Criar uma lenda a brincar: editorial de ratos e baratas [85/86-3], Guilherme Berjano Valente

Texto de Guilherme Berjano Valente. Revisão de João N. S. Almeida e Marisa Pacheco.

São milhares. De cada vez que lá entro oiço todo o seu patinhar; sou incapaz de me sentar e de respirar por mais do que um segundo sem que aquelas favolas repudiantes me façam desejar o isolamento repetido ciclicamente por volta do segundo semestre, mas sem tantas perdas mortais. Elas são tão estaladiças e dançam e cantam e mostram-se com as suas antenas miradas em nós, sentados numa cadeira de porcelana, com um buraco para evacuar todos os nossos excrementos naturais. Ainda, aqui sentado, chegou outra amiga de antenas, e o moço das favolas já dança com outro amigo peludo. Não sei mais quanto tempo aguento neste cubículo; penso que vou ser devorado. Saio a correr e grito desalmadamente: – São só baratas e ratos!

Criámos uma lenda com base em algo que é verdadeiro: a existência de baratas e ratos na nossa faculdade. Proponho que tal foi deveras exagerado, contudo, ninguém se sinta ofendido caso tenha feito o que aqui digo (hiperbolizar a situação animal): isto não é de todo mau. Caros leitores, creio que esta lenda pode ser um emblema, um orgulho e um motivo de poder perante todas as outras faculdades que desprezam as Humanidades como área do saber. Saliento desde já o facto de sermos tão interessantes que todos os bichos detestados, como que estereótipo social, se foram aproveitando e ganhando poder nas nossas casas-de-banho, corredores, e zonas exteriores, de modo a poderem aprender e desgostar do melhor de que a poesia tem para dar (o que digo é honesto e não uma desonra para com a literatura, a história e a filosofia; somos tão interessantes que até os que mais desprezamos se sentem na obrigação de perceberem um pouco do que estudamos, arriscando-se no nosso mundo humano, e confrontando-se com olhares de nojo). Sigo, dizendo, que se na nossa faculdade a praxe não tem tanta adesão quanto nas outras instituições de ensino superior, enganam-se; que história é essa de se ser ofendido para se ser integrado, de ir a festas e convívios ao final da tarde, trajado; nada disso: estudante de honra traja só depois de se ter deparado com um destes seres asquerosos; daí vermos tão poucos a vangloriarem o preto com branco nos nossos corredores. Gozo, sim, gozo: não foram poucos os que se deparam com espécies com as quais não simpatizamos, no entanto, o preço de uma vestimenta dedicada a um só tempo universitário, por muito bonito que seja o seu significado, o estudante, como espécie mais rara do que baratas, está sempre de carteira vazia, e dificilmente o pode adquirir.

​Começo um novo parágrafo por me parecer que o outro já está comprido. Neste preciso momento, depois de tal ênfase dado em redes sociais sobre a nossa fauna, sinto que seria uma desilusão para qualquer caloiro, visitante da instituição, ou apenas explorador curioso pronto para estudar este nosso ecossistema, chegar àquela bela entrada, onde ao olhar para a esquerda vê o maior ser imaginativo, Dom Quixote, acompanhado por aquele mandrião realista, Sancho Pança, e ter alguém a dizer-lhes que nunca mais se viu um rato a ler Camus, sentado, perto do Anfiteatro I. 

​Há os exagerados, há os realistas e, para terminar, os negacionistas. Considero-me parte do segundo grupo e não falarei por um todo, mas por mim, neste pedaço de palavras. Sou testemunha de vida animal estrangeira a uma faculdade; deambulo por corredores a quem tenho imenso carinho. Considero que muitos dos comentários feitos foram exagerados devido àquilo que tenho escrito: a existência de baratas e ratos tornou-se parte integrante da cultura estudantil da Faculdade de Letras; passou a ser uma piada, que por vezes foi levada a um extremo e outras vezes foi negada; é de tal modo recorrente ouvir alguém a referenciar estes bichos, quanto a não os vermos. Pareceu-se que temos testemunhos sempre bastante absolutistas: “O edifício está infestado! São mais do que os alunos e vamos ser capturados!” e “Nunca vi nada! E vocês devem é estar todos a inventar…”. É deveras cómico repararmos como, até num assunto de bastante irrelevância o ser humano demonstra a sua capacidade para se situar em polos opostos criados por uma binaríce (termo criado para descrever a tendência de as pessoas porem tudo em duas posições possíveis, de um determinado assunto), que nos está inerente.

Há ratos e baratas. Não vamos ser tomados pelos mesmos.