Iniciamos hoje uma tradição que esperamos que se mantenha regularmente. Todos os meses iremos fazer uma publicação no nosso site, cujo conteúdo será também reencaminhado por e-mail em forma de newsletter, publicação essa que incluirá a maior parte dos conteúdos que partilhámos nas redes sociais com os nossos leitores ao longo do último mês. De facto, essa parte da nossa actividade editorial, que recebe vários contributos dos nossos colaboradores e também espontaneamente de alguns leitores, foi tomando uma dimensão significativa. Hoje em dia podemos dizer que a sua relevância já ditou muitas linhas editoriais que fomos seguindo com gosto, sempre do ponto de vista das humanidades, e sempre suscitando bons e plurais debates de ideias, livres e bem-informados.
Começamos então esta newsletter com o grande sucesso da nossa publicação sobre expressões de jargão online da moda. A proliferação da comunicação através de redes sociais e a mistura de contextos culturais daí proveniente veio a criar um fenómeno de calão juvenil bastante inflacionado, que não tem lugar apenas neste plano virtual mas que de facto expande-se até ao contacto presencial. Todas as épocas têm as suas expressões mais em moda, que frequentemente são usadas até rebentarem e desaparecerem, mas esta época em particular parece quase representar uma diferença de espécie face às outras devido à dimensão avassaladora de termos, em geral anglófonos, importados para o discurso coloquial comum. Alguém observou que isto é como se toda a gente começasse a falar como se falava nos fóruns da internet no início dos anos 2000. Apresentámos assim uma recolha de terminologia usada nesses contextos, com a nossa enorme dúvida sobre se a maior parte desta linguagem se aproveita para alguma coisa ou não. Não se esqueçam portanto de fazer virtue signaling ao baiting da baddie, com gatekeeping do ratio, é bom nunca esquecer. Apresentámos também o cartaz que vai ocupar algum tempo nos nossos placards na faculdade e não só: trata-se de uma mescla das chamadas para artigos relacionadas com manga e anime, hip-hop e heavy metal, game of thrones e tudo o mais.


Ainda a propósito linguagem e do seu uso, demos também um pontapé de saída para um tema que queremos abordar durante os próximos meses: a chamada linguagem inclusiva em relação a minorias sexuais, manifesta de formas como neo-pronomes (“elx”, etc), neologismos (“amigues”, etc), ou na sua versão mais suave, na mania dos políticos referirem o masculino e o feminino em cada vez que se dirigem às pessoas, ignorando que o masculino faz o lugar do netruo (“portugueses e portuguesas”, “amigos e amigas”, ou “personas e personos”, como uma recente peça de humor no país vizinho caricaturou). Chamamos-lhe, genericamente, novilíngua, inspirado no conceito orwelliano. O tema é vasto, tem muitas ramificações mas vamos começar com um dos principais móbeis desta questão: o conceito de “inclusão”. Para isso, trouxemos um artigo do El Pais, um outro de Dinis de Abreu sobre directivas governamentais recentes do governo português sobre linguagem inclusiva, e um artigo de Daniel Oliveira sobre a diferença entre reconhecer que as palavras modelam o mundo e querer-se impor uma modelação alternativa pela força de lei.
Temos também de chamar a atenção para os eventos relacionados com congresso de Dante, organizado pelo professor da FLUL João R. Figueiredo e pela professora da Universidade Católica Teresa Bartolomei. Podem espreitar o restante programa, que inclui actividades até finais de Novembro, nas seguintes brochuras.
Ainda quanto a assuntos da faculdade, apresentámos o editorial de João N.S. Almeida sobre as críticas a Miguel Tamen, a resposta de Fábio Moniz e outra resposta de Guilherme Berjano Valente.
A nossa visão da política, como todos sabem, submete esta às humanidades e não o contrário. É desse ponto de vista que nunca nos falta ânimo para encontrar inúmeros pontos de interesse nessa área da vida humana que infelizmente colhe tanto fanatismo e intransigência pouco curiosa intelectualmente em alguns. De certo modo, a nossa visão da política assemelha-se mais a um espectáculo de variedades do que a uma oficina de activíssimo. Mas para que cada um saiba de que está a falar, depois de já termos recomendado o teste Political Compass, vimos agora também partilhar um teste de coordenadas políticas ainda mais complexo, onde podem optar pela realização de um questionário com 56 perguntas ou um outro com 256 (!) para determinação do vosso posicionamento político em nove eixos diferentes: o 9Axes Na sua adaptação para português, o teste fornece até uma identificação partidária, embora imperfeita. Abordámos ainda duas aves raras no panorama da imprensa portuguesa, além das numerosas publicações regionais muitas vezes financiadas pelas próprias câmaras: subsistem, a nível nacional, duas publicações ligadas respetivamente a cada um dos extremos políticos da esquerda e da direita, que podem ambas ser descritas como publicações de resistência: o jornal Avante e o jornal O Diabo. O primeiro tem longa tradição, sendo já distribuído durante a ditadura do estado novo, e o segundo, fundado por Vera Lagoa, mantém-se como a única voz abertamente de direita nacionalista na imprensa portuguesa. São duas publicações bastante coloridas e exóticas, tanto por albergarem pontos de vista extremistas e minoritários na sociedade portuguesa, como também pelo efeito bizarro choque de muitas das suas capas. E finalmente, ainda sobre política, não nos cansamos de recomendar duas fantásticas páginas de humor de grande qualidade: o Jovem Conservador de Direita e a Esquerda.org. A primeira satiriza o pensamento do típico yuppie, enquanto que a segunda hiperboliza as causas sociais do bloco de esquerda.
A discussão sobre fenómenos de censura da linguagem levou-nos à seguinte linha. No discurso público contemporâneo é por vezes prevalente uma tendência para se proibir a menção de certas palavras consideradas ofensivas ou de má memória (é conhecida a tentativa de omitir a palavra nigger de Huckleberry Finn, por exemplo). Este fenómeno não é novo mas é preciso escavar um bom bocado até se encontrarem os paralelos mais evidentes, entre os quais alguns contextos histórico-sócio-culturais de fanatismo religioso ou o forte papel do tabu nas sociedades tribais primitivas. Aconselhamos, e muito, esta bela obra sobre a matéria. Quanto à especificidade da palavra nigger, para a maior parte dos europeus, o trauma da divisão racial não é tão dramático como nos EUA: neste caso, o tabú chega até a abarcar aspectos da linguagem, o que é para nós — estudantes de letras e europeus — particularmente fascinante: a palavra “nigger” é tratada como quase pior que um palavrão, e vulgarmente referida como “the n-word”, cobrindo-a com um manto de pudor puritano. No contexto português e lusófono, nada de idêntico podemos encontrar face à palavra “preto”, que é até usada nos países africanos de língua portuguesa com relativa facilidade e liberalidade. Vimos assim relembrar um exemplo conhecido do choque entre o uso livre, justo e até progressista da palavra “nigger” numa canção de John Lennon, “Woman is the Nigger of the World”. Devido à situação racialmente tensa, que parece não ter fim à vista (porque será?), a expressão de Lennon, europeu, libertário e socialista, não foi recebida com conforto pelos media, tendo sido censurada nas rádios e originado alguns pedidos de desculpa, até contrariados, como o de Dick Cavett. Isto levou-nos a recordar John Lennon e o seu carácter complexo, e partilhámos alguns aspetos do humor cáustico, desassombrado e até confrontacional na sua interação com o público e com a imprensa, presentes no vídeo em baixo. Além disso, Lennon, que sempre foi cáustico, frontal e imperfeito, confessou com candura, numa entrevista à Playboy de 1981, que era uma pessoa violenta, ou que já o tinha sido. Confessou que partia facilmente para a violência tanto com desconhecidos, amigos e namoradas. E sublinhou que o seu fascínio pela paz no mundo advinha precisamente deste tipo de predisposição: “It is the most violent people who go for love and peace”. Este tipo de descrição fina, inteligente e honesta valeria hoje um lugar de banimento da esfera pública, o que atesta a tremenda estupidez inquisitorial dos tempos que correm, onde a confissão e o arrependimento não valem como redenção e as turbas pretendem soterrar os impolutos num fogo eterno de culpa. A nossa revista, como é bem sabido, assume-se frontalmente contra isso. Fiquem aqui com a entrevista, e uma revista da biografia de Lennon.
Partilhámos também algo sobre um tópico que é frequentemente discutido no discurso público e nos média, sem que no entanto saibamos exactamente a quantas pessoas este tópico diz directamente respeito: a classificação de transgénero. Ao contrário do que o entusiasmo por vezes interesseiro e exploratório de certas seitas políticas possa imaginar sobre determinadas minorias, como homossexuais ou negros, a real percentagem na sociedade correspondente a essas pessoas é muitíssimo menor do que aquilo que em geral se julga (5% e 15%, respectivamente, no caso das sociedades ocidentais em geral). Apresentamos assim algumas estatísticas referentes a esse aspecto, começando por uma média de todos os estudos em relação à real percentagem, embora com dúvidas, das pessoas transgénero nas sociedade ocidentais em geral: 0,6%. Este número traz-nos alguns pontos para reflexão, como (1) ser reduzido e quase insignificante não diminui a questão do direito cívico (2) economicamente, em termos de sns, não é um problema (3) e sendo tão diminuto, não representa nenhum sintoma de decadência cultural do ocidente, ao contrário do que outras seitas políticas possam achar.
Encontramos sempre espaço para algumas invulgaridades relacionadas com artes e humanidades. Por exemplo, o papel das armas de fogo na literatura policial tem a sua relevância mas não tanto como nos filmes: lembrando-nos da famosa frase do produtor Grifith ou de Godard, conforme as versões, “a film is a girl and a gun”, apresentamos aqui uma curiosa base de dados, que regista a marca e modelo das armas usadas em tantos filmes quanto possível. Espreitem! Por outro lado, as conversas (e as gralhas nas pesquisas da internet, por cortesia de Pedro Teixeira) também levam a resultados tão bizarros quanto interessantes: existe aparentemente uma publicação dedicada aos fanáticos do assassínio em série. Não a prática, esperamos, mas sim todos os outros aspectos relacionados. Ilustrámos ainda como pequenas coisas tão corriqueiras e selvagens podem ser analisadas criticamente com profundidade e com utilidade para outras áreas. É o caso do famoso mosh pit dos concertos de rock (referido em português como “moche”), uma interacção no limiar da violência em que todas as pessoas dançam anarquicamente empurrando-se e jogando-se umas às e contra as outras. Ora tal interacção pode ser analisada à luz da mecânica de fluidos e essas conclusões podem ajudar em situações práticas como, por exemplo, no planeamento de reacção a desastres. Espreitem vários links sobre o assunto aqui, aqui e ali, e tenham uns bons moches, agora que reabriram os bares e as discotecas. Por último, partilhamos também uma muito colorida lista do mundo fantástico das parafilias sexuais, sobre a qual recomendamos a obra pioneira de Krafft-Ebing, Psycopathia Sexualis (1886), precursora de Freud. A lista, uma tão diversa e mentalmente estimulante colecção de invenções, elucida-nos sobre o universo fantástico e inesgotável da capacidade humana para enunciar representações de segunda e terceira ordem sobre os objectos originais, ou, como também é conhecida, a capacidade para a arte.
Terminamos com uma tripla evocação a Serge Gainsbourg: primeiro, através da lendária aparição num programa de televisão francês, significativamente bêbado, na companhia de Whitney Houston, a quem se dirige dizendo “I want to fuck you”; a segunda, através do muito polémico videoclipe da música “Lemon Incest”, gravado com a sua filha, Charlotte; e de uma performance de um conjunto infantil imitando a sua figura, que muito o comoveu.
Finalmente, deixamos aqui um mosaico com as nossas recomendações de livros, música e cinema. Tenham um excelente resto de mês de Outubro e cumprimentos a todos!
em nome d’a direcção,
Tomás Vicente Ferreira e João N.S. Almeida