A vida num aquário, Fernando Oliveira

Texto de Fernando Oliveira.

O silêncio assolava o meu quarto alvo e deslavado. Estranhei a ausência de som a uma hora daquelas, mas aproveitei o pouco tempo de sossego a que tive direito. Foi um silêncio de pouca dura. Principiou-se uma discussão acesa no corredor e os gritos invadiram quarto adentro. Saí para ver o que se passava. Henrique brigava com outro residente cujo nome eu desconhecia.

“És um grande filho da puta! É isso que tu és!”, gritava Henrique, de braços estendidos ao comprido e punhos cerrados.

O outro não respondia verbalmente, apenas  mimicava gestos semelhantes aos de Henrique – braços estendidos, faces rubras e punhos cerrados. Após reparar na postura do seu adversário, Henrique aproximou-se dele e ambos empurraram-se. Depois, Henrique levantou os braços em posição de combate e as suas pernas começaram-se a mexer efusivamente, dando pequenos saltos e pequenos passos. O outro imitou Henrique. À volta de ambos formava-se um círculo de pessoas que incitavam à violência, gritando ora por Henrique, ora pelo outro gajo sem nome. 

“Vai-te a ele, Henrique!”, bradavam uns quantos.

“Vai-te a ele, Qualquer Coisa!”, bradavam outros tantos.

Henrique lançou-se ao Qualquer Coisa, espetando-lhe um murro no maxilar. Ouviu-se um estrondo acutilante e o chão encheu-se de estilhaços. O círculo de pessoas dispersou-se, a mão de Henrique esvaía-se em sangue, o seu adversário havia desaparecido magicamente e tudo o que restava dele eram bocados de vidro partido espalhados heterogeneamente pelo soalho de madeira envernizada e reluzente. As oito pessoas que cercavam Henrique fugiram todas para o pátio. Eu segui-as e deixei-o sozinho no corredor, agarrado à mão ensanguentada. 

No pátio, só não estava o enfermo que eu deixara abandonado dentro do edifício comprido, de um andar, com longas janelas separadas por pequenos bocados de parede amarela, pálida e deslavada. Esse era um dos edifícios daquele estabelecimento. O edifício paralelo a este era uma fotocópia do primeiro, e separava-os um pátio de cimento,  com um extenso tapete de relva ao meio, ornamentado com belas flores azuis, lilases, vermelhas e amarelas, circundado por pequenos arcos cinzentos, de metal,  e com um viril dragoeiro no meio. Havia ainda outro edifício, mais pequeno que os outros dois, onde todos se juntavam para comer. Era também de um amarelo deslavado e das pontas saíam dois corredores de vidro que se uniam a cada um dos outros dois edifícios, desenhando um geométrico U. Para terminar, havia uma vedação alta com arame farpado no topo, que protegia todo o estabelecimento. 

Sentei-me num dos vários bancos de madeira que se espalhavam por todo o pátio e pus-me a ler um livro. Os outros dezoito residentes entretinham-se das mais variadas formas: havia os que se entretinham a fazer desporto, jogavam basquetebol ou futebol; havia os que ficavam de pé, sempre no mesmo sítio, apenas a olhar para baixo; e ainda havia os que, assim como eu, se sentavam nos bancos a ler ou apenas a olhar. Do banco onde estava sentado, pude reparar que Henrique estava sentado na sua cama, já com a mão consertada. Cada quarto tinha duas portas, uma dava para o corredor, a outra dava para o pátio. Ele abriu a porta que dava para o pátio e deixou-se ficar no umbral, a observar. Talvez procurasse o agressor que lhe desfizera a mão. É claro que não o encontrou, pois havia desaparecido no momento do embate. 

Cada um dos residentes encontrava-se a fazer alguma coisa, mesmo que essa coisa fosse não fazer nada. O mais curioso é que todos eles, excetuando eu e o Henrique, enquanto faziam o que faziam, berravam umas tretas sem jeito nenhum. Acho que, naquele exato momento, berravam sobre o estado do tempo, cada um emitindo o mais alto possível a sua opinião quanto a esse assunto. Uns bradavam que estava um dia soalheiro, com UVsmuito intensos e sem qualquer aragem que refrescasse aquele dia tórrido. Outros, objetavam que não estava assim tanto calor. E ainda havia os malucos que diziam que o céu estava encoberto e que a chuva havia de chegar. O que eu posso dizer é que, de facto, era um dia cálido, o sol queimava, mas uma vez ou outra surgia uma brisa que refrescava-me a cara. Deixei-me a ler durante algumas horas, nas quais Henrique deixou-se estar no umbral e todos os outros continuaram a elevar cada vez mais o tom de voz para que pudessem ser ouvidos. Aquela merda enchia-me de cólera e o meu corpo fervilhava e tinha de fazer um grande esforço para me concentrar na leitura.

Vi Henrique a dirigir-se na minha direção. Caminhava serena e lentamente, transmitindo uma paz relaxante. Chegou-se ao pé de mim e sentou-se ao meu lado. Ao mesmo tempo, juntavam-se grupos de pessoas no meio do pátio. Foram formados três grupos diferentes, cada um unia as pessoas que tinham a mesma opinião em relação ao estado do tempo. Num movimento único e autómato, os grupos levantavam os braços por cima dos ombros, e, em uníssono, faziam ouvir as suas vozes e o pátio era engolido por um som ribombante e os meus ouvidos sangravam com aquela treta toda. Observei com desprezo aqueles babuínos vestidos com macacões cinzentos esbracejando e grunhindo. Percebi que Henrique era consumido pela raiva à medida que o tempo passava e aquela chinfrineira sem terminar.  Sendo ele um tipo agressivo, adivinhei que não tardaria a atirar-se para cima deles. O seu torso comprido e corpulento contorcia-se e as veias salientes nos seus braços feitos de cal pareciam prestes a explodir. A chama acesa que ele tinha dentro de si derretia a sua pele de cera e refletia-se nos seus olhos abandonados, da cor do mar, virados para os macacos, mas absortos, viajando por outras terras que não aquela. A perna esquerda tremia constantemente, para cima para baixo, para cima para baixo, para cima para baixo, tac tac tac tac tac tac tac. De repente, todo o seu corpo estremeceu, os seus olhos regressaram da viagem, a perna parou, as veias ficaram ainda mais salientes, a cara enrubesceu e, numa ação decidida, levantou-se e açodou-se em direção à estação de meteorologia do nosso pátio. Assim que lá chegou, Henrique espetou  um pêro na primeira pessoa que lhe apareceu à frente. A pessoa voou e foi aterrar uns metros à frente. Os loucos dos funcionários da estação caíram num silêncio e focaram as atenções no homem que interrompeu aquela querela, que, de punhos cerrados, um deles envolto em ligadura, se preparava para aviar mais uns quantos chanfrados. Parecia um forcado pronto para levar com o touro. Os dezassete touros que ele havia irritado olhavam-no intensamente, estarrecidos e enfurecidos, e as suas patas raspavam no cimento. Instalou-se um silêncio vertiginoso que antecipava a avalanche que estava para vir. Os trinta e quatro olhos vermelhos comiam-no vivo, e os de Henrique passeavam por todos eles. Uma mulher jovem e voluptuosa lançou-se a ele, de chifres bem afiados. Ele preparou-se para a receber, e, quando ela estava quase em cima dele, o seu corpo robusto dançou elegantemente para o lado direito e a mulher passou-lhe ao lado. Os outros touros seguiram a deixa da primeira e apontaram os chifres ao forcado, que num slalom virtuoso e estonteante se desviou daquelas criaturas enraivecidas. Ele deu meia volta e lá estavam os dezoito touros, fumegando do nariz, prontos para mais uma ronda. Nessa ronda as coisas não correram tão bem. Os touros arrancaram em perfeita sincronia e destruíram o pobre forcado. 

Tinha chegado a hora de jantar. Os touros trotearam em direção ao refeitório. Eu segui-os em passo lento, passando pelo corpo de Henrique que jazia colado ao cimento do pátio, pintado com o seu sangue.

No extenso salão do refeitório, com o seu teto alto e as lâmpadas cinzentas pendendo sobre a comprida mesa branca com os seus dois extensos bancos, o ambiente extático fazia-se sentir. As refeições eram sempre motivo de alvoroço. Voavam sempre tabuleiros e batatas e fruta e talheres. Voava tudo o que pudesse voar. Saquei um tabuleiro e um saco com talheres e coloquei-me na fila. Mais uma vez, só faltava o convalescente do Henrique. Chegou a minha vez de receber o jantar. Uma mulher bruta, de touca, com umas suíças hirsutas, encheu-me o prato com empadão de peixe e gritou pelo próximo. Eu prossegui e retirei da vitrine uma maçã, um copo e uma tigela com sopa. Avancei para uma pequena mesa quadrangular. Segurei no jarro de água e enchi o meu copo. À minha frente estava a mesa comprida e os dezoito macacos sentavam-se quase todos no este da mesa, vendo daquele que era o meu ponto de vista. Preparando-me para o pior, dirigi-me ao extremo esquerdo da mesa, onde pousei o meu jantar, e sentei-me. 

Estava a acabar a sopa quando Henrique apareceu. Tinha a cara roxa, os lábios inchados e movia-se muito lentamente, cambaleando. Todos os olhos focaram-se no seu corpo entorpecido, débil e humilhado. Vi-o tirar um tabuleiro e um saco com talheres, e receber brutamente o jantar. O pobre coitado sentou-se à minha frente e nem me olhou nos olhos.  O jantar decorria calmamente, apesar de todos esperarem que algo acontecesse que fizesse o jantar descambar. E a verdade é que esse algo aconteceu. Dois jovens encetaram uma polémica qualquer que acabou como todas as outras: com pratos a voar. Rapidamente, os dezasseis macacos da briga do pátio escolheram os seus lados e juntaram-se à frívola discussão que se ia intensificando. O Henrique chegou-se mais para a ponta do banco e encolheu-se, continuando timidamente a jantar. Eu também continuei a jantar, impávido e sereno, sem prestar qualquer atenção aos vôos que aconteciam sobre aquela mesa. 

Quando terminei o jantar, levantei-me e fui para o meu quarto. A querela continuava. As paredes do refeitório estavam todas cagadas com a porcaria do empadão. Até a brutamontes da cozinheira se havia juntado ao circo e mandava aos ares o seu empadão insosso.

No meu aquário, com as suas enormes janelas, tudo o que eu podia ver no escuro da noite eram as duas paredes caiadas e a luz fraca que saía pelas pequenas janelas do refeitório. Ainda se ouvia sussurros da quezília que fora armada ao jantar. Deitei-me. O meu corpo estava pesado, era esmagado por uma melancolia selvagem que vinha quando queria e com passe livre para tomar conta de mim. E tomava conta de mim, apoderava-se dos meus braços pesados, da minha mente pesada, das minhas pernas pesadas, e colava-me à cama. Tudo o que queria naquele momento era poder fugir da realidade, mas os minutos passavam e o corpo pesava ainda mais. Os que circulavam pelo corredor, regressando cada um ao seu aquário, podiam ver a silhueta de um homem estendido no leito da cama, de braços e pernas abertas, com as mãos e os pés pendendo para o chão. O que fizera eu para estar ali pregado àquele estrado, rodeado de loucos, sem poder fugir. A fuga daquele sítio era a morte. Muitos antes de mim escolheram a morte em vez da vida de aquário. Há uns anos, tive um amigo (o único que alguma vez tive) que escolheu esse caminho… 

Assim como eu e como todos os outros, tudo o que ele conhecia era o nosso estabelecimento com os seus vinte aquários. Aquilo era a vida. E a vida era uma merda. Eu aceitava apaticamente a nossa condição. O Felipe revoltava-se com qualquer coisa. Tudo era motivo de revolta. E os nossos aquários eram material suficiente para se dar uma grande revolução que seria levada a cabo por ele. Passávamos os dias juntos. Eu lia os meus livros e ele escrevia e rabiscava em folhas de papel, ou em simples guardanapos, rascunhos para a revolução que estava por vir. Contava-me como tudo iria acontecer, o que eu teria de fazer, e o que estaria a cargo dele e como ao fim desse dia estaríamos livres. Por essa altura, as constantes e frívolas quezílias não passavam de ruído de fundo para ele. Após a revolução, as pessoas agarrar-se-iam com unhas e dentes a novos projetos e novas formas de ser que não se resumissem a pura mesquinhez. Como ele gostava de dizer: as pessoas deixariam de ser peixes confusos e perdidos, com talas pregadas atrás dos olhos, e poderiam ser, finalmente, pessoas. A sua loucura chegava ao ponto de roubar toalhas da mesa do refeitório, de as coser umas às outras, formando um grande cortinado que impediria que se pudesse ver o interior do seu quarto. Era o único quarto com privacidade. Eu também tinha privacidade no meu – ninguém queria saber de mim, uma vez ou outra, lá aparecia algum anormal para conferir o que um chato como eu fazia nos seus dias, mas nada mais que isso. 

Os primeiros raios da alvorada furavam a janela virada para o pátio. Dançavam por entre os pinheiros que debruavam todo o estabelecimento, e dessa dança iam parar pequenos fios de sol ao meu quarto. Virei-me para a janela do pátio, a fim de levar com os magros raios de sol na cara. Do outro lado, junto ao prédio que defrontava o nosso, vi Felipe acocorado, escondido na penumbra que o prédio projetava, junto a uma janela. Ele meneava os braços rente ao chão, tirou uma tira de fita adesiva e colou um pequeno aparelho à janela. Dessa janela, passou para a seguinte. Executou os mesmos gestos, arrancou a mesma quantidade de fita adesiva, colou um aparelho semelhante ao anterior à janela e avançou para o quarto seguinte. Quando terminou, dirigiu-se em direção ao extremo sul do nosso edifício. Dez minutos depois, estava à frente da minha janela, no extremo norte da instalação. Pôs-se a fazer o que havia feito nas outras janelas, sem reparar nos meus olhos esbugalhados e empapados que o observavam. Colocando primeiro a perna esquerda no chão, e depois a direita, e com a ajuda dos braços, levantei-me. Esfreguei e pestanejei os olhos – ele continuava ali, acocorado e extático. Cheguei-me ao pé da janela. Do seu ponto de vista, Felipe viu um corpo altivo que o observava do topo do mundo. A verdade é que estava a ser observado por um corpo franzino, de ombros caídos e cansados. Os seus olhos verdes fisgaram os meus olhos cansados. Colocou o indicador da mão direita junto à boca, todo tesudo, e pediu-me que ficasse calado. No brilho dos seus olhos percebi que aquele seria o dia da revolução. Respondendo àquela revelação, os meus ombros ergueram-se, as minhas pupilas dilataram-se e o meu corpo tomou, de facto, a altivez com que Felipe se tinha deparado momentos antes. Abandonei o meu amigo revolucionário e os seus preparativos, para tomar um banho refrescante nos balneários do nosso edifício. Quando regressei ao quarto, ele terminava de montar um pedestal que circundava o dragoeiro. Vesti-me e lancei-me para o pátio. 

“É hoje?”, perguntei.

“É” respondeu-me, enquanto guardava as ferramentas numa caixa laranja. 

“Onde arranjaste essa caixa?”, inquiri. 

“Numa salinha no refeitório”, esclareceu-me ele. “Costuma estar sempre fechada, mas eu safei-me, como é costume.” 

“Vai guardá-la antes que dêem pela sua falta”, aconselhei.

“Sim, é o que vou fazer mesmo agora. Vai para o refeitório e senta-te”, ordenou-me “ eu vou lá ter.” 

Assim fiz, fui para o refeitório. Não me coloquei na fila, porque não havia. Cingi-me a agarrar num tabuleiro e a servir-me dos ovos e do bacon que se encontravam dentro de recipientes fundos e retangulares de metal, do pão que descansava num cesto e do sumo que se encontrava numa máquina em cima da mesinha pequena onde costumava estar o jarro da água. Em todo o processo não dei pela presença de Felipe, que apareceria cinco minutos depois, quando eu já me tinha sentado a comer. 

Vi os seus olhos jubilantes entrarem pela porta principal e penetrarem o refeitório na minha direção. Gesticulando-se efusivamente e com os olhos prestes a explodir, contou-me como havia preparado a revolução e como daí a uns anos falar-se-ia em todo o mundo sobre o que ele se preparava para fazer naquele dia. Ouvi com um entusiasmo contido o que ele me contava. Depois de me ter exposto o seu plano, açodou-se em direção aos ovos e ao bacon. Sentou-se à minha frente e aspirou tudo o que tinha no tabuleiro. Ainda estava a comer, quando ele desapareceu do refeitório. 

Todos os outros, que eventualmente seriam vítimas da revolução Filipina, eram alheios a todas as preocupações do Filipe e não tinham a mínima noção do que estava por vir. Passavam pelo pátio sem reparar no pedestal envolto no dragoeiro. Visitavam as janelas de todos os quartos, curiosos com o que se fazia dentro de cada um, sem nunca reparar nos pequenos dispositivos rentes ao chão. Sempre em cima de tudo e todos, sempre sedentos por saber o que se fazia no interior do recinto muralhado por uma extensa vedação, nunca se haviam apercebido da bomba relógio que vivia com eles e muito menos adivinhariam que aquele seria o dia da bomba rebentar. Passei o dia ora a observar o que o Felipe aprontava entusiasmadamente, ora a observar os corpos ingénuos, completamente a leste do que estava por vir, movidos pelos seus cérebros mórbidos.

O Filipe esperara pelo crepúsculo – que era agora – para iniciar a revolução. O sol punha fim àquele dia, e a revolução do Filipe iniciaria um novo dia para a humanidade. Por algum motivo etéreo, ou apenas por sorte do acaso, tudo se encontrava em silêncio, exceto os pássaros, que sibilavam. Os raios solares que teimavam em continuar acima do horizonte alaranjavam-me a cara. Estava sentado num banco virado para o dragoeiro, a cinco metros do mesmo. O Filipe saiu do seu quarto. Tinha pintado o macacão de preto, como se fosse para um funeral. Calmamente, de queixo erguido, peito cheio, subiu para o pedestal que havia montado de manhã.  

“Caros peixes!”, exclamou, de braços erguidos. “Juntem-se a mim.”

Os peixes, não percebendo a quem ele se dirigia, acataram a ordem e juntaram-se ao Filipe. 

“Isso mesmo”, disse, sorrindo. “Agora, peço-vos que se virem para o sol, que se põe.”

“Porquê?”, perguntou um dos peixes. “Não vejo nada de interessante no sol”, reclamou.

“Não vês, porque ainda não aconteceu. Mas está prestes a acontecer. Peço-vos que se virem para o sol.”

E os peixes viraram-se para o sol que se punha, não percebendo o motivo das ordens que lhes eram dirigidas. Com todos os peixes concentrados no sol, o Filipe encetou a discursar:

“Meus peixes enclausurados neste grande aquário de pequenos aquários, há demasiado tempo vivem vocês, e vivo eu, nesta condição de peixes que nos foi tacitamente imposta. Hoje!” e fez uma breve pausa. “Hoje, libertar-vos-ei dos vossos aquários.” Nesse momento, os peixes borrifaram-se para o sol e concentraram-se no estranho homem que eles conheciam e que falava em peixes e aquários. “Não! Não olhem para mim!”, disse o Felipe, enquanto perdia as estribeiras. “Olhem para o sol, por favor”, os peixes viraram as cabeças e não viram nada que os interessasse e, então, voltaram-se de novo para o Felipe. “Não, foda-se!”, gritou, impacientemente, o Filipe. “O sol!”, gritou. “O sol! Olhem para o sol!”

“AH!”, exclamou um dos peixes. “Este gajo é completamente chanfrado!”

Resiliente, o Filipe continuou o discurso, enquanto alguns mandavam vir com ele e outros se sideravam com o que ele dizia. 

Olhei para o sol, apenas alguns milímetros se encontravam acima da linha do horizonte.

“Agora!”, gritou o Filipe “Olhem todos para o sol!”

Alguns mandaram-no à merda, outros ficaram a olhá-lo, embevecidos, de boca aberta e olhos esbugalhados, com baba a escorrer pelos cantos dos lábios. Eu deixei-me estar a olhar o pôr-do-sol. 

Numa última tentativa de mudar os que estavam contra ele, e de acordar os que se babavam, que era suposto apesar do desagrado de uns e o entorpecimento de outros, ele ergueu um comando na mão esquerda e apertou o botão vermelho que se encontrava no topo do mesmo. Deu-se um enorme estrondo gutural, seguido de tinidos estridentes. Uma enorme chama ergueu-se nas minhas costas e atrás do dragoeiro. Os olhos do Filipe, vibrantes, consumiram-se pelas chamas das explosões, e pelas que agora ardiam os quartos. E na sua cara extática um enorme sorriso fora estampado, com dentes laranjas e amarelos e vermelhos. 

Depois do estrondo e dos tinidos, um silêncio sepulcral assombrou o pátio. Os pássaros haviam fugido, só se ouvia o som do fogo que tomava conta dos quartos. 

O olhar extático do Filipe dirigiu-se ao dos peixes, que se haviam transformado em touros, e que se deixavam consumir por uma chama diferente da que consumia o Filipe. Os touros, furiosos, lançaram-se a ele e apearam-no do pedestal. Encheram-no de pontapés, socos e de cuspo. Quando ele já nem conseguia mexer-se, a manada dispersou e foi pastar para o refeitório. 

Aproximei-me do corpo amassado do Filipe. Dos seus olhos jorravam lágrimas que refletiam o céu avermelhado. Os seus olhos fitavam o céu e nem com a minha presença se moveram. Acocorei-me e coloquei os meus braços por baixo daquele corpo desprezado. Com ele envolto nos meus braços, carreguei-o até à sua cama preta e deitei-o. Fitei-o durante longos minutos. Não havendo nada mais que pudesse fazer, abandonei-o no seu leito e fui jantar. 

No refeitório, brigava-se por alguma coisa sem jeito nenhum. As paredes pintavam-se com restos do jantar e os loucos dos touros continuavam a arremessar comida. Jantei e escondi-me no meu quarto. Não havia sinais da explosão. Todos os quartos estavam iguais ao que sempre foram. O meu corpo cansado caiu na cama. Pouco depois, adormeci.

No dia seguinte, quando acordei, fui ver como se encontrava o Filipe. Bati à porta: não recebi resposta. Abri a porta e deparei-me com um quarto vazio. As cortinas que distinguiam aquele quarto, haviam desaparecido. Em cima da cama, repousavam um macacão branco e um bilhete. Estendi o bilhete e li as palavras rabiscadas naquele bocado de papel. 

Meu caro amigo,

É com prazer que me dirijo a ti como “meu amigo”. Foste o único que alguma vez tive. Durante muito tempo que ansiava pelo dia de ontem. Por muito tempo esperei por um novo mundo. Era com este macacão branco que esperava que tu e eu entrássemos nesse mundo novo. Tenho-o vestido neste preciso momento em que me preparo para passar a vedação. Não tenho forças para continuar a viver neste Admirável Mundo Presente. Espero que não sofras com a minha ausência. Desejo-te o melhor para o que ainda te falta viver nesse teu aquário. Para o próximo Eu que apareça neste triste mundo, deixo o macacão branco e deixo-te a ti, meu rico amigo, para que os dias no aquário sejam mais suportáveis. Nunca te transformes num peixe. 

Felipe.

Levei o bilhete e o macacão para o meu quarto. Guardei o bilhete numa gaveta e vesti o macacão. Saí do quarto e meti-me no pátio. Lá fora, os dezoito residentes que restavam da revolução do dia anterior estavam todos acocorados, de macacões para baixo e rabo de fora. Gemiam, e dos seus rabos brancos caíam longos rolos castanhos, parecidos com plasticina. Quando acabaram de cagar, puxaram os macacões para cima, agarraram nos cagalhões e começaram a atirá-los uns aos outros. Voaram cagalhões por todo o lado. Um deles acertou-me no peito e esborrachou-se no macacão branco. Voltei para dentro e mudei-me. De novo com o macacão regular. Agarrei num livro e sentei-me num banco, no meio da merda que os outros animais cagaram.