Texto de Riccardo Cocchi. Revisão de Sebastião N. Viana.
A aprovação, no passado mês de janeiro deste ano de 2021, do Projeto de Resolução nº 800/XIV/2.ª por parte do Parlamento Português determinou que, a título honorário, os restos mortais do ilustre escritor Eça de Queirós fossem trasladados para o Panteão Nacional. Aproveitava-se, aquando da publicação em 14 de dezembro de 2020 do dito Projeto, o 175º aniversário do nascimento do autor d’Os Maias como pretexto para avançar com esse processo de reconhecimento póstumo. No entanto, neste corrente ano de 2021, volvidos 175 anos da morte de “Severa”, personagem emblemática dentro do panorama urbano da Lisboa do século XIX e da História do Fado, julga-se que valha a pena entabular um ensejo de comemoração a dois, mesmo que os questionamentos que surgirem ao longo deste artigo possam limitar-se à delineação de considerações meramente especulativas.
Ora, no âmbito desta análise, o elemento com o qual se pretende aproximar essas duas figuras históricas portuguesas não é de ordem biográfico (Eça nasceu em 25 de novembro de 1845, enquanto Severa morreu aos 30 de novembro do seguinte ano), nem derivante, como se poderia esperar, daqueles que foram os pronunciamentos do próprio escritor sobre o Fado (veja-se, por exemplo, o texto “Lisboa” das Prosas Bárbaras). Na verdade, o ponto de partida é a coincidência de Severa ter morrido registada como “Maria Severa Onofriana”, conforme consta no seu assento de óbito, e o facto de Eça de Queirós se ter debruçado sobre Santo Onofre no texto sobre a lenda de vida dessa figura, coligido na edição póstuma do volume Últimas páginas (1912). Assim sendo, haverá espaço neste artigo não só para relembrar um texto pouco conhecido da imensa bibliografia queirosiana, mas também para traçar um hipotético paralelismo – reitera-se, meramente especulativo – entre as caraterísticas de Santo Onofre destacadas pelo autor d’Os Maias e algumas das referências sobre Severa que, de certa forma, poderão assemelhar-se ao próprio modus operandi e o estilo de vida do protagonista desse escrito hagiográfico de Eça de Queirós. Desta maneira, ao referirmo-nos a Santo Onofre, ter-se-á em conta, para além do texto original do próprio Eça, o artigo sobre este mesmo assunto intitulado «O dilema entre orgulho, ascese e santidade em “Santo Onofre”, de Eça de Queirós», de autoria de Antonio Augusto Nery; por outro lado, as informações sobre Severa vão ser retiradas tanto do volume Severa (Maria Severa Onofriana): 1820-1846 (1936), escrito por Júlio de Sousa e Costa, como do romance A Severa (1901) de Júlio Dantas. Com isto, utilizando os elementos selecionados a partir desses textos, como referido, será traçado um paralelismo entre as duas figuras “onofrianas”, cujo intuito é, ao ilustrar pontos divergentes e em comum, oferecer, para além de um questionamento sobre a presumida ligação entre o último nome de Maria Severa Onofriana e Santo Onofre, uma oportunidade de reflexão em torno de outras possibilidades.
Posto isso, começando pelas palavras de Nery (2014), é relevante sublinhar que Santo Onofre faz parte do grupo de «santos quase desconhecidos, cujas vidas são pouco ou nada notórias na galeria da santidade católica, mas que […] estão inscritos no devocionário popular»i. E, como bem sintetiza o mesmo estudioso, «a principal caraterística do personagem Onofre é o recorrente sofrimento devido ao incessante desejo de superar seu elevado orgulho», sendo essa «“luta contra a carne”»ii o leitmotiv que permeia toda a narração de teor hagiográfico escrita por Eça. Logo, dentre os testemunhos que recolheu Júlio de Sousa e Costa, é o próprio autor em primeira pessoa quem nos refere que «razão tinham […] as pessoas que […] consultei e ouvi, dizendo que essa mulher era mais digna que muita gente supõe… […] Ainda que infernada na sua dor moral que foi grande, conforme ela confessava aos seus íntimos, não desceu tanto como se julga»iii. Portanto, o Santo Onofre de Eça e a Severa retratada por Sousa e Costa partilham ambos uma vida feita de sofrimento, embora esse mal tenha origem, respetivamente, a partir de uma luta interior contra o próprio orgulho – entendido quase ao par da húbris – e de uma «sina fatal que [Severa] trouxera do berço»iv.
Além disso, relativamente à questão do modus operandi, ambas as figuras em análise, nas relativas narrações, realizam a seguinte ação: o cantar. De facto, «naquela vastidão de areias [no deserto da Tebaida]», refere Eça de Queirós, «se movia aquela forma solitária», isto é, Onofre, «entoando da borda do seu eirado um cântico de grande esperança»v, seguindo-se a essa imagem diversas outras – relativas ao protagonista – como «todo o esse dia cantara cânticos de Graça»vi, «lançando o seu cântico perene para o Céu»vii, «entoou furiosamente um cântico alegre»viii e «não cessou de cantar hinos»ix. Por outro lado, também Severa – que, aliás, é conhecida sobretudo em virtude da sua alegada ligação ao Fado enquanto cantadeira – se mostra, a partir dos depoimentos coligidos na investigação de Sousa e Costa, como uma mulher que:
Tinha dias de negra melancolia. Nessas ocasiões fechava-se no seu quarto, não queria ver pessoa alguma e chorava durante longas horas, num pranto silencioso, apertando contra o seio a imagem da Senhora das Dores que tinha sempre sobre a cómoda de pau santo do seu aposento. Passada a crise cantava em tom mesto e dolente e, algumas vezes, improvisava fadosx.
Ora, tendo-se em consideração o facto de estarem a ser estudadas duas figuras bastante mais próximas do âmbito popular do que de uma dimensão mais culta, talvez seja mais adequado recorrer a ferramentas mais próprias daquela esfera do que desta para melhor explicitar as considerações que se pretendem avançar por meio deste artigo. Dentre essas ferramentas, o ditado “quem canta, seu mal espanta” julga-se que seja a mais adequada pelas seguintes razões: 1) a partir dessa afirmação, inclusive lida no seu sentido literal, tanto no caso de Santo Onofre como no de Maria Severa, o canto representa uma forma de comunicação, isto é, uma forma de estabelecer quer uma ponte com um interlocutor divino, quer com os públicos das mais diversas camadas sociais, perante os quais a famosa cantadeira se terá exibido, podendo-se interpretar em ambas as situações a possibilidade de o ato de cantar em si ser o meio através do qual se atingiria a santidade e a catarse, aliás duas formas de libertação e desapego; 2) por conseguinte, convém lembrar que o canto – entendido, em particular nesses dois contextos, por um lado como conjunto de cânticos e hinos sagrados e por outro como incorporação e representação do Fado – está emoldurado dentro de um processo de ritualização que, conforme a situação, responde a determinadas exigências e práticas que lhe conferem uma identidade própria, garantindo a maneira de ser distinguido de outras formas de manifestação. Em suma: Onofre e Severa cantam, realizando essa ação em forma de ritual, e, com isto, procurando a interlocução, tentam atingir um fim último, cujo principal alvo resulta ser a libertação individual na união com o Outro.
Ainda mantendo o foco sobre o jeito de agir desses personagens, impressiona um outro pormenor que permite um ulterior termo de comparação. Com efeito, Santo Onofre e Severa são figuras benfeitoras que, entregando-se aos outros, se parecem bastante entre eles pelo facto de ambos realizarem ações que, afinal, podem ser reconduzíveis, nas palavras de Nery, aos atos de «Cristianismo “prático”»xi. Vejamos, no detalhe, o que se quis afirmar com isso, através da leitura comparativa das respetivas descrições desses personagens nos excertos a seguir. Portanto, iniciando pelo Onofre de Eça:
Ele […] se tornara o escravo dos Pobres. […] Onofre trabalhava no serviço dos miseráveis […]. Depois ia mendigar para os seus pobres, por toda a cidade, desde as casas mais ricas […] até às cubatas das prostitutas, donde trazia sempre no saco algumas côdeas de pão, restos de peixe, ou uma maquia de lentilha […]. Outras vezes alugava o seu pobre corpo descarnado aos mais duros serviços […]. De noite, com uma tocha, alumiava os tresnoitados – ou impedia que os ébrios, saindo das tabernas dos canais, rolassem à água escuraxii.
E seguindo com Severa retratada no volume de Sousa e Costa:
A fama da sua alma caridosa, o carinho que tinha com as crianças do bairro, o sorriso alegre e franco para todos e a sua conversação sem ditos grosseiros, davam-lhe tratamento à parte. Conhecia toda a gente do bairro da Mouraria e em todos os estabelecimentos tinha crédito se quisesse, o que ela agradecia mas não aceitava por um princípio que só ela lá sabia! Era paga honradíssima e proverbial a sua indiferença pelas joiasxiii.
Ora, nota-se que há bastante semelhanças nas atitudes descritas. Contudo, se quisermos salientar um ponto de divergência, no primeiro caso o esforço é motivado por um propósito, isto é, o atingimento da perfeição, ou melhor, a comunhão com Deus; no segundo, ao contrário, existe, conforme os testemunhos recolhidos, uma índole inata para realizar o bem em prol do próximo, pois, apesar de ter «pouca ou nenhuma» fé religiosa, Maria Severa «tinha apenas o culto da Caridade»xiv. Inclusive, não menos interessante é o facto que, tendo-se tornado o «escravo dos Pobres» que «alugava o seu pobre corpo descarnado aos mais duros serviços», Onofre, no fim das contas, desempenha um papel não tão diferente daquele que Severa cumpre como prostituta. Sem esquecermos, ainda por cima, que, segundo nos diz Nancy Qualls-Corbett (1988),
Em matriarcados antigos […] a paixão erótica era inerente à natureza humana do indivíduo. Desejo e resposta sexual, vivenciados como poder regenerativo, eram reconhecidos como dádiva ou bênção do divino. A natureza sexual do homem e da mulher e sua atitude religiosa eram inseparáveis. Em seus louvores de agradecimento, ou em suas súplicas, eles ofereciam o ato sexual à deusa, reverenciada pelo amor e pela paixão. Tratava-se de ato honroso e respeitoso, que agradava tanto ao divino quanto ao mortalxv.
Finalmente, há um outro ponto que merece particular atenção. Assim, com base em dois episódios cuja dinâmica é – no seu cerne – análoga e pelo significado que estes veiculam, é possível estabelecer uma nova correlação entre Santo Onofre e Maria Severa. Desta vez, em lugar de ilustrar logo a comparação por meio do conteúdo, antecipa-se que o termo da analogia se encontra na asserção e no posicionamento ciente dos dois personagens em defesa da própria liberdade de ser e da fé nos próprios ideais e intuições. Ou seja, não abdicando desses princípios, acontece que, em última instância, lhes seria impossibilitado o acolhimento por parte de um determinado sistema-comunidade, para o qual ambos não só nutrem um sentimento de não-pertença e desconfiança, mas também – por consequência direta – porque receiam que assim seriam conduzidos, dentro desse meio, para um estado de alienação total da própria essência. Noutras palavras: dir-se-ia que, voltando a convocar o domínio do âmbito popular para obter um mais imediato esclarecimento, se pode identificar a chave de leitura dessa analogia em abstrato nos ensinamentos que retiramos ao lermos o celebérrimo conto intitulado O patinho feio, de autoria de Hans Christian Andersenxvi.
Ora, no específico, há um momento em que, ao longo da narração de Eça de Queirós, Santo Onofre é, literalmente, cercado por um grupo de homens que pretendem inculcar-lhe as suas próprias doutrinas e os seus credos. Desta forma:
[…] aqueles homens (que eram de certo Doutores) afirmavam Princípios, cheios de irrisão ou mentira. […] E a cada uma destas revelações […] Onofre ora entreabria uma boca néscia, ora rompia num riso largo e límpido, que lhe sacudia as costelas sob o seu surrão de peles. Então, arremessados sobre ele, todos lhe brandiam junto da face os seus papiros, os seus tabulários. Eram as Provas! Eram as Escrituras!xvii
Apesar das reiteradas ofensivas ideológicas dos «Doutores», Onofre, firme na sua convicção de que apenas acredita «no Padre, no Filho, no Espírito Santo», consegue vencer a teimosia daqueles homens que, afinal, são obrigados a recuarem face àquele que um deles – já derrotado – acaba por chamar de «bruto». Do mesmo jeito, no caso de Maria Severa, se afigura uma situação parecida, desde que se utilize como ponto de partida, para fins de confronto, aquele que é considerado por muitos estudiosos um dos ápices da sua biografia: alude-se, pois, tanto à relação amorosa com o Conde de Vimioso, isto é, D. Francisco de Paula Portugal e Castro, como – e sobretudo – à ocasião em que este último apresentou Maria Severa aos membros da elite intelectual portuguesa da primeira metade do século XIXxviii. No entanto, desta feita, utilizar-se-á o acima mencionado romance de Júlio Dantas como fonte para estabelecer a conexão com o episódio de Santo Onofre com os Doutores. Com efeito, no quinto capítulo da segunda parte da obra de Dantas, Severa, estando já hospedada na casa do seu amante no Campo de Santana, proporciona, sob iniciativa do próprio Conde, uma audição para «os grandes leões da moda, da política e das letras»xix, através da qual a cantadeira conseguiu comover até às lágrimas «esses varões de Plutarco, que pareciam fundidos em bronze»xx. Porém,
Com um animal bravio e livre como a Severa, aquele novo regime de reclusão não podia dar bons resultados. […] começou a entristecer, cavaram-se-lhe olheiras profundas, faltava-lhe o sol, a independência, a liberdade, – que eram para ela a expressão da própria vida. Aquela casa triste e opulenta […] aparecia-lhe agora como uma prisão. E o amor, para a cigana [a Severa], não era a prisão e o silêncio; era o movimento, a alegria, a estúrdia, a aventura. […] A cigana começou a pensar a sério em fugirxxi.
E, de facto, não sendo assim por acaso que o capítulo seguinte se abre com o regresso definitivo de Severa para o seu «bairro de desgraça»; do mesmo jeito, não parece ser por acaso que, quase como se fosse um sinal premonitório, quando
O Conde pedira-lhe [a Severa] que abandonasse o Bairro Alto, aquela vida de porta-de-rua, e que se acolhesse decentemente a uma casa que ele lhe poria, como se fosse a uma grande dama, e onde, para a deslumbrar, a vestiria de seda e a cobriria de joia. A galdrana [leia-se: prostituta], de sua natureza bárbara e selvagem, preferiu continuar a ser a primeira entre as da sua igualha. Ficou no Bairro Alto, amparando as desgraçadas e dando de comer às que tinham fomexxii.
Pois, resulta assim evidente, após a leitura desses últimos fragmentos, como Santo Onofre e Severa, nas relativas representações, se mostram como duas figuras caridosas fiéis à própria essência e firmes nos próprios princípios e ideais, e que, outrossim, estão ligadas pela prática do canto. Entretanto, julgando ter cumprido com a proposta inicial, lança-se, antes do encerramento definitivo deste artigo, a seguinte questão: admitindo que Eça de Queirós, para a construção da personagem de Onofre, tenha recorrido efetivamente a fontes hagiográficas ou ao saber popular, conferindo-lhe assim os traços que seriam reconhecíveis pelo próprio povo, não haverá no seu texto uma pista que nos possa conduzir para a elucidação do motivo de Maria Severa ter sido chamada de “Onofriana”?
De resto, se o Santo Onofre de Eça no final da narração «caiu sobre o seio de Jesus Cristo, Nosso Senhor, que o apertou docemente nos braços, e o levou consigo para o céu»xxiii, pelo contrário, abandonando o mundo da ficção, Maria Severa Onofriana acabou sendo sepultada, conforme reporta Sousa e Costa ao transcrever o registo de enterramento dela, na vala comum do cemitério do Alto de São João de Lisboa. Logo, se admitirmos que é impossível efetuar uma operação de trasladação dos restos mortais de Severa tal como a que foi realizada com os de Eça de Queirós, tendo-lhe sido conferida dessa forma uma acrescida aura de prestígio póstuma, acaba por ser significativo, sem lugar para dúvidas, o facto de a generosidade intelectual desse escritor ter proporcionado também um espaço de resgate e reflexão, através da interpretação da sua obra neste trabalho, em volta dessa outra grande figura portuguesa que talvez, à sua maneira, tenha alcançado outro tipo de santidade e sacralidadexxiv. Facto que não deixa de ser, fechando com uma expressão queirosiana, um “suave milagre”.
Referências:
1 Antonio Augusto Nery, «O dilema entre orgulho, ascese e santidade em “Santo Onofre”, de Eça de Queirós», Forma Breve nº 11 (2014): 99, https://proa.ua.pt/index.php/formabreve/article/view/5314.
2 Ibidem, 100.
3 Júlio de Sousa e Costa, Severa (Maria Severa Onofriana): 1820-1846 (A Bela e o Monstro / Rapsódia Final, 2016), 75-76.
4 Ibidem, 79.
5 Eça de Queirós, «Últimas páginas», em Obras de Eça de Queirós – Volume XI (Porto: Lello & Irmão, 1947), 166.
6 Ibidem, 179.
7 Ibidem, 180.
8 Ibidem, 188.
9 Ibidem, 209.
10 Júlio de Sousa e Costa, op. cit., 154.
11 Antonio Augusto Nery, op. cit., 104.
12 Eça de Queirós, op. cit., 206.
13 Júlio de Sousa e Costa, op. cit., 10.
14 Ibidem, 175.
15 Nancy Qualls-Corbett, A prostituta sagrada: a face eterna do feminino (São Paulo: Paulus, 2002), 38. Vale a pena sublinhar que com a expressão “prostituta sagrada” entende-se a «mulher mortal devotada à deusa» que «pode ser considerada imagem arquetípica». Ibidem, 88.
16 Inclusive, a propósito da interpretação desse conto de Andersen, que também inspirou a abordagem aqui proposta, leia-se Clarissa Pinkola Estés, «El hallazgo de la manada: La dicha de la pertenencia», em Mujeres que corren con los lobos (Barcelona: Zeta Bolsillo, 2008), 233-277.
17 Eça de Queirós, op. cit., 196.
18 Para melhor enquadrar esse assunto, aconselha-se a leitura de Rui Vieira Nery, «A saga mítica de Maria Severa», em Para uma História do Fado (Público / Corda Seca), 64-71.
19 Júlio Dantas, A Severa (A Bela e o Monstro / Rapsódia Final, 2016), 321.
20 Ibidem, 326.
21 Ibidem, 320.
22 Ibidem, 273-274.
23 Eça de Queirós, op. cit., 239.
24 Retomando as palavras de Nancy Qualls-Corbett, «não há dúvida de que a prostituição sagrada existiu por milhares de anos e em muitas civilizações», sendo ela «membro integral da comunidade». Nancy Qualls-Corbett, op. cit., 38. Também são bastante interessantes para a presente análise as seguintes considerações que essa autora levanta, respetivamente, nos parágrafos intitulados «A prostituição profana» (47-49) e «A extinção da prostituição sagrada» (51-59). Assim, «à prostituta profana não era permitido misturar-se com a sociedade e, frequentemente, ela não podia andar pelas ruas durante o dia. Ela era proibida de entrar nos templos e de participar de qualquer cerimônia religiosa […] A prostituição fora dos recintos do templo era, portanto, esporte cruel e brutalizante. A degradação da prostituta profana – que representa o lado negro da sexualidade feminina – era profunda. Ela representa exatamente a antítese da prostituta sagrada, cuja sexualidade reverenciava a deusa; ainda assim, ambas existiam em justaposição.» Nancy Qualls-Corbett, op. cit., 48-49. E, «no culto à deusa […] o sexo era trazido de maneira aberta e reverencial ao altar da divindade. […] Mas com a mudança nos valores culturais, e com a institucionalização do monoteísmo e do patriarcado, o indivíduo passou a vir à casa do Senhor para preparar-se para a morte, com a promessa da felicidade eterna mediante o simples cumprimento das leis. Sob a nova tradição […] a prostituição profana continuava a florescer, e a natureza sexual da mulher era associada a ela ou por ela julgada. Tendo deixado de ser vista como dádiva do divino, a sensualidade da mulher passou a ser rebaixada e explorada. As mesmas qualidades pelas quais a mulher fora outrora considerada sagrada, agora vieram a ser a razão pela qual era degradada.» Ibidem, 54-55.