Dostoevski as Viewed by Portuguese Writers of the Twentieth Century, William P. Rougle

https://independent.academia.edu/WilliamRougle

Although Dostoevski took Portugal by storm beginning in the late 1880’s when he was first introduced to Portugal through Eugene-Melchior de Vogüé’s renowned book Le Roman russe(Paris: Libriarie Plon, 1886) it was not until after the First World War that his fiction came to dominate the literary scene in Portugal. Although this is evident in the primary importance attributed to his work by the literary movement Presença, by the flood of translations of his fiction and criticism of his work, beginning in the 1930’s through the 1970’s, and by the influence his work had on such writers as José Regio, João Gaspar Simões, José Rodrigues Miguéis, Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Vergílio Ferreira, and Augusto Abelaira to name but a few, it tells us little  how Dostoevski was personally received by Portuguese critics and writers during this period and how his work may have influenced their own. Such knowledge can only be had by speaking with the writers themselves. With this objective in mind, a series of fifteen interviews were conducted by this writer to define their personal experience and views on Russian literature.  The fifteen interviews encompass two generations of Portuguese critics and writers. 

Collectively, the interviews provide an overview of the impact Dostoevski’s had on the interviewees and rare insight into how each writer personally responded to him. Although the generations of João Gaspar Simões and Agustina Bessa-Luís are separated by twenty years, they shared two characteristics: 1) All those interviewed first came in contact with Russian literature in their adolescence through Dostoevski—a confirmation of how his fiction dominated this period for over thirty years;  2)  While differing in focus and intensity in recalling their first contact, almost all interviewees agree that it was a defining moment in their lives which opened the door to a new and more imaginative world of literature to them.  The majority were captivated by Dostoevski as a literary psychologist à la Andre Gide and Gaspar Simões or as a defender of the humble and the oppressed concerned with the common man’s everyday struggles and sufferings. Others, however, viewed Dostoevski’s metaphysical ideas to be of primary importance. 

To best appreciate how Dostoevski was received by this group of writers, it is best to let them speak for themselves, assisted now and then by a helping hand that provides context for their comments.

João Gaspar Simões (MAY 11, 1979)

It is only fitting that this series of comments on Dostoevski begin with those of João Gaspar Simões, the critic most responsible stimulating an interest among the Portuguese in Dostoevski. His interpretation of Dostoevski was inspired by Andre Gide’s reassessment of Dostoevski’snovelistic skill and insight into man’s multidimensional psychological character. He notes in his inteview:

André Gide deu-nos um conhecimento mais profunda de Dostoievski. O seu livro levou-me a publicar na Presença, no final dos anos 20, um estudo intitulado “Depois de Dostoievski”, que é uma das primeiras coisas que se escreve em Portugal sobre este autor. Gide afirmava que a partir de Dostoievski o romance tinha adquirido uma outra estrutura (psicológica entenda-se). A concepção do homem uno que existia na literatura psicológica francesa, inclusivamente em Paul Bourget, tinha sido destruída por essa inconsequência psicológica que caracterizava as personagens de Dostoievski.

From his point of view, he adds, Dostoevski’s psychological man:

caracteriza-se pela inconsequência. Em lugar de ser um homem e de nos aparecer como um todo psicológico ou de ter uma homogeneidade de comportamento psicológico, o homem Dostoievskiano revela um comportamento psicológico contraditório. Toda esta simultaneidade de feições e de aspectos da psicologia humana que não tinha sido analisada até doravante passa a  sê-lo. Daí que os próprios franceses quando traduziram Dostoievski pela primeira vez tenham procurado adaptá-lo ao seu modelo racional, decorrente dos romances psicológicos franceses dos séculos XVII e XVIII, desde a própria Madame de La Fayette. Com Dostoievski, o homem deixa de ser um ser racional, para se tornar um ser essencialmente contraditório e psicologicamente formado por várias camadas contraditórias, que escapam à racionalidade. Isso é uma novidade de que me apercebi sobretudo ao ler os ensaios de André Gide, onde ele revelou inclusive que as traduções francesas estavam viciadas, porque procuravam harmonizar o que havia de contraditório no comportamento humano das figuras de Dostoievski, para as tornar mais compreensíveis à luz da racionalidade ocidental e sobretudo francesa. ( 80, 81,)

More important was Dostoevski’s legacy:

Dostoievski alterou completamente a visão que a literatura tinha do homem. Esse é o lado que realmente mais me apaixonou nele e que terá deixado uma influência extraordinária em toda a literatura moderna. Creio que o próprio Kafka não teria existido sem Dostoievski. A alteração profunda na concepção do homem na literatura veio através de Dostoievski. (82)

Natália Nunes 5/25/1979

Natália Nunes was also interested in Dostoevski as a literary psychologist. When asked if Dostoevksi was a good psychologist she agreed but qualifies her observation by stating that the Russian writer 19th-century writer Berdyaev noted that: 

Dostoievski era sobretudo um pneumatólogo, quer dizer, um observador do espírito. E eu concordo com ele. Dostoievski pratica uma metapsicologia e quase que entra na metafísica. Por meio do diálogo entre as personagens, ele conduz maieuticamente o leitor à descoberta de si, daquilo que ele não sabe sobre si próprio. É um autor que desce até às raízes profundas, espirituais da humanidade, ao problema da morte, de Deus, do bem, do mal, enfim, às questões fundamentais. (133)

Was Dostoevski a pessimist or an optimist?

Dostoievski apresenta personagens muito variadas. Não são lineares com as da tragédia clássica. Oscilam, são incoerentes, como todos nós. Têm traços bons e maus, são inseguras… Muitas delas parecem estar a caminho de uma definição do mal, quer dizer, são personagens resultantes de uma encarnação diabólica. Ele chega a afirmar algo como: «Eu  creio num demónio, não num demónio transcendental, mas num demónio real, bíblico, encarnado.» Dostoievski acredita no diabo presente, embora algumas personagens, nomeadamente em n’O Idiota (estou a pensar no Aliocha) se aproximem de um protótipo de bem, de pureza, etc (133.134)

Agustina Bessa-Luís 8/25/1979

When asked what captivated her most about Dostoevski work she replied:

Portador de uma personalidade doentia, Dostoievski penetrava mais profundamente do que outros escritores na realidade humana. Hoje, com os conhecimentos que possuímos e com a linguagem técnica disponível, poderíamos 38 até dizer que ele era um tipo humano com taras. Creio que, à semelhança do que eu disse sobre Gogol, também não se pode considerar Dostoievski um autor clássico, porque há várias incoerências na sua maneira de escrever. Mas, ele conseguia atingir verdades muito profundas. Pela leitura das suas obras, vê-se como ele era genial; está aí reflectida a sua capacidade de dizer coisas sobre a nossa própria realidade. Eu considero-o o maior escritor russo. Os escritores da vida em família, dos pequenos pormenores atribuem essa honra a Tolstoi, que é mais clássico. Ele é realmente extraordinário, mas não atinge, como Dostoievski atingiu, verdades tão agudas, e de uma maneira tão viva. Dostoievski atinge-as quase por meio de uma anomalia, de um estado doentio. (37,38)

She also feels an affinity with Dostoevski’s psychologism because: 

Dostoievski é um tipo humano marcado por uma determinada carga hereditária, que se reflecte numa hipersensibilidade. Isso traduz-se na rapidez de impressões que nos dá, numa razão lúcida e racional fora do comum. É isso que mais admiro nele. Dostoievski tem quase uma intuição feminina. Se o relesse, ele não produziria já o mesmo efeito em mim; estaria quebrado o estado de pureza para o ler. Eu não reagiria da mesma forma a muitas dessas páginas que ainda guardo na memória. Teria talvez a tentação de interpretar algumas passagens da sua obra à luz de uma análise psicológica do autor, até porque estudei psicologia e me interesso por planos de psiquiatria. Embora Dostoievski não exerça hoje o mesmo fascínio de outrora, considero-o um autor importantíssimo, de leitura incontornável. (40)

This affinity includes a special affectivity with Russian literature:

Estou ligada à literatura russa por laços de afectividade. É uma literatura emotiva, que não sinto vontade de reler, porque não a considero exactamente uma literatura de ideias. Tolstoi, por exemplo, era um homem cheio de problemas emocionais e passionais, e teve uma vida intensa até morrer. O mesmo 40 aconteceu com Dostoievski. São personalidades profundamente emotivas, movidas por paixões. O leitor português é muito sensível a esse tipo de literatura, por isso a acolheu tão bem. (39, 40)

Augusto Abelaira 7/25/1979

Augusto Abelaira’s comments on Dostoevski need little introduction and can be appreciated by themselves:

“O Grande Inquisidor” marcou-me muito, porque nessa altura eu começava a preocupar-me com questões políticas. E aqui há que evocar elementos da minha história de vida. Eu senti no seio familiar os ecos da guerra de Espanha, nomeadamente através do meu pai. Vivíamos sob a tutela do regime fascista e eu cheguei a ter familiares presos. Além disso, na juventude, assisti a uma revolução contra o regime, quando estava nos Açores. Tive, portanto, desde cedo, uma iniciação anti-fascista. Ora, a obra de Dostoievski, que punha Jesus em face de Torquemada, ou, pelo menos, de um grande inquisidor que eu identificava com Salazar ou com a PVDE, como se chamava nessa altura, não tinha apenas um alcance literário; tinha latente uma discussão religiosa e elementos que me pareciam promover a discussão política, entre o ditador, que seria o inquisidor, e Jesus, que seria, de uma certa forma, um revolucionário. O inquisidor criado por Dostoievski arremessava argumentos terríveis, que ainda hoje asfixiam e continuam a ser difíceis de rebater. Assim, nesse texto afloram-se aspectos que nos preocupam e têm um alcance político e social. A obra causou-me uma extraordinária impressão e estou convencido de que é daqueles livros que marcaram espiritualmente o meu percurso para todo o sempre. Posso dizer que esse excerto d’Os Irmãos Karamazov foi muito mais importante na minha formação que Tolstoi ou Andreiev, porque foi através dele que estabeleci o primeiro e o mais impressionante contacto com Dostoievski. Ainda hoje, ao reler de vez em quando “O grande Inquisidor” ou Os Irmãos Karamazov, sinto o espanto de outrora. Naquela altura, eu não terei percebido que “O Grande Inquisidor” era um pequeno extracto de um romance, que viria a ler integralmente e que se tornaria, no meu ponto de vista, até aos dias de hoje, um dos três ou quatro maiores romances da literatura universal. ( 50)

Sim, Nietzsche conhecia Dostoievski, mas Dostoievski não conhecia o autor de Assim falava Zaratustra, ainda que vivessem os dois na mesma cidade. Lembro-me de num livro de Stefan Zweig se sublinhar que o facto de estarem no mesmo ponto geográfico não ter sido suficiente para se encontrarem. Supostamente, Nietzsche terá falado nele e teria  proferido a famosa frase: «Dostoievski foi o único homem que me ensinou alguma coisa em psicologia». Eu nunca encontrei esta frase entre os escritos do filósofo alemão; ela chegou-me sempre em segunda mão. Mas, verifica-se uma certa sedução pelo debate entre o ateísmo e o teísmo, e pelo diálogo niilista com Deus. Creio que foi essa vertente que mais me prendeu na altura. Reconheci em Dostoievski aquilo a que mais tarde se viria a chamar o absurdo, salvo as devidas diferenças. Na altura, suponho que encontrei em Dostoievski um certo sentido do absurdo, que veria traduzido, mais tarde, em termos camusianos. E lembro-me que uma das páginas que mais me impressionou a esse respeito terá sido, n’Os Posssessos, uma conversa entre o Kirilov, o indivíduo que se vai suicidar para demonstrar a Deus que Ele não existe, e o Chatov. Trata-se de uma conversa acerca da beleza das folhas e da felicidade que pode resultar da contemplação de uma folha. Penso que essa página, a par com os Irmãos Karamazov, seria uma das quatro ou cinco páginas mais impressionantes da história da literatura. (53,54)

On the question of affinities with Dostoevski’s work:

Como referi, registar-se-ão afinidades involuntárias. Por vezes, é possível encontrar em vários livros meus conversas a propósito de Deus que são uma aquisição dostoievskiana, até porque a minha educação foi de natureza ateística. Daí que alguns católicos encontrem um interesse pontual nas minhas obras. Faço comparecer personagens católicas em três ou quatro romances e estou convencido de que se não tivesse sido leitor de Dostoievski, desde muito cedo, nunca teria colocado o problema de Deus que me é trazido e reavivado pelo autor de Crime e Castigo… Mais tarde, licenciei-me em Filosofia e fui naturalmente encontrá-Lo em vários pensadores. Mas, suponho que é Dostoievski que me incute o desejo de conversar, de vez em quando, com Deus.(58)

 Eduardo Lourenço 6/12/2015

On the innovation of Russian literature:

Eu penso que, ao longo do século, quer dizer, adoptando uma perspectiva propriamente ocidental, cada um dos grandes autores, sendo totalmente diferente, cria um universo próprio. Os outros reproduzem ou reciclam de outra maneira. Portanto, houve muitos momentos em que a literatura ocidental mudou de paradigma ou alterou os seus paradigmas. Este não é caso único. A verdade é que a descoberta do romance russo representou um grande acontecimento na história espiritual e literária do Ocidente, porque estávamos habituados a uma literatura auto-explicativa, mais clara e transparente, dos motivos que guiam a condição humana. Esta perspectiva subterrânea era uma novidade. (67)

On Os Irmãos Karamazov

..se trata de uma saga infernal sobre a condição humana da família, ou seja, essa coisa natural, com uma solução tão difícil, consegue ser, ao mesmo tempo, o centro da tragédia. É verdade que os gregos tinham chegado primeiro a essa conclusão de que os deuses nos manipulavam a nós, e não o contrário, de maneira que essa tragédia faz parte das coisas mais ancestrais da literatura europeia. Mas, ali há um tom novo. Antes da reforma, e do seu lado optimista em particular, toda a leitura positiva do destino humano se baseava em algo que não era discutível. Quer num plano terreno, quer num outro plano havia uma solução e um sentido para as coisas. E tudo isso oscila quando a nossa literatura, já de origem protestante, luterana, começa a tratar os conflitos humanos e sobretudo as questões do poder entre os homens. Este é, no fundo, o único tema tratado por Shakespeare, no Hamlet – a dúvida, o destino… Lança-se a dúvida não só sobre os destinos em geral, mas sobre o nosso próprio destino, sobre o sentido e a ausência de sentido desse destino. Na verdade, está tudo em Shakespeare, na história, que deixou de ter sentido, contada por um louco.  Esse sentido propriamente humano vai ser recuperado através do processo de laicização de uma parte da cultura europeia, através de um país chamado França, para o qual o triunfo das Luzes é uma resposta a essa depressão que a cultura tradicional sofre quando se descobre fragilizada e já não certa de que Deus garanta a nossa salvação.( 69,70)

On how Dostoevski’s novels are built on descriptions of life’s everyday occurrences: 

Dostoevski funda na descrição as experiências dos fait-divers. O que é paradoxal é que a literatura de Dostoievski se baseia em fait- -divers. Mas, todo o fait-divers por ele tratado, mesmo o mais baixo, o mais ordinário, se transforma numa aventura metafísica e religiosa, num problema de salvação, de vida ou de morte. Perde-se ou ganha-se. É a primeira vez que irrompe a questão do assassinato. Já existia em Edgar Allan Poe e em toda essa tradição literária do crime, mas era uma tradição quase lúdica em função de um mistério que se resolvia pela astúcia e pela inteligência, pela perspicácia de quem apanhasse o criminoso. No Crime e Castigo é diferente: a personagem que mata a ve- lha sofre verdadeiramente uma tentação, que é a mais comum possível, mas que leva até ao fim, até se salvar através do pecado cometido. Isto passa-se com Dostoievski, mas não com Tolstoi. Talvez seja o facto de toda a gente se reconhecer naquelas personagens, nomeadamente nas d’Os Irmãos Karamazov, que o torna tão popular. Outro dos romances de Dostoievski de que gosto muito é O Idiota. Mas, O Idiota é uma reinvenção de um Cristo russo, tomado a sério, que se regenera pelo seu espírito de auto-sacrifício. Trata-se quase de um lado masoquista que existe apenas nessa literatura. Eu acho que a geração que mais se impregnou dessa atmosfera propriamente russa, desse problema da alma russa nos podia dar também, de outra maneira, a alma hispânica. Mas a alma hispânica está tão ofuscada por uma hierarquia, por uma instituição que gere um pouco os efeitos disso… O que caracteriza a literatura moderna é o facto de os seus sujeitos solitários terem de descobrir o caminho num mundo que é simultaneamente um labirinto e um enigma. Só Dostoievski e Shakespeare acedem a tal patamar, em função do génio e das situações de natureza política, fait-divers cometidos pelos reis. Essas são as personagens avant la lettre de Dostoievski, que matam, esfolam e regeneram, e que não existiam no Ocidente, porque a ética geral não lhes conferia dignidade. Eram diabólicas e infernais, e embora pudessem ser fascinantes, esse fascínio era liquidado pelo facto de serem personagens réprobas. Ainda antes de Nietzsche, Shakespeare abalançou-se para além do bem e do mal. Ora, isso não é característico da nossa literature. (72, 73)

Sophia de Mello Breyner 5/10/1979

On the comparison of Dostoevski with Tolstoi:

… são completamente diferentes. Uma vez escrevi um artigo em que dizia o seguinte: um bêbedo que lê Tolstoi sabe que é bêbedo e um bêbedo que lê Dostoievski julga que é um iluminado. Dostoievski enquadra-se num certo espírito de época do princípio do século e de uma certa linha intelectual que tenta romper as diferenças entre o bem e o mal. Tolstoi, pelo contrário, é um homem que tenta continuadamente alcançar a claridade, uma consciência das coisas, sem ultrapassar esse limite.

Vergílio Ferreira 5/23/1979

Vergílio Ferreira’s interview offers the most articulate and insightful analysis of the metaphysical aspect of Dostoevski’s fiction.  He argues that even though the social and psychological aspects of his work have historically attracted the most attention, Dostoevski, through his own admission, was consumed by the singular question of whether God does or does not exist: “Numa carta que ele escreveu a um interlocutor cujo nome me escapa agora dizia algo do género: ‘Para mim, o único problema que me assaltou ao longo da minha vida foi este: saber se Deus existe ou não.” (181)

O aspecto metafísico resume-se para mim em duas frases, uma do Karamazov e outra do Kirilov.  Karamazov diz: «Se não há Deus, tudo é permitido». E Kirilov diz: «Se não há Deus, eu sou Deus». Ora, no fundo o que mais importa a Dostoievski é a problemática da existência ou não existência de Deus. Não é apenas pela afirmação estrita se Deus existe ou não. É tudo o que vem atrás disso. Não nos esqueçamos de que esta problemática de Dostoievski vem juntar-se depois a uma problemática idêntica levantada por Nietzsche e que é fundamental no nosso tempo, porque se prende com a ordenação geral da vida. Tal como declarava Jaspers, e Malraux repetiu, estamos no início da primeira civilização agnóstica desde que o homem é homem. A problemática da existência ou não existência de Deus pressupõe a fundamentação de toda uma ética e de uma moral. Os problemas que se geram em torno desta questão e nela radicam têm que ver com a significação da vida e da sua justificação, mas também com a justificação da morte e com o absurdo. De modo que isso para mim é o mais importante. Claro que ele aflora outros problemas, nomeadamente na história do “Grande Inquisidor”, que não tem na raiz o aspecto metafísico. Nós estamos justamente no fim de um percurso bimilenário e sentimos o reflexo dessa dissolução de várias formas, desde logo nas relações familiares pais-filhos e na educação. Está patente nos problemas da filosofia, também ela em desagregação, e da arte, nas artes plásticas, na literatura, na música… Há de facto uma reorganização total da vida humana e esta reorganização assenta numa fundamentação religiosa, divina. (182,183)

Vergílio Ferreira acknowledges that Dostoevski’s quest had such a powerful impact on him that it became fundamental to his work as he sought to define the meaning of man’s existence and the implications of living in a world without God:

Sim, esse problema é fundamental na minha obra, embora ultimamente, na sequência disso mesmo, eu tenha colocado outras questões. O problema quanto a mim não se resolve, isto é, as grandes questões para a vida não se resolvem com receitas. Eu costumo distinguir dois tipos de questionação: a pergunta e a interrogação. São dois tipos muito diferentes. A pergunta tem uma resposta; a interrogação não a tem ou tem- na, mas não por deliberação, não porque nós a possamos dar. Dou-lhe um exemplo muito simples. Pergunto o que é uma pedra. Pois bem. E o geólogo responde-me, definindo o que é uma pedra. Esta pergunta tem uma resposta, de tal modo que é como se a pedra já lá estivesse. Quando eu digo o que é uma pedra, eu já a lá pus. Limitei o campo da pergunta. Agora é só dizer o que lá está. Mas, se eu disser assim: por que é que há pedras em vez de não haver nada? Isto é uma interrogação. Não tem resposta, porque a pergunta desenvolve-se num sentido horizontal, é visível e limitada. A interrogação desenvolve-se no sentido vertical e vai ao abismo, ao insondável. Ora, a interrogação tem uma resposta? Sim, mas não a podemos dar como a damos à pergunta. A resposta à interrogação é feita através do mito, da revelação de uma coisa que nós não sabemos porque é, mas que, de certo modo, nos orienta a vida. A vida é cheia de mitos e um dos aspectos fundamentais do nosso tempo é que justamente não há mitos. Os mitos esgotaram-se. Há muito sucedâneo de mito. Claro que posso levantar como mito ser adepto de um clube de futebol e levar a minha vida toda em torno dessa opção. Mas isso não é um mito. Eu falo de um mito que ordena uma vida. Não é por acaso que o comunismo tem tanta força, porque é um sucedâneo do mito ordenador. Que resposta é que eu dou ao problema levantado por Dostoievski? Nenhuma, a não ser uma resposta que se me levanta no limite, num horizonte muito distante, que eu não sei como se vai resolver nem se pode aparecer como verdade orientadora. Não vejo outra possibilidade senão que o homem aceite ou venha aceitar a sua condição de ser mortal, que tem de enfrentar uma vida que não tem significação. Todavia, pode ser que consiga absorver isto tudo em harmonia e plenitude, em tranquilidade. Isto é quase uma quadratura do círculo. Quando pensamos no que é o homem as dificuldades são grandes. Já é extraordinário pensar o que é o mundo, e haver mundo, estrelas, pedras, cães… Chegando à interrogação por meio da qual se tenta justificar a existência dos homens verifica-se que a distância é vertiginosa. Ora, pensarmos que a vida não tem significação nenhuma e que está votada a uma morte integral causa grande perturbação. Todo o problema do homem reside na reabsorção de tudo isso – num equilíbrio, numa aceitação, numa plenitude tal como aquela que se tinha quando a vida estava justificada face a uma transcendência. (183,184, 185)