Texto de Dalva de Souza Lobo e Patrício Alberto Pérez Pinto. Revisão de Mariana Antão.
“Não existe nada mais sedutor para o homem que sua liberdade de consciência, mas tampouco existe nada mais angustiante” (DOSTOIÉVSKI)
Resumo
Ivan Karamazov, um dos personagens principais do romance Irmãos Karamazov de Fiodor Dostoiévski, é a peça chave de dois dos momentos mais marcantes da obra: a afirmação da inexistência de Deus, cuja consequência é o estado da barbárie, fruto do egoísmo humano radicalizado, e o célebre poema d’O Grande Inquisidor, recitado ao seu irmão Aliócha. Ambos os momentos são fundamentais para entender a natureza ateia e niilista do personagem; porém, ao mesmo tempo, ambas as colocações se mostram dissonantes. O presente trabalho busca mapear o poema d’O Grande Inquisidor à procura de contradições presentes no pensamento de Ivan, partindo do marco teórico da Estética da Recepção, a partir de Jauss e Iser e também do tratamento filosófico dado por Nietzsche ao niilismo, assumindo a intencionalidade que o texto ficcional carrega em função dos sentidos construídos pelo leitor. O procedimento de análise adotado será o de elencar fragmentos do poema procurando estabelecer um diálogo entre os conceitos base do artigo. Desse modo, espera-se contribuir com outras possibilidades de interpretação sobre esta obra Dostoievskiana, considerando os elementos relacionados à Estética da Recepção e ao niilismo nietzschiano.
Palavras-chave: Estética da Recepção, Niilismo, O Grande Inquisidor
Introdução
Os Irmãos Karamazov, último romance escrito por Dostoiévski, principalmente focado nos discursos de Ivan, é uma prova de que as obras literárias não são objetos sólidos e invariáveis, mas, sim, possibilitadoras de múltiplas interpretações que propiciam debates, os quais ampliaram ainda mais os horizontes de sentido (KHÁLIZEV, 2008). Do mesmo modo, tornam explícito o papel do leitor no preenchimento de espaços vazios deixados pelo autor na narrativa ficcional, dada a grande diversidade de interpretações de um romance (COSTA, 2012).
Ora, tivemos, de um lado, adeptos da interpretação de Ivan como o herói da história, cujo pensamento superou o próprio autor, tendo em vista as contingências históricas, ideológicas e sociais envolvidas no momento da recepção da obra de Dostoiévski, além da profundidade da dúvida característica de seus poemas e monólogos, elevando o personagem à altura de um mito. De outro lado, uma leitura menos passional d’Os Irmãos Karamázov, por parte de posteriores intérpretes, realocou a posição de Ivan no romance em detrimento do enunciado herói pelo próprio autor no início da obra (KHÁLIZEV, 2008).
De qualquer modo, o personagem dostoievksiano figura para além da ficção, visto que se caracteriza pela autonomia ao expressar valores correspondentes à sua época, e, consequentemente, como afirmado por Meletínski, não permite que sejamos indiferentes diante dele.
Na perspectiva de Boris Schnaiderman, a obra de Dostoiévski nos espreita, dado que:
Realmente, o que surpreende em sua vasta obra é a intensidade vital que dela ressuma, a par dos grandes temas da existência que são assim tratados com toda intensidade da paixão e do arrebatamento. Realmente, não dá para falar de Dostoiévski com o distanciamento e serenidade usuais nos estudos literários. (SCHNAIDERMAN, 2008, p. 22).
Partindo de tais considerações, nos centraremos no niilismo ateu do personagem Ivan e também, nessas mesmas características, no pensamento de Nietzsche, isto é, sua definição e modo de superação, traçando um percurso que consistirá na formulação teórica dos autores em questão, sua relação e, ancorados na estética da recepção, de Iser e Jauss, teorizaremos sobre a construção de sentidos no poema “O Grande Inquisidor”, objeto da longa discussão acerca de fé, religião e razão.
- Contextualizando a cena
O fim do século XIX inspirou quem se dedicava à vida intelectual, dados os grandes acontecimentos no campo das artes, da literatura e da filosofia. As transformações intelectuais desse período tiveram forte impacto sobre a sociedade, sendo esta modelada pelos grandes acontecimentos históricos.
Assim sendo, entendemos que a literatura abordando temas relevantes na sociedade, elabora críticas ao modelo vigente, possibilitando compreender os problemas que o acometem a partir da linguagem literária.
É correto pensar que o cenário aqui exposto foi frutífero para os intelectuais da época, tanto na compreensão daquilo que deu origem ao lugar histórico em que se encontravam, ou seja, os movimentos dos tempos que transformaram a sociedade, como nos horizontes que se desenhavam para o futuro, traçando projetos filosóficos para a humanidade.
O deslocamento do homem ao eixo fundamental na construção dos valores morais onde anteriormente se encontrava Deus, apoiando-se não mais na fé, senão na pura razão (sendo este processo desencadeado pelo Iluminismo), aponta para um “otimismo” da autonomia humana, pautado nos consideráveis avanços científicos, deixando a sensação de que a perfectibilidade humana é apenas limitada pela expansão da sua razão.
A esse respeito, Luiz Felipe Pondé afirma que:
Essa aposta renascentista ganhará força e atingirá sua maturidade ontológica, cultural e política nos movimentos de raiz iluminista, utilitarista e seculares já nos séculos seguintes ao XVIII francês e inglês, e vemos ecos desse debate em Dostoiévski. A perfectibilidade (contra a pecabilidade) pressupõe a possibilidade de aperfeiçoamento infinito do homem (PONDÉ, 2008, p. 202). (aspas do autor)
Podemos destacar dois intelectuais: Friedrich Nietzsche e Fiódor Dostoiévski. O primeiro, filósofo alemão e o segundo, romancista e intelectual russo. Autores contemporâneos, comprovadamente temos em Nietzsche um leitor assíduo de Dostoiévski, de modo que encontramos resquícios da influência do pensador russo no seu pensamento.
A relação intelectual que Nietzsche desenvolve com Dostoiévski é patente em cartas e na sua obra, se relacionando de maneira complementar, ultrapassando a admiração e interesse pelo teor literário e psicológico que o filósofo encontra na obra do autor russo, como apontado em sua carta ao músico e amigo, Heinrich Köselitz, ressaltando a força psicológica, doçura e profundidade capazes de adentrar o subterrâneo humano. (PASCHOAL, 2010).
Apesar dessa admiração pelo aguçado olhar com que o romancista russo despe os homens, Nietzsche reconhece em Dostoiévski um decadente, visto que esse pensamento se engaja com uma determinada visão de mundo da qual trataremos posteriormente.
Assim, para entender melhor o pensamento desses autores e nos debruçarmos em seus postulados, elaborando de modo adequado um paralelo entre eles, apresentaremos um breve panorama da obra Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e alguns elementos da obra de Nietzsche, com principal ênfase no niilismo, dada a relação que ambos tiveram com esse mal que, segundo os pensadores, afligia a cultura europeia, sobretudo a Rússia.
2. O dissonante Ivan Karamazov
Dostoiévski elabora obras de grande beleza e profundidade que se caracterizam pela crítica ao utilitarismo liberal e ao socialismo ateu, movimentos que são sintomas manifestos do niilismo ao qual se atribui um significado diferente daquele constante da obra Pais e Filhos, de Turgueniev, na qual o personagem Bazarov, se apresenta como um niilista no sentido anárquico, revelando-se contra a ordem vigente e não obedecendo a autoridade alguma. O niilismo do autor russo é admirado por Nietzsche, gerando desdobramentos em seu pensamento, que nos anos 1860, influenciou de forma marcante toda uma geração na Rússia.
com o surgimento dos “raznochintsy”, filhos de artesãos, padres, baixa oficialidade, emigrados do campo, que constituiriam os germes de uma classe média, que quando entra em cena o faz com grande estardalhaço. Serão eles os herdeiros dos Bezarovs de Turguêniev, mas dispostos a agir sob a realidade político-social, ao estilo Bakunin (JUNIOR, 2018, S/N)
O autor de Crime e Castigo desenvolve uma gama de personagens que denunciam os problemas enfrentados, então, pela sociedade russa. Dentre eles, destacamos Ivan Karamázov, da obra Os Irmãos Karamazov, personagem ateu e liberal, e em cujo pensamento encontramos o utilitarismo radical, como no debate travado na cela do stárietz Zossima, e o ateísmo, o questionamento à figura de Deus e Seus desígnios presente na conversa com seu irmão Aliócha, quando recitou o célebre poema d’O Grande Inquisidor.
A denúncia do niilismo russo é patente no romance, não apenas na psicologia e moral dos personagens que compõem a história, como também na estrutura do pano de fundo, como indicado por Karen Stepânian, ao mostrar a ambivalência do mundo terreno, corrupto, afastado do mundo divino, pois naquele “[…] reinam a inveja, a maldade, o desprezo, a luxúria e a mentira” (STEPÂNIAN, 2008, p. 176).
A figura de Ivan Karamazov encarna o espírito ateu e liberal do seu tempo como resultado do processo emancipatório do homem, excluindo da equação a participação de Deus. Colocações de Ivan como O Grande Inquisidor e o célebre debate, no qual explicita a posição niilista do personagem, postulam que
[…] para cada indivíduo particular […] que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até o crime não só deve ser permitido ao homem, mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável […]. (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 110)
Filia-se Ivan tanto ao pensamento dos discursos dos líderes da “nova consciência religiosa”, como aos partidários de Nietzsche e da democracia revolucionária nacional, dado o pensamento e a composição psicológica do personagem dostoievskiano (KHÁLIZEV, 2008, p. 254). Em ambos os momentos, Ivan coloca o homem como Deus, como genitor dos valores morais (ou imorais) que se centram apenas no valor utilitarista de prover a maior quantidade de prazer a si próprio, independentemente dos meios necessários para tal finalidade.
Assim, o homem, enquanto ser desprovido de uma alma imortal, torna-se seu próprio Deus e demônio à sua imagem e semelhança (STEPÂNIAN, 2008, p.177). Nesse caso, tudo pode ser permitido e justificável, já que deriva da decomposição do mundo no qual nada pode ser ajuizado.
Do mesmo modo, temos em Nietzsche um profundo crítico do mesmo processo promovido pela Modernidade. A crítica do filósofo alemão, contudo, devido ao seu “método”, se diferencia da de Dostoiévski; enquanto o primeiro se debruça sobre o tema de modo social, encarnando um determinado grupo que corresponde e se identifica com uma determinada ideia ou valor moral, o segundo se expressa através de personagens pontuais para tratar dos temas que pretende abordar.
A apreciação da questão moral nos autores também pode ser entendida da seguinte forma:
A fundação do juízo moral passa a ser a função da quantidade e da qualidade, ambas arbitrárias, do tecido moral histórico – trata-se da natureza “social” do “sentido moral” como constrangimento, segundo Durkheim, Maquiavel e Nietzsche, guardando-se algumas diferenças pontuais entre os autores. O Mal e o Bem nada mais são do que contingências históricas configuradas de modo específico num dado contexto. Relativismo moral. (PONDÉ, 2008, p. 198).
A questão moral em Nietzsche é social e histórica, já em Dostoiévski há um eixo metafísico plenamente definido.
Os Irmãos Karamazov plasma, em seus doze livros, os conflitos contidos nas relações familiares e humanas que perpassam a dimensão individual e universal contidas nos dilemas humanos. A liberdade da escolha traz consigo o fardo das consequências sobre as decisões tomadas. O autor propõe, aqui, uma natureza humana carregada de sofrimento diante desse livre arbítrio.
Entender tal natureza em Dostoiévski é apreender as contradições entre dúvida e fé, como ocorre na revolta de Aliócha após o funeral do stárietz Zossima, quando, “de coração exacerbado” exige “justiça”, zanga-se com o seu Deus e esquece-se do seu irmão Dmitri” (STEPANIAN, 2008, p.176-177). (aspas e parênteses do autor).
Crença e descrença se apresentam nos monólogos de Ivan, quando
[…] relaciona para Aliócha fatos correntes, retirados de jornais, de maldades contra crianças afirmando que ele ainda poderia acreditar na existência de Deus, mas jamais aceitaria o mundo por ele criado. (SCHNAIDERMAN, 2008, p.22).
Essas inquietações são também as de Dostoiévski, que ao criar o personagem Alieksiêi Karamazov, sobre o qual gravitam os sentimentos acima destacados, pergunta: “Por que eu, leitor, devo perder tempo estudando episódios de sua vida?”. (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 13).
Esse questionamento suscita outros e cabe ao leitor atribuir-lhes sentido, significando-os e ressignificando-os, de modo a fruir esteticamente da obra que expressa a própria existência.
3. A percepção estética em O Grande Inquisidor
A obra de Dostoievski convida o leitor a observar as contradições presentes na sociedade. Essa leitura é privilegiada pela Estética da Recepção, desenvolvida por Jauss e Iser, dois expoentes da crítica literária alemã, que em meados da década de 1960, compreenderam a importância do sujeito da experiência leitora e social.
Para Iser, “o papel do leitor representa, sobretudo, uma intenção que apenas se realiza através dos atos estimulados no receptor. Assim entendidos, a estrutura do texto e o papel do leitor estão intimamente ligados”. (ISER, 1996, p.75). Suas palavras encontram eco nas de Jauss, para quem “a obra suscita expectativas, desperta lembranças e conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão”. (JAUSS, 1994, p. 28).
Para ambos os autores alemães, a apreciação e atribuição de sentidos sobre a obra se realiza para além da intenção do autor, ou seja, o texto é vivificado pelo leitor e os efeitos de sentido provocados pelo texto estão diretamente ligados aos critérios de recepção estabelecidos pelo leitor competente, o que significa, também, uma dinâmica que ultrapassa o contexto imediato de produção, permitindo leituras em diferentes contextos históricos nos quais a recepção está circunscrita.
Isto é de extrema relevância considerando o fato de que “Os irmãos Karamazov” foi escrito em -1879, vinte anos após a anistia que o marcou e do qual várias personagens são tributárias. Podemos inferir, desse modo, que a obra do autor, é atemporal na medida em que trata da dimensão humana em sua complexidade, apontando fragilidades e potencialidades, o que converge com a perspectiva da Estética da Recepção, ao privilegiar a atribuição de sentidos por parte do leitor, independentemente do contexto imediato de produção. Disso resulta a leitura sempre atualizante de “Os irmãos Karamazov”.
É importante dizer que a interpretação do texto compreendida pela Estética da Recepção é tributária da Fenomenologia de Husserl, que propunha compreender a realidade fenomênica dos objetos a partir da consciência sobre eles, o que significava repensar a separação entre sujeito e objeto, consciência e mundo. Nesse sentido, a filosofia de Husserl é compreendida também pelo filósofo e crítico literário Terry Eagleton, segundo o qual “O mundo é aquilo que postulo ou pretendo postular: deve ser aprendido em relação a mim, como uma correlação da minha consciência” (EAGLETON apud ZAPPONE, 2003, p.154).
Tanto a teoria literária quanto a filosofia são cruciais para a interpretação dos textos literários, e especificamente no caso da fenomenologia husserliana, o diálogo com a Estética da Recepção foi crucial para a pensar o leitor competente, isto é, um leitor não ingênuo, capaz de compreender a dimensão histórica e social de uma obra, sem, contudo, ficar preso a ela, o que levaria ao anacronismo. É nessa perspectiva de leitura que nos interessa mapear possíveis contradições quanto ao niilismo nietzschiano no poema “O Grande inquisidor”, constante do livro V: “Pró e Contra”, do romance dostoievskiano.
4. Da Revolta ao Grande Inquisidor:
O poema “O Grande Inquisidor” se revela como um dos mais inquietantes tratados sobre fé, liberdade e ateísmo, sobretudo em função do diálogo entre Ivan Karamazov, o ateu, e seu irmão, Aliócha, um fervoroso cristão. Nesse sentido, retomando os pressupostos da Estética da recepção, buscamos apontar possíveis contradições no discurso de Ivan durante a leitura do poema autoral, por ele mesmo considerado “uma coisa tola” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p.341), mas que só confia ao irmão Aliócha, seu primeiro e provavelmente único ouvinte.
A leitura sobre a leitura de Ivan nos interessa, pois o olhar adotado por este enquanto leitor do poema autoral e leitor do outro, possibilita à nossa experiência leitora atribuir sentidos sobre a maneira como o personagem compreende a fé e a descrença no ser humano, como deixa entrever ao afirmar ironicamente para Aliócha que Deus e diabo são filhos do homem e não o oposto, “bom Deus esse teu se o homem o criou a imagem e semelhança” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 330).
Acaloradas discussões precedem a leitura do poema escrito por Ivan Karamazov. No capítulo IV, “A Revolta”, do Livro V: “Pró e contra”, por exemplo, Ivan confessa a Aliócha não entender como é possível amar ao próximo, pontuando sua desconfiança, como ateu convicto, sobre a figura cristã, já que “o amor de Cristo pelos homens é, em seu gênero, um milagre impossível na Terra” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p.327). Além disso, para Ivan não faz o menor sentido que a injustiça praticada pelos pais condene os filhos, ou seja, os descendentes de Adão e Eva.
Não obstante, para Ivan se Deus não existe, o diabo também não, e nesse caso, ambos seriam criações humanas, como ele assevera dizendo que “acho que se o diabo não existe, e, portanto, o homem, o criou, então o criou à sua imagem e semelhança. Neste caso, exatamente como Deus” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p.330). O personagem deixa claro sua descrença na humanidade que teria criado duas entidades cruéis para exercer o poder uns sobre os outros, dizendo que “Não é Deus que não aceito, Aliócha” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 340).
Ao ler o poema O Grande Inquisidor, argumentando sobre a inexistência de Deus, o jovem e cético intelectual deixa-se flagrar como um conhecedor e, quiçá, admirador da entidade divina, ao mesmo tempo em que repudia as ações humanas, denotando extrema sensibilidade ao dizer que […] Aceito Deus, não só de bom grado como, além disso, aceito também sua sabedoria e seus fins, que nos são totalmente desconhecidos […] Não é Deus que não aceito, entende isso, é o mundo criado por ele, o mundo de Deus que não aceita e não posso concordar em aceitar […] (DOSTOIÉVSKI, 2012, p.325).
Ao longo da exortação acerca de fé e liberdade, Ivan declara que o homem busca conforto no que é irrefutável e de valor universal, que faça convergir todos os pensamentos, daí refutar o mundo criado por Deus. Para o personagem, “o homem procura não tanto a Deus, quanto os milagres” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 354), corroborando sua angústia e descrença na humanidade.
Aos olhos de Aliócha, no entanto, se o poema pretende ser uma ofensa a Deus, ocorre justamente o contrário, já que a censura de Ivan recai mesmo sobre os homens, como se nota no fragmento abaixo
És tu? Tu? Não responda, cala-te. Por que vieste nos atrapalhar? Sabes o que vai acontecer amanhã? Amanhã mesmo eu te julgo e te queimo na fogueira como o mais perverso dos hereges, e aquele mesmo povo que hoje te beija os pés, amanhã, ao meu primeiro sinal, se precipitará a trazer carvão para tua fogueira, sabias? (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 347).
A leitura de Ivan sobre a fé cristã parte de uma perspectiva social, da leitura sobre os ensinamentos de Deus, cujo filho será sacrificado, posto atrapalhar a ordem social. Ao que parece, não é o Deus que incomoda o personagem supostamente ateu, mas a atitude humana, esta, sim, motivo de seu discurso agônico e descrente, algo que Aliócha percebe nitidamente ao dizer ao irmão “Teu poema é um elogio a Jesus, e não uma injúria … como o querias” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 362).
O niilismo do pensamento de Ivan é apresentado por Dostoiévski no poema como a negação do estado natural do homem: o livre arbítrio. Ora, se o niilismo é a negação de todo sentido da vida e da realização da natureza mesma do mundo, na obra dostoievskiana aparece como a fratura existente entre o legado deixado por Jesus no seu sacrifício na cruz e o discurso sofista do inquisidor, cujo argumento defende que o fardo de tal herança é pesado demais para os homens, que rotineiramente tendem para o mal.
Considerações finais.
A partir das considerações acima, retomamos o ponto sobre o qual nos debruçamos, isto é, mapear possíveis contradições no poema O Grande Inquisidor; sem darmos a reflexão por encerrada, tendo em vista seu caráter ensaístico, tecemos algumas considerações com base na Estética da Recepção e no niilismo que nortearam a breve incursão. As leituras aqui empreendidas apontaram para o fato de que Ivan Karamazov, ao discorrer sobre a não existência de Deus, acaba por confirmar sua descrença na humanidade, motivo pelo qual acredita que Deus, assim como o diabo, são criações do homem para que possa ser livre, desde que aprisionado a dogmas por ele criados. Nessa perspectiva, se há um Deus ele falhou ao criar a mais fraca e vil criatura a quem nada poderia ser solicitado ou exigido. Desse modo, é plausível dizer que a leitura de Ivan sobre a leitura feita pelos homens acerca de Deus e da fé cristã se traduz na descrença no homem, e, por consequência, na sociedade.
REFERÊNCIAS
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