 1945, falou-se de Eça de Queirós para que, em “engenhosas divagações”, se falasse de outras coisas. Em um país que experimentava a “perda do mundo”, a sociedade portuguesa soube transformar aquele Eça permitido pela oficialidade na mesa em torno da qual se discutiram assuntos relevantes  para os portugueses amordaçados: a medicina, geografia, os assuntos militares, os campos de concentração,  as mulheres, a educação, o neo-realismo e o catolicismo, apenas para nós restringirmos aos exemplos citados neste texto. Em 1945, não é exagero dizer que, para muitos portugueses, Eça foi o mundo.  

IV: 

É claro que um fenômeno desse tipo não poderia ter acontecido, a não ser pela coincidência de dois fatores. O primeiro deles seria certo caráter polissêmico da escrita queirosiana, radicalmente ficcional, que a torna apreciável simultaneamente a partir de uma variedade de pontos de vista, refratando sempre interpretações monológicas. Se retomarmos uma vez mais o Lobato citado no início deste texto, essa polissemia está admiravelmente sintetizada na imagem do cigarro lânguido por ele referida, que de fato é representativa da estilística queirosiana. Cigarros não são lânguidos: a união entre substantivo e adjetivo é aqui imprópria, só legível como metáfora, e tudo que o leitor pode fazer é produzir imagens (sempre provisórias) que dão sentido a essa sentença. As descrições de Eça estão repletas desses jogos de sentido, que exigem do leitor aquilo que Paul Ricoeur chamou de “trabalho da semelhança”22

O segundo fator, por outro lado, seria uma disposição do público português para ler a obra de Eça nessa sua ambiguidade. A tarefa é menos simples do que parece, dado que a atitude da crítica portuguesa para com o autor, antes de 1945, parece ter sido marcada por uma tentativa de domar o sentido de sua obra, querendo ver nela a expressão direta de uma “ideia” definida a priori. Essa tentativa de controle do sentido das imagens queirosianas (ou “controle do imaginário”, para usarmos uma expressão consagrada do intelectual brasileiro Luiz Costa Lima) manifestava-se veladamente, por exemplo,  em um texto de Castelo Branco Chaves publicado na Seara Nova em 1930 (“O conceito de Revolução em Eça de Queirós”23), no qual a obra ficcional de Eça é lida como tradução direta da noção de Revolução segundo Proudhon. Mas o mesmo controle aparece também de forma aberta no volume da Antologia Portuguesa que Agostinho de Campos dedicou a Eça em 192242, no qual ele confessa sem corar que censurou a obra do autor de modo a só publicar o que coincidisse com os valores morais, religiosos e patrióticos da  direita portuguesa.  

A “ecite” de 1945 demandou um abandono desse devir censório, pelo menos por parte da crítica e do público não comprometidos com o projeto salazarista. Transformar Eça num subterfúgio através do qual assuntos interditados pudessem ser discutidos exigiu reconhecer que a obra ficcional queirosiana podia sim comportar mais de um sentido ao mesmo tempo. Mais do que isso: exigiu reconhecer, ainda que de maneira tácita, que exatamente neste descontrole semântico está a sua riqueza, ou pelo menos sua potência política em tempos de exceção.  

CONCLUSÃO 

Colocar as coisas desse modo nos permite vislumbrar o caso da “ecite” de 1945, aqui apresentado, como um trampolim para repensarmos o conceito de realismo. Este Ensaio, que já ficou longo demais,  não é o foro adequado para uma reflexão dessas, que ademais ainda está bastante incipiente. Permito-me penas uma provocação, que conclui este texto e sugere os próximos passos da pesquisa.  

A frustração expressa por João Ameal e António Ferro, ao notar que a “ecite” tornara-se um empecilho no projeto salazarista de “perda do mundo” do qual seu departamento de propaganda era uma engrenagem, é a expressão do reconhecimento de um fracasso. Apesar da magnitude dos esforços do SPN/SNI, a obra e a figura de Eça de Queirós parecem ser dados da realidade portuguesa que – pelo processo ao descrito aqui – resistiram aos desígnios da vontade de Estado e configuraram-se provisoriamente como um foro de debate no qual Portugal pode se discutir. O “real resiste”, cantou certa vez o poeta brasileiro Arnaldo Antunes, protestando contra outro projeto autoritário mais recente, que também deseja dispor da realidade a seu bel prazer. 

Talvez, embora o próprio Eça tenha, durante a juventude, concebido o realismo de sua literatura como a capacidade nela contida de descrever com precisão o real, denunciando suas injustiças, o caso aqui narrado reelabore o problema. O realismo queirosiano estaria nem tanto em seu potencial de espelhamento da realidade, mas na possibilidade de transformar-se – precisamente pelo que tem de mais metafórico e inventivo – numa reserva dela em termos sombrios. 

Referências:

1 Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre (São Paulo, Globo, 2010), 51.

João Gaspar Simões. Eça de Queirós: O homem e o artista. (Lisboa, Dois Mundos, 1945).

Antônio José Saraiva. As Ideias de Eça de Queirós. (Porto, Editorial Inova Limitada, 1946).

Mário Sacramento. Eça de Queiroz. Uma Estética da Ironia. (Coimbra, Coimbra Editora, 1945).

Lúcia Miguel Pereira, Luiz da Câmara Reis (orgs.) (O Livro do Centenário de Eça de Queiroz. Lisboa, Editora Dois Mundos, 1945).

Alberto Pessoa, As Ideias médicas de Eça de Queirós (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1945).

7 Belisário Pimenta, “Eça de Queirós”, Revista Militar, Vol. XVII, No 11 (nov. 1945).

Luiz d’Oliveira Guimarães, Eça e os Políticos (Lisboa, Edições VIC, 1945)

9 Luiz d’Oliveira Guimarães, As mulheres na obra de Eça de Queirós (Lisboa, Edições VIC, 1943)

10 Luiz d’Oliveira Guimarães, O Conselheiro Acácio (Lisboa, Edições VIC, 1945)

11 Para os numerosos artigos de As Novidades que integram a campanha contra Eça de Queirós, conferir as edições entre janeiro e julho de 1945, desse jornal, em especial as dos dias 11, 18, 20 e 22 de janeiro.

12 Allyrio de Mello, Eça de Queiroz, o exilado da realidade. (Porto: Livraria Tavares Martins, 1945).
 
13 “Ano literário sob o signo de Eça de Queirós”. Diário PopularLisboa, 31/12/1945

14 António Ferro, “Como se vai celebrar o centenário de Eça de Queirós”. [Entrevista concedida ao] Diário de Notícias, 20/11/1944

15 Fernando Rosas, Salazar e os fascismos. (Lisboa: Tinta da China, 2019), 254.

16 Breno Góes, “Os fascistas que liam Eça de Queirós”, Revista Cantareira, No 33 (mai. 2020).

17 João Ameal, “Uma aparência para cada um”, Diário de Notícias, (05/12/1945).

18 idem, ibidem

19 António Ferro, “Discurso”. Eça de Queirós no centenário de seu nascimento, (Lisboa, Edições SNI, 1950), I – XXV.

20 Hannah Arendt, A condição humana, (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), 62.

21 António Salazar. Discursos e notas políticas. vol. V, (Coimbra, Coimbra Editora, s.d.), 104 e 105.

22 Paul Ricoeur, A Metáfora Viva. (São Paulo: edições Loyola, 2000), 267.

23 Castelo Branco Chaves, “O conceito de Revolução em Eça de Queirós”, Seara Nova, No 205 (mar., 1930), 201.

24 Agostinho de Campos, Antologia Portuguesa (Lisboa, Portugália,1922).