Recensão: mother!, Darren Aronofsky, 2017, João N.S. Almeida

Texto de João N.S. Almeida. Revisão de Tomás Vicente Ferreira.

A premissa do filme e a consequência da mesma são fáceis de explicar: há o escritor, Javier Barden, e a sua companheira, Jennifer Lawrence, que habitam uma casa. Existe a iminência de um filho e existe a iminência da obra literária. A partir daqui estão logo estabelecidas as referências básicas que permitem a alegoria violenta: distinção entre sujeito e mundo, civilização e selvajaria, pais e filhos (filhos físicos e filhos literários), etc. O escritor, antes acometido de um bloqueio criativo radical, dá vida a um poema que transforma todo o mundo, tornando-se no maior sucesso literário de sempre. O que sucede depois, numa mistura entre representação de narrativa e figuração tradicionais e acumular delirante e onírico de acontecimentos e multidões e personagens caóticas, vai beber muito de referências a Charles Manson, a Luís Bunuel em Viridiana e ao tribalismo primário com que a década de sessenta, a década do bom selvagem e das comunidades hippies, teve de lidar.

Após o escritor exercer o seu poder mágico, através da linguagem, sobre o mundo, é uma espécie de perversão da poesia, conforme a entendemos, que a aproxima dos territórios pautados pelo fanatismo religioso, tornando-a assim absolutamente distante dos idílios benignos em que a poesia costuma connosco conviver. Aqui, a palavra é como chave que abre um ante-mundo primitivo que em nada se assemelha a um éden: é antes caos e selvajaria, sangue, ódios e grunhidos primitivos. Multidões de devotos invadem a casa, estabelecem lá residência, tratam o escritor e a sua mulher como totems, subtraindo-lhes a sua humanidade, transformando-os em meios para o remendo da criação. O casal não é, aí, mais humano, mas sim votado ao desprezo utilitarista com que as populações tratam os ícones. Barden não consegue evitar a invasão, retratado como um monstro tímido, algo emasculado, submisso às forças do mercado e da edição que o levam a não rejeitar a invasão dos seus devotos leitores. É curioso que o autor, conhecido por interpretar psicopatas, seja aqui encostado à parede pela revanche que surge na forma desse delírio colectivo. Barden fica bem de ambas as maneiras.

Onde o filme de facto assume o seu principal veículo de fé é no poder do logos: tal poder faz desabrochar a fantasia do poema impossível que o escritor produziu, a fantasia do acometimento delirante e violento das multidões, e a consequente imitação de “revolução” social — a que são associados, em vários pontos da narrativa tão plástica, os movimentos revolutivos da terra, etc. No cenário, o povo deslumbra-se e saliva de raiva face aos despojos da guerra que levantam; os poderosos, neste caso Lawrence e Barden, fazem como de costume de manequins figurativos dessas vontades populares, lembrando como o poderoso é apenas um placeholder para o poder das massas, que só o deixam estar lá nos termos em que entendem.

Fotos de Lawrence, curiosamente, num daqueles infindáveis encontros entre realidade e ficção, surgiram recentemente num vazamento de dados online, onde a actriz (se é que se trata mesmo dela) surge recebendo sémen na cara; a associação é assim também com a figura universal da mãe, que recebe a semente da criação não no ventre mas na alvura do próprio rosto. Há algo na actriz (a mesma que recebeu esse sémen no rosto e o partilha, voluntária ou involuntariamente, com o mundo de ver-se-a-si-mesmo-na-cara), e no seu fantástico papel no filme, há algo de exilada, de mal-nascida (pela contingência, não pela maldição da descendência), num mundo decaído onde não é possível ser-se a musa de um artista (a este propósito, veja-se também The Phantom Thread, de Paul Thomas Anderson). A mother de Lawrence é figura telúrica, presa às armações de madeira da casa, a dado ponto a única coisa que parece imutável no meio da confusão orgíaca e autofágica trazida pelos invasores: escadas, quartos, todos se desconjuntam, são efémeros, apodrecem e respiram os vapores dos seus habitantes presentes e passados. No fim, Lawrence sobrevive, foge, procura e protege um bocado de carne, um filho ou imitação do mesmo reduzido a isso, no final, nada mais do que carne, cujo sacrifício é involuntário e ocorre na providência na multidão (orgasmo de origens, devassidão tão parecida como forma inversa da criação da vida). É elemento central da história o amor dos dois, num registo mais bem delineado e funcional, o amor do escritor e daquela que poderia ser a musa; mas não é musa, é criatura perdida, é mulher querendo ser algo que não sabe o que é.

A metáfora da criação, que envolve tanto carne, como texto e a transcendência de cada um desses elementos, está lá sempre. A dimensão da carne pela carne é por demais evidente: sexo, pessoas, mãos, lábios, porcaria arrastando-se e procurando mais porcaria. O texto, algo diferente, aparece como a coisa ou semi-coisa que, entre aqui e além, transmite algo mais que a carne (?) mas que, perigosamente, parece de facto atrair muita carne. Assemelha-se ali a um chamariz sonoro ou olfactivo que atrai as feras, que as reúne para o período dos cios. Quanto à transcendência, não é claro onde a encontremos; talvez, quiçá, no olhar confuso de Lawrence procurando a razão (procurando o homem, que a perdia, e não o encontrando), procurando o filho (algo que é uma fatia a mais do que apenas carne) e procurando o encaixe do seu medo perfeito, na situação acossada que vive, medo tão bem desenhado por Aronofsky durante a película.

O filme é sobre como a escrita de um poeta pode abrir uma porta rimbaudiana de “verdadeira vida” que atrai todo o povo (e que evidentemente só fazem merda porque são criaturas meramente e invariavelmente boçais); no meio disso, Lawrence, a mãe, anda lá perdida e vê o seu filho de carne oferecido ao sacrifico, um sacrifício mais do que literal, de todas as maneiras. Mas o que acontece, afinal, é que o pai é danado ou impotente, o filho é tanto o poluimento do poema que transforma o mundo como a fatia de carne do filho físico, e Lawrence a perdida. Mais uma obra fantástica de Aronofsky, assim, metafísica, cheia de simbolismo religioso particularmente bíblico, muito forte, constituindo mais uma entrada na infindável temática da trilogia primitiva do criador, da natureza, e da falha (também conhecida por muitos outros nomes).