​O bilhete azul, Sebastião Viana

​​​​​​​​​Texto de Sebastião N. Viana. Revisão de Ana Guerreiro. Imagem: https://pxhere.com/en/photo/1498485.

Raro é o homem que, nos tempos que correm, não rememore saudoso os bons velhos tempos de há cousa de pouco mais de um ano, em que não havia restrições sanitárias e tampouco havia restrições de circulação. Numa situação como esta, em que nunca foi tão fácil empatizar com aquela secção dos manuais de História da quintaclasse, que trata a chacina que por Peste se deu durante o século XIV, uns temem pela vida, outros pela fazenda. E conquanto de fazenda o meu ofício não sofra mais do que é costume, sofre pela vida que indignamente lhe vão arrebatando, e quando não sofra pela vida, logo cai putrefacto, decompondo-se em labaredas infernais em que o esqueleto todo ele se some. Falo do ofício de escritor, que desde a modernidade não é senão um Coveiro de Costumes, não porque enterre os costumes mas porque não vive a não ser da inovação de dar ao mundo aquilo que o mundo tão bem já conhece: esqueletos, histórias que têm por campa a alma do povo e por lápide as bocas de todos aqueles que têm amizade à palavra. À falta de companhia a quem pudesse arrebatar um esqueleto, esperançoso de que por fortuna não me falhem Engenho e Arte, contar-vos-ei um acontecimento, porventura irrelevante, mas contundentemente misterioso, que vivi graças a uma viagem no comboio que vai de Santa Apolónia ao Porto. 

​Tendo de viajar por cerca de três horas, fui apropriadamente munido com as Vinte Horas de Liteira, e logo me deixei regalar com outras viagens, decerto mais eloquentes do que a minha. O meu deleite camiliano terá durado pouco mais de meia hora; pela paragem de Santarém subiu uma mulher que havia reservado o assento contíguo ao meu. Vendo-a sentar-se, naturalmente lhe dei campo e aproximei-me da janela, mirando-a de soslaio. Incomodava-me quando chegava o corpo para perto de mim, tal como qualquer mulher que… desconsiderando os preceitos do costume, tenha por natural rotina o desconcerto de dar-se, na companhia do telemóvel, a palra vivaz e alegre. Na tentativa de exercer um resquício de censura social perante tamanha falta de vergonha, dei comigo a converter o soslaio num olhar descaradamente cru. A rudeza a que me entregara tão-pouco me parecera tornar ignóbil a minha pretensão a seguidor de bons costumes como parecera surtir qualquer efeito na observada que, inclinando a cabeça para trás, repousava as solas das castigadas sabrinas sobre o assento. Via-se-lhe um cabelo curto à moda da vítima, pintado à imagem de castanhas maduras, descobrindo duas orelhas pequeníssimas, onde se atanchavam dois brincos em forma de cereja. O nariz era curto e fino, ligeiramente inclinado à direita, os lábios compridos e cobertos por um bâton cinzento-escuro, contrastando com uma pele clara em que se inseriam dois olhos azul-ciano, per se colossais, indevidamente ampliados por um eyeliner castanho. A irregularidade do rosto regularizava-se no traje, que ou se aparentava a alguma vanguarda de estilo ou era de gebo, o leitor que tenha a amabilidade de escolher, que eu enveredo pela segunda hipótese. Pelos ombros caía-lhe um blazer cinzento, assentando sobre uma shirt branca, ilustrada com o que aparentavam ser malmequeres, juntando-se-lhe uns curtos calções de sarja. Como reparasse que eu a mirava, espreguiçou-se, pôs o telemóvel no bolso, rodopiou sobre o calcanhar que pisava o assento e falou-me assim: 

— És de Olhão?

E fazendo-me de desapercebido, respondi:

— De Nordeste. 

— De ‘oh da Mira’ então?

Respondi com um sorriso e tornei:

— Também vai até ao Porto? 

— Vou e… É “vais”! Que somos praticamente da mesma idade! — disse, subindo a voz. 

— Perdoe-me, mas não creio que valha a pena habituar-me para tão pouco tempo. — Respondi, e voltando a mirar a janela, que agora dava para a pouco movimentada estação do Entroncamento: — Fiquei contagiado pela alegria com que a ouvi falar… Era pessoa amiga? 

— Ah… Sim… Um amigo. 

— O mesmo que lhe ofereceu o anel? — Inquiri, lançando um olhar sobre o dedinho aprisionado.

Como a resposta tardasse, revolvi-me no assento e volvi ao ponto onde a leitura se achava. Mas antes que chegasse ao final da página, ouvia-a sussurrar numa vozinha hesitante: 

— Se eu tivesse querido… talvez… Há uns seis anos tive um trabalho em que servia à mesa num restaurante. Conheci um ser encantador numa quinta-feira quando, por volta do jantar, me dirigi à mesa que dava para a janela, tu sabes, para o habitual! Estender a ementa e dizer: “O que é que vai ser?” Já não sei o que jantou, mas fez questão de saber como se faziam as sobremesas, que era alérgico a amendoins. — Esubindo a voz para um tom mais alegre: — Ele devia ter gostado tanto que não sei! Pagou e deixou… ficar a carteira! Mas teve retorno que veio logo, no dia seguinte, ver-me no dia, e como já nessa altura gostava de mim, trocámos os números de telemóvel para sairmos logo, mas logo, no fim de semana! Ele, notava-se que tinha paixão por mim, quando o carro teve avaria, em vez de me deixar pagar a reparação, comprou um novo. Ele era tão bom… Tenho tantas saudades… 

— Desculpe, disse “era”? — Encorajei. 

— Ah… o pobre coitado… Comprou um bolo que tinha amendoins. Ainda o levámos ao hospital, mas não deu para se salvar… coitado… — Balbuciou, baixando a cabeça. E como tivesse curiosidade, encostou-se a mim, tornando a sussurrar: — Eu, por sorte, não tenho alergias, tu tens alguma?

Eu respondi que não me constava ter alergias de qualquer espécie, e como mesentisse tanto pelo falecido quanto pela nova viúva, resolvi mudar o rumo da conversa, perguntando pelo rapazeco que inda havia pouco lhe falara, e se se gostavam… E não é que ela gostava dele? Ele que era tão bom rapaz… tão bom amigo…! Mesmo que não ganhasse muito dinheiro, sempre que podia oferecia-lhe jantares e arranjava bilhetes de concerto. Sempre que Ela chamava, Ele aparecia acudindo ao chamamento, era todo um gentleman, vivendo dia e noite à luz do visor do telemóvel, esperando ver aparecer o nome “Minha Vida”. Sendo que se conheciam havia uns cinco anos e Ele era sempre tão bom rapaz, é de supor que a rapariga pudesse ficar nervosa, se porventura lhe calhasse imaginar os arroubamentos de carinho que se seguiriam à contração do SantoMatrimónio! Mas, como não se casassem, a moça podia ir-se afoitando a esbanjar graças de altruísmo, era toda um anjo dos céus, pela generosidade celestial condescendendo a que outrem pudesse gozar da sua radiante presença.  E quem julgariaaleivosia que o seu coraçãozito ainda não estivesse pronto para um novo relacionamento, senão quem, de máfé, almejasse possuir a excelente Fortuna do amador que em cinco anos não se tornara na cousa amada? Quem não quereria travar com rapariga tão altruísta uma amizade tão intensa? Só os tolos!

Como não convenha à minha humílima pessoa o carinho de mulher tão prendada, ou como por soberba rejeite tais gestos de altruísmo, este é um daqueles momentos em que decido anuir, sortindo com um sorriso nos lábios, e, no pensamento, este amigável suspiro: “Mas que pessoa! Que narcótico!” 

​Por esta altura, o comboio ia chegando a Coimbra. Da porta que dava para a carruagem seguinte surgia um homem de meia-idade, estatura baixa e um pujante bigode levemente chamuscado pela nicotina; era o “fiscal da bilhetagem”. A moça relanceou pensativamente os contornos do cavalheiro, e, voltando-se para mim, quis saber se eu tinha alguma conversada. Sendo apanhado desprevenido, vacilei, e vendo aproximar-se o fiscal, tirei do bolso o comprovativo. A minha companheira seguiu-me o exemplo e, pousando a mala sobre as pernas, iniciou um longo e caótico processo de chafurdação.  Tanto se demorou que, naquela voz castigada e grave, recebeu de instrução o habitual: “Menina, o seu comprovativo de viagem?” 

A menina não conseguia dar resposta, mas como desceria na Campanhã, por meio de um sorrisinho embaraçado lá conseguiu granjear a amabilidade do fiscal que,após um gracejo maroto, disse que iria passar revista aos que se quedavam, com o talão em riste, do outro lado do corredor. O leitor decerto se lembra de que o comboio ia chegando à caótica estação de Coimbra. Pois aprecie o seguinte quadro: o fiscal, que era baixito, voltou-nos as costas mais ou menos pela mesma altura que o comboio abrandava, estando quase a sossegar. Nisto, a rapariga pôs-se de pé de um só pulo, dando por terminada a chafurda, e assim que o fiscal voltou a cara e deu pelo espaço vazio, já a rapariga estava do outro lado da janela. Ei-la tornada num rasto de cinza, pelaignota turba, olvidado…  

​E o home’, que ficou tão aturdido quanto eu, por pensar que a moça havia de descer na Campanhã, perguntou-me se eu a conhecia. Ao dizer que nem o nome lhe sabia, deu-se o acaso de me lembrar de guardar a mão na algibeira, tomando o devido susto ao dar pelo desaparecimento da carteira. 

​— Uma ladra! — Exclamei, a que logo num tom frustrado se seguiu:

​— Atão não é que viajou sem pagar!? Você conhece-a de algum lado?​

​— Senhor… — Tornei, e com esmorecimento:  — Não a vi mais gorda, mas viajar sem pagar é o de menos! Que me leva a carteira! 

​— Trazia, nela, muito dinheiro? — Perguntou, em tom preocupado. 

​— Ummpf….— suspirei. — Perto de cinquenta, mas isso não me incomoda muito, imaginará com certeza o fastio que é ter de ir à segunda via de cada cartão…

​— Olhe, nem quero ter de imaginar. Olhe… Tenha bom dia! — Disse, saindo pela porta que dava para a carruagem seguinte.

Passei o resto da viagem fitando a janela que dava para o saudoso bulício da mente, sentindo-me pouco invicto ao chegar à cidade do Porto, onde, esperançoso, dei notícia do sucedido na estação da polícia.

​Cinco dias foram volvidos sem que o telemóvel desse sinal. Andava eu, ao início da tarde, passeando pela Corujeira, na companhia de um amigo que me distraía com uma lição de Arquitetura. Estava aquela aragem agradável de finais de primavera, que,passando levemente pelas folhas, não é suficiente para nos sacudir o chapéu da cabeça.Debalde, não sendo o vento, foi o embate com um apressado transeunte que o sacudiu. A jeito de espanto soltei um airoso “Que raio!” e agachei-me para colhê-lo. Foi nesse instante que reparei na carteirinha de pele que julguei ter um toque familiar. Abrindo-a,dei com o meu retrato, tão insuportável como qualquer imagem que se insira sobre um Cartão de Cidadão; era com efeito a minha carteira. 

Ainda olhei, com incredulidade, a ver se dava com o transeunte, mas não encontrei o esperado rasto de cinza. Como se o acaso não fosse suficientemente espantoso, calhei a abrir a bolsinha das notas, vendo ao invés dos cinquenta patacos um papelinho azul ciano em que se lia um indigno “Com carinho”, seguido de um número de telemóvel. Foi nesse momento que me virei para o meu companheiro e disse amigavelmente: “Mas que pessoa! Que narcótico!” e principiei por partilhar a historieta que o paciente leitor acabou de ler.