Texto de João N.S. Almeida. Revisão de Marisa Pacheco.
Não é invulgar considerar-se que alguém que esteja a pensar em engenharia, em padaria ou em aviação em termos políticos estará a cometer um erro categórico. Não é tanto assim com as humanidades em geral, e tal tem razão de ser: a política, como ciência ou arte da gestão da coisa comum e da decisão colectiva, existe geneologicamente e genericamente no logos. É com a palavra e com o pensamento em forma de palavra que se faz a política, que se pensa em objectos políticos, etc. Por outro lado, não é necessariamente com a palavra que se trata das leis que regem a engenharia, a padaria ou a medicina veterinária. Portanto existe sem sombra de dúvida uma íntima relação entre a política, como gestão e método de decisão colectiva quanto à coisa comum, e tudo aquilo que fazemos nas humanidades.
Não quer isto dizer, porém, que quem tem interesse em humanidades deva ter necessariamente interesse em política. A ideia parece, aliás, muito estranha: quando pensamos em literatura em geral, filosofia, artes literárias como a poesia ou o romance, crítica literária ou crítica de arte, as questões políticas ocupam muito pouco espaço. Aliás, elas aí existem como questões políticas no verdadeiro sentido do termo, não do termo política mas do termo questão: existem no espaço teórico, universal e cogitativo que as humanidades nos proporcionam, e não existem no sentido comum que o vulgo atribui à palavra política enquanto acção prática de modificar ou moldar a vida comum de todos nós. As humanidades, é sabido, e com muito orgulho e satisfação, frequentemente não servem para nada: servem precisamente para termos a liberdade e o dever, independentemente de consequências benéficas que decerto existem, de pensarmos longamente em coisas que à primeira vista não servem para nada. Seguem então o princípio socrático de que a vida não examinada não merece ser vivida e que por isso aprender é um bem por si próprio.
Quem tenha a sua vida regida por sistemas de utilitarismo ferozes, totalitários e em suma inumanos, achará tal coisa estranha. No entanto, todos o praticamos. Quando duas pessoas conversam uma com a outra, se de rompante lhes perguntarmos para que é que serve a conversa que estão a ter elas receberão a pergunta como estranha e provavelmente responderão que estão só a conversar. Só a conversar. Tal como alguém que está só a olhar a paisagem, que está só a dar uma volta a pé, que está só a fazer tempo até determinada coisa, as pessoas também podem estar só a conversar. É muito isso que se passa em humanidades. No entanto, enquadrar essa actividade no lazer ou como louvor ao hedonismo será também incorrecto. É provável que as categorias do trabalho, do lazer e até a da necessidade sejam não apenas insuficientes mas realmente imperfeitas para categorizar a totalidade das actividades humanas. Também porque, aliás, as actividades humanas não têm necessariamente de caber na perfeição dentro de categorias que inventemos.
Chegamos assim à ideia de que a cogitação sobre política em humanidades é especulativa, livre, descomprometida com acções práticas embora possa evidentemente servir como prelúdio de construção de decisões políticas robustas ou de sistemas teóricos que as abranjam. Mas, à partida, a dimensão política de determinados pensamentos parece não só ter um papel muito secundário na vida intelectual das humanidades, mas também é evidente que é a política que está subordinada às humanidades e não o contrário. Ora quem visite qualquer faculdade de liberal arts, de letras, de humanidades, nos dias que correm, pode ficar por vezes com uma impressão muito errónea quanto aos factos que acabámos de enunciar. Com efeito, a quantidade de pessoas entusiasmadas com posições políticas é numerosa, o fanatismo com que as defendem empesta o ar, e as criaturas que se vejam numa faculdade de humanidades para estudar, de facto, humanidades, com o universalismo que merecem, são vistos como seres estranhos, hostis, ou, como as tais hordas de entusiastas políticos se costumam referir, como “fachos”.
É evidente que a terminologia aqui usada denuncia, desde logo, que o que se está a passar não é nenhuma posição política séria dentro de um quadro de ideologias sólidas, mas sim uma vulgarização de determinadas categorias tribais e sociais que são reduzidas, numa dicotomia do bem contra o mal de nível francamente infantil, aos ídolos e inimigos da sua época. Neste caso, temos aqui o fascismo como principal fantasma, mas se vivêssemos no século XIX poderíamos ter o monarquismo absolutista. Nesse sentido, o termo “facho”, utilizado em referência a uma pessoa de que discordamos, que não entendemos ou de que não gostamos, poderia ser perfeitamente substituído pelo termo “miguelista” e nada se perderia do conteúdo, que é nulo.
O fanatismo que perpassa pelas colleges of liberal arts no mundo ocidental em geral, porém, não é de toda e qualquer ideologia política. É de uma em particular: aquilo a que genericamente, e seguindo o modelo imperfeito pós-revolução francesa, se chama de “esquerda”. São pessoas em geral simpatizantes de modelos de igualitarismo social forçado, de nivelação e terraplanagem de direitos para todos, mesmo que os “todos” não sejam iguais, mas, principalmente, de albergarem determinados ódios — seja aos “ricos”, aos “fachos”, aos “burgueses”, etc — que motivam não só a maior parte da estrutura das suas ideias mas mesmo as simpatias e as inimizades com que regem as suas vidas pessoais. De facto, é frequente encontrarmos pessoas que se dizem de esquerda e que se orgulham de não se darem com pessoas de direita. Pelo contrário, as pessoas de direita que em determinados meios como as colleges of liberal arts tenham a coragem de se afirmar como tal frequentemente não só não dirão isso, como nem terão vontade de só ter amigos de direita, como nem sequer teriam para isso oportunidade, já que estão rodeados na sua maioria de pessoas de esquerda.
Cada época e cada contexto tem os seus defensores do sistema social e da moral vigente, pessoas no patamar superior da hierarquia do poder: cabe-nos perguntar quem é que, neste quadro que descrevemos, está a assumir esse papel. Parece-nos que a intolerância fanática dessa “esquerda”, muito em contradição com os princípios que dizem advogar, assume claramente esse papel, pois se estivessem em posição subalterna não teriam sequer hipótese de exercer o fanatismo, a discriminação e as perseguições morais que exercem, dado que tais atitudes depressa trariam a falência da sua causa face às pessoas em geral. No entanto, na situação actual, parece indesmentível que é o contrário que se passa: é a esquerda que domina ou julga dominar certas instituições e por isso pode dar-se ao vergonhoso luxo de constantemente discriminar quem pensa diferente.
Estas considerações nascem da nossa experiência em lidar com vários alunos não só da nossa faculdade mas das colleges of liberal arts em geral, e representam apenas o mesmo desapreço da nossa parte que teríamos perante uma invasão de skinheads, neo-nazis, fanáticos do liberalismo de Friedman, monarquistas absolutistas, cristãos ortodoxos, que pretendessem impor a uma determinada comunidade a imprescindibilidade do seu pensamento. Insurgimo-nos, obviamente, contra isto, repetindo os princípios com que iniciámos este texto: as humanidades não são de esquerda nem de direita, nem são monárquicas nem republicanas, nem comunistas nem fascistas, nem coisa nenhuma. Deixem a política lá fora e trabalhem a sério.