Editorial 85/86-1: Tamen e a contestação, João N.S. Almeida

Texto de João N.S. Almeida. Revisão de Guilherme Berjano Valente e Tomás Vicente Ferreira.

Alguns dos membros da nossa redação frequentam a faculdade de letras há mais de cinco anos ou mesmo até de oito anos. Passámos por vários directores da faculdade, incluindo António M. Feijó e Paulo Farmhouse Alberto. A desproporção entre a magra ou nula contestação que estas pessoas recebiam e a contestação por vezes inacreditavelmente barulhenta, malcriada e irracional que recebe Miguel Tamen é tão notória como, para nós, manifestamente incompreensível. Pode bem ser que para qualquer aluno recém-chegado à faculdade — ou para outros de memória fraca — lhe pareça absolutamente normal que um director, enquanto orgão de autoridade central, responsável por muito do que funciona mal na instituição, receba a grossa parte da contestação que os alunos têm reservada, alguma dela com razão e outra dela sem razão e que serve apenas como válvula de escape de frustrações académicas e pessoais. Pode parecer de facto normal, e se calhar até seria: mas a verdade é que não há memória de nenhum outro director ter recebido tanta contestação, tanto escárnio barato e tanta má-língua como este. Na verdade, não há sequer memória recente de qualquer director ter recebido qualquer tipo de contestação significativa que seja: a maior parte deles passam incólumes, entre os pingos da chuva, enquanto responsáveis por vezes quase decorativos pelo funcionamento regular da faculdade, muito mais dependente da entidade central da Universidade de Lisboa, por sua vez ainda mais dependente da entidade central do Ministério do Ensino Superior, por sua vez absolutamente dependente dos orçamentos de estado. É assim a maior parte da vida logística e burocrática de uma faculdade, em que os directores não passam muito de garantes do funcionamento de processos que em muito lhes são alheios.

O que trouxe, então, de tão novo e relevante o procedimento de Miguel Tamen para que tanta e tão agreste contestação lhe tenha sido dirigida? Adiantaremos duas coisas: em primeiro lugar, apresentou-se frontalmente perante os alunos, passou a enviar-lhes regularmente e-mails, assinando-os devidamente e assumindo responsabilidade; em Portugal, tal maneira de estar tem a sua pena própria, que descreveremos mais à frente. Em segundo lugar, assumiu a gestão da faculdade durante um período de pandemia, levando por tabela com alguma da por vezes justificada impaciência dos alunos conforme as voltas e reviravoltas que as medidas de contenção iam levando, situação que, porém, não se resumiu à vida universitária mas a toda a vida lectiva e laboral da maior parte do mundo desenvolvido.

Abordemos então estes dois pontos, começando pelo segundo. É perfeitamente apontável ao director alguma falta de comunicação mais precisa nas missivas aos alunos que justificavam as suas decisões. Nunca foi inteiramente claro porque é que a faculdade teve de optar por um modelo misto, por exemplo: embora ocasionalmente explicasse de forma inteligível que a quantidade de licenciaturas e a diversidade curricular não permitia outro modo de funcionamento, nunca foi justificada ao pormenor essa escolha. É certo que não é necessariamente exigível a um director que exemplifique aos alunos, através de diagramas ou coisa parecida, os prós e contras de cada um dos modelos pelos quais poderia optar. Dado o contexto particular em que vivíamos, talvez algo semelhante pudesse ter sido feito. Mas três coisas podem ser ditas a este respeito: primeiro, se em decisões correntes em geral não se exige aos responsáveis que façam apresentações em Powerpoint sobre as motivações que as conduzem, talvez o mesmo não deva ser exigido em períodos excepcionais, dado que a complexidade dos juízos por detrás dessas decisões é muito mais volátil e não seria facilmente transmissível de forma precisa; segundo, se a frequente mudança de posição do governo, da faculdade e do director em relação às medidas de contenção era por vezes notória, não menos notória era a mesma mudança de posição dos alunos, que ora reclamavam por a faculdade não fechar, ora reclamavam pela mesma não abrir, em períodos não muito distantes do tempo, parecendo que estavam mais motivados por compreensível desespero pessoal do que por raciocínio lógico; e terceiro, para tal contestação ter surgido é provável que fosse já pré-existente uma forte animosidade de alguma espécie em relação à figura pessoal ou profissional de Miguel Tamen. Continua a não ser claro porquê. Onde estava toda esta gente aquando dos mandatos de Feijó ou de Farmhouse Alberto?

Podemos adiantar que a posição de Tamen, antes de ser director, foi sempre a de um professor relativamente exigente e intransigente quanto ao que dizia respeito à equidade entre alunos, nomeadamente no caso das avaliações. Tem um particular apreço pela universalidade do saber, é uma pessoa amplamente culta e conhecedora, e não nutre particulares viés culturais, ideológicos ou religiosos. Desconhecemos se Tamen alimentou animosidade pessoais ou profissionais na faculdade; parece-nos uma hipótese viável mas que não sabemos demonstrar. Mas uma coisa adiantamos, aliás, a única coisa que temos a adiantar de verdadeiramente credível sobre a matéria: em Portugal, quem dá a cara, quem assina por baixo, quem se responsabiliza, quem diz em voz alta que é ele o responsável e comunica directamente com aqueles que administra, tem a paga certa: o enxovalho público, a ridicularização, a inveja, o empequenamento, o uso da sua figura como bode expiatório para todos os males dos administrados. Esta cultura é patética, ridícula, reles, e insurgimo-nos frontalmente contra ela. O assumir de responsabilidades nos bons e nos maus momentos não deve ser castigado pelo enxovalho gratuito e ordinário, enquanto que quem se esconde passa entre os pingos da chuva e segue incólume. Independentemente dos erros que possam ter existido durante a gestão de Tamen, principalmente durante o período da pandemia — e será bom notar que os erros ocorridos neste período talvez mereçam uma atribuição de valor distinta dos eventuais erros de gestão corrente, dado o facto de se tratar de um período excepcional — nada existiu de particularmente relevante, aliás, nem de mau nem de bom, na gestão de Tamen que merecesse o chorrilho de insultos, maledicência, culpabilização por tudo e por nada, com que o director foi sendo prendado tanto no discurso corrente e presencial de alguns alunos como, também, e em maior e mais baixo grau, no chavascal pantanoso das redes sociais.

Seria mais compreensível este quadro se a faculdade fosse uma escola secundária ou um clube desportivo: de facto, a directora de um estabelecimento de adolescentes ou o presidente da nossa equipa de futebol podem contar com uma certa quantidade de insultos meramente circulares que nada mais significam do que de válvulas de escape para problemas maioritariamente passionais com coisas que ocupam partes da nossa vida. Não assim numa faculdade, porém. Ou, pelo menos, não faz sentido que assim seja: ninguém é obrigado propriamente a estar numa faculdade tal como na escola secundária, nem ninguém é doente pela faculdade tal como somos doentes por equipas desportivas. Parece muito mais natural ao director de uma faculdade ocupar o lugar, no pensamento destas pessoas, de uma figura relativamente irrelevante e burocrática que, como já dissemos, dá seguimento aos processos normais de gestão de uma instituição deste tipo, muitos deles a ele alheios. Tamen, no entanto, ao contrário de Farmhouse Alberto ou Feijó, tem nas redes sociais um fiel séquito de pessoas que regularmente — quase diariamente — lhe dirigem ódios, calúnias e ordinarices de toda a ordem. Escusamo-nos aqui a citar quaisquer dessas expressões, mas podem perfeitamente pensar em qualquer palavrão e qualquer qualificativo de mau-gosto e encontrarão o nome ou a imagem de Miguel Tamen a ele colado, se tiverem o estômago para mergulhar no dia-a-dia de algumas redes sociais. 

A declaração de interesses com que podemos concluir este texto é fácil de elaborar: alguns de nós já foram alunos de Miguel Tamen, outros já o tiveram como orientador. Alguns de nós têm por ele particular simpatia e outros de nós nenhuma em especial. Nenhum destes pontos alteram uma vírgula sequer do que queríamos dizer: continua a ser para nós incompreensível e ainda misteriosa a quantidade de aversão maioritariamente irracional e até ordinária e injusta com que Miguel Tamen é presenteado, embora a teoria preferida que tenhamos sobre isto é a que já dissemos: em Portugal, além do mérito, o simples dar a cara e assumir responsabilidade é desde cedo brindado com o enxovalho público, a fúria das turbas, e a ridicularização pelos invejosos, o que reflecte somente uma cultura provinciana, pouco séria e nada meritocrática.