Era um vídeo de um homem a chorar depois de dizer eu te amo, José Maria Pinheiro De Souza Neto

Texto de José Neto. Revisão de João N. S. Almeida. Imagem: Polifemo e Galateia numa paisagem, da villa imperial em Boscotrecase, última década do séc. I a.C., MET.

“Apenas um olho tinha Polifemo
Apenas um olhar
Que em Galateia veio a decantar
Apenas um olho tinha Polifemo
Apenas um olhar
Que dá ânsia de nadar o levou a cantar
Apenas um olho tinha Polifemo
Antes de Ulisses o tirar
Polifemo enxergava sua paisagem no mar.”
(Anomos Heleatikos)

Prólogo

É depois do confinamento, Lisboa. E as mãos tenras de uma mulher seguram o controle remoto para escutar continuamente “eu te amo”.

ALICE

I

(Pijamas)

    No primeiro dia de confinamento, Alice pensava. Os dias passavam, agora, lentamente, tenros, verdadeiros e simples. Folheava com seus dedos o ecrã do telemóvel. Descartando pessoas, oportunidades, futuro. Lembrou tomando outra vida. Acordada para ver um breve nascer do sol. E o futuro deixava para além todo o passado. Ainda bem que não tivera filhos. Teria uma outra vida, e em seus sonhos, a outra vida vinha continuamente, sem perceber. Ela chegava e nada falava, sustinha apenas uma curiosidade ardente de encontrar-se a si noutra mulher.

Assim se descobriria. Assim seria finalmente ela.

Não dormiu. Colocou uma cápsula que fez café, em segundos. Presa a trapos velhos de seda secreta, olhou para a janela e se viu. Seria ela noutra na sua outra vida.

Fumou mais um cigarro, começaram a faltar. Era o penúltimo, olhou para dentro e se sentiu solitária. Se viu desabotoando o celular, desnudando mulheres, outras mulheres num aplicativo de encontros, se viu procurando, procurando por si numa outra vida. Cansada desligou-se e viu o seu reflexo.

      No último cigarro, viu pela a janela ela na parada do autocarro.

II

(Loop)

    Era um vídeo de um homem chorando depois de dizer eu te amo. O vídeo era sempre pausado nessa parte.

III

(Uma noite.)

    Às vezes a Alice escrevia alguma coisa que guardava para si. Aquela música não fazia mais sentido, não mais para essa Alice.

    No meio do cigarro, após um ônibus atravessar horizontalmente a janela, a campainha toca, uma, duas vezes, ela se apressa para jogar o cigarro pela a janela. Ela se apressa para desabotoar a camisa de seda cara causando um decote. Houve uma pausa até uma terceira tentativa de chamar a atenção, o grito mudo da campainha após colocados seus únicos Louboutin, uma regalia. Não atendeu, não houve tempo.

    Alice estava na sala o tempo todo, esperando que tocasse de novo.

    Alice estava presa, presa daquele sofá, o sofá de sua sala, praticando meditação mindfulness ou o que chamam hoje dia de não esperar, mas ele continuava a frequentá-la, e ela ligou a filmadora, uma miniDV num tripé manfrotto , saídas componentes.

    Olhou para o relógio de pulso, ele estava atrasado.

Pulso atrasado? Relógio atrasado?

    Ele esperava na porta, tocou a campainha apenas uma vez.

Pelo olho da porta.

Vestia camiseta gola “v” da Armani Exchange, um número a menos, bíceps bem definidos como o topete recheado de luzes, calça de super slim, e sapatos Louis Vuitton que poderiam ser falsificados assim como a fivela do cinto de H maiúsculo. Ele ajeitou os jeans.

Ela se escondeu na porta aberta.

    -Pro sofá.-  sussurrou Alice.

IV

(Fastforward)

    Sentado sobre os pregos, a mulher senta-se ao seu lado, a câmera é ligada com um controle remoto, ele diz  “eu te amo” para a câmera e chora. Alice desliga a câmera, a tv, tudo que estava ao seu alcance, avança.

    -O que foi Alice?

Alice tenta um beijo.

    -Diretora, não me leve a mal?

    Ela insiste, Alice atira-se nos ombros de Pessoa, ele mostra a aliança e a segura pelos ombros num anti-abraço, a empurra suavemente. Cada um, no seu canto do sofá, respiram fundo. No meio um vazio frio de gritante silêncio é cortado, “Alice, – ele mostra a aliança – sabes que eu sou gay.”

V

(No quarto)

    Alice se trancou em si, fechou-se no quarto, não quis meia palavra com Pessoa, trancou a casa em todas as fechaduras. E a volta de escutar as músicas, está prestes a fazer isso, escolheu um vinil, e colocou no gira discos. Era Bill Withers, era My Imagination. Era aquele homem que chora e diz eu te amo, a aprisionando à vida. Era a música dele, agora também era dela. Deveria ser. Mas sentia apenas dor, e dançava dor até dormir.

VI

(Rewind)

    Era um vídeo de um homem chorando depois de dizer eu te amo. O vídeo era sempre pausado nessa parte por Alice.

VII

(Uma Semana atrás)

    As coisas já deveriam ter de voltar ao normal, Ela, Alice, na sua seda secreta, sem cigarros, sem café desce, vai a pastelaria mais próxima, compra um maço numa maquineta, estava vestida com qualquer coisa. Ali mesmo acende a vida, um primeiro travo.

No caminho de volta para casa encontra Sophia. Alice tira uma foto, passaria a semana examinando se eram parecidas. Pensou, mas antes de passar o autocarro Sophia a viu. Era estranho, fisicamente, não podia ser, nada em comum.

Mesmo assim Sophia parou e a olhou. Sophia fugindo para dentro do autocarro, era o que desejava. Mas foi Sophia quem perguntou se Alice estava ocupada. Alice disse que não. E já estavam novamente na pastelaria.

    Sophia respirava fundo, nunca havia visto Alice, e Alice levantava mais um cigarro esquecendo de o acender.

– Queres um cigarro?

    – Não fumo.

    – O que queres comigo?

    – Posso ler a tua mão?

    -Porque quem é você?

    -A melhor maneira de saber quem eu sou, é eu sabendo quem és.

    – Sou brasileira, não vês?

    – Sim. Mas cá dai-me logo a tua mão.

Alice entrega as palmas abertas. Estava cansada. Os dedos de Sophia tateiam as linhas de Alice.

    – A senhora tem cancro.

    – Meu nome é Alice. Sim, terminal.

    – Ele sabe?

    – Minha vez.

Sophia entrega as palmas, Alice fecha-as. Levanta-se e vai embora. Deixou-lhe uma chave. Sophia vê Alice entrando no prédio, ela morava em frente da parada de autocarro. Na chave o número do apartamento.

( Outra noite.)

É no vídeo , um homem a chorar depois de dizer “eu te amo”.  Sophia pausou o vídeo nessa parte.

SOPHIA

I

(Um mês)

        Sophia era pesquisadora, mas não sabia se até quando iria à bolsa[1] e pesquisa sobre Polifemo[2]. Na universidade finalmente ia ser professora, achava que de clássicas, achava, pois, dominava o grego koiné e o ático, não conseguiu se formar em filosofia, foi um doutorado fracassado, talvez nem fosse o que era para ser, foi um experimento de um ano sabático.

    Sophia tinha 40 anos, pensava quantos anos tinha Alice, e porque aquilo tudo havia acontecido e como havia acontecido. Ficará sabendo sobre a morte de Alice, dias depois na internet. Ela tivera uma doppelganger[3]. Contando ninguém acredita.

    Sophia tinha quase 40 anos, havia lido toda a série esfinge, e tentado ler Hermes Trismegisto, depois do pós-doutorado em Atenas, se aventurou com um grego que lhe ensinou a ler as palmas das mãos. Foi um amor de verão. Zorba, o grego, seu professor de mitologia, tinha mulher e filhos e um nome muito antigo, estranho, cinematográfico. Foi cinematográfico o curto romance, não deixou mazelas em nenhum dos dois, não teve ressonância, e não teve eco.

      Sophia não tinha filhos, não tinha marido, era livre e saudável. Como se não esperasse a morte, a morte demoraria. Sophia lembrou algumas coisas e chorou no banheiro da faculdade em silêncio, foi uma conversa curta, pontual e inesperada com Alice.

    Foi uma atuação. Convincente ela abriu-lhe a sua casa, a chave estava em seu chaveiro.

    Todo esse sofrimento por alguém tão desesperada, felicidade e tristeza, certeza e dúvidas. Tudo rodopiava na mente de Sophia, que procurava a si mesma. Finalmente encontrou na morte de uma desconhecida, mas é só isso?

    Não podia ser só isso, sua vida não podia morrer aqui. Eu não sei ler as mãos, mas o câncer era evidente. E ela me deu uma chave para algo que precisa ser aberto, uma porta. Naquela noite, na volta da faculdade estava convicta que encontraria algo, uma direção na vida.

    Depois da aula, depois de chorar, depois de entrar no autocarro, depois fixar-se no ponto, depois de tirar o chaveiro, depois de atravessar a rua, descobriu que não tinha a senha do portão.

    Não era pra se meter nisso. A vida de Alice era outra vida.

II

(Um dia)

    Ela espera em frente ao portão. Um homem corpulento no andar e no tamanho sai, nas suas mãos um isqueiro, na sua boca fechada um cigarro. Antes deixa ela entrar no prédio com uma única pergunta.

    -Vizinha?

Acenei positivamente, sem saber o porque eu fiz isso e entrei. A chave era 4C. Não queria, mas subi de escadas. E a cada andar uma palpitação na barriga. Esperei ainda dentro da escada para ouvir se havia algum ruído de vizinhos conversando à porta, ou se alguém sairia da onde eu deveria estar. Passei dois minutos em silêncio.

III

(A caverna)

    O apartamento de Alice, estava escuro, sujo com baganas dentro de cinzeiros espalhados, uma luz acessa, era da cozinha. Sophia adentrou a caverna, e enxergou as sombras de Alice presas nas paredes manchadas por tabaco.

    Descobriu primeiro o quarto, um aberto e outro fechado. O apartamento era um banheiro, dois quartos, uma sala e uma cozinha. Uns dos quartos trancados, outro com sofá, cinzeiros, escrivaninha, e uma variada coleção de discos de vinil, parecia ser o escritório, não tinha estante de livros. Nesse momento palpitou se existia alguém no outro quarto, abriu a porta.

    Uma cama de casal, um armário, e só. Atravessou o corredor, passou pela cozinha estreita no caminho, e foi para sala, lá estavam os livros e uma televisão com uma câmera montada. Estava ligada. E assistiu o que havia na câmera, era um homem chorando dizendo que amava Alice. Rebobinou, era uma declaração do dia de um casamento, rebobinou era o casamento de Alice. E o homem que falava emocionado no écran era seu marido.

    Sophia roubou a câmera, queria assistir o filme todo em casa. Um pequeno souvenir de uma aventura. Ficaria por aqui, ninguém daria falta, ela parecia solitária. O que teria acontecido com o marido? Sophia colocou a câmera e os cabos componentes com adaptador de hdmi na mochila e desceu pelo elevador.

    Aquele homem corpulento abriu a porta, desejou boa noite. E tudo morreria aqui.

– Ei, o senhor tem tabaco?

PAULO

I

(Nova vida)

Estava na hora de vender o apartamento. Pensou Paulo. Mandei colocar nas janelas um aviso, disse Paulo a quem lhe perguntava. Era mentira. Foi trágico o que aconteceu, escutava Paulo diariamente. Era o que era. Não podia deixar noutras mãos, era o meu dever, resignou-se Paulo. Era o seu dever, sua cruz. Só fui saber depois o que aconteceu. Esse silêncio, esse tempo, sabia que Alice não estava bem, me disseram que ela era diferente.

Seria eu que venderia, eu decidi.

Era abril. Chovia. Não havia entrado no apartamento, ainda. As chaves continuavam embaixo do tapete de feltro de solado. No elevador estreito e sem porta, um estranho corpulento, o vizinho, ele bocejou e disse…

– Saulo?

– Como?

– Desculpe, seu nome é Saulo, não é?

– Não. Paulo.

-Desculpe. O senhor Paulo mora no 4C? – A voz áspera à procura de ar, do homem gordo aspira o ar restante daquele cubículo.

– Pois.

– É casado com aquela mulher, Alice?

– Desde de quando isso é da sua conta.

– Nada, pois não o via por aqui há algum tempo. E pelo visto nem havia percebido como ela, sua mulher está diferente.

– Estava.

– Como? A vi uns dias desses. Parece outra pessoa.

– Sim, me desculpe, chegou o meu andar.

Paulo respirou fundo, procurou a chave nos bolsos, abriu a porta, e o cheiro dela exalava, um sopro de Alice, uma saudade. Não lembrava daquela tristeza. Não lembrava o quão pequena era a distância das paredes, e quão grande era a personalidade dos objetos, não os queria, por isso manteve tudo trancado a ser levado pelo novo proprietário, e agora os quartos são apenas um vazio. Perdido. Era super exposto como uma película queimada.

Aquela fotografía que se desrevelava, marcava a mise-en-scène. Ele precisava de tempo, algum tempo, não tinha coragem de mexer um centímetro para dentro do lugar.

Toca o telemovel.

-Alô.Pois… Quem fala? – Voz feminina.

– Paulo, quem é?

– Estou ligando para avisar que estou a caminho.

O dia de visita para conhecer o imóvel era hoje. Paulo não havia arrumado, criado uma couraça, fechou a porta, e se dirigiu a cozinha, Embaixo do fogão, Alice guardava um maço, escondido, para emergências, um último tabaco, filtro vermelho, Paulo examinou o último cigarro contra a janela. Enquanto o autocarro audivelmente transpassa a janela crescendo verticalmente, pensou ter visto Alice atravessar a rua. E inseguro guardou para depois o beijo. Paulo não fumava desde que … Bastava-lhe os beijos de Alice.

Queria um beijo com gosto de tabaco…de Alice.

Respirou fundo. Tocou a campainha, ajeitou a camisa para dentro, o lenço no fato, como se não tivesse limpado a testa. Não olhou pelo o olho da porta, não se escondeu atrás de colunas jônicas, abriu a maçaneta com presa pressa, se jogando cautelosamente no destino. E ouviu, um chamado divino, caíram as escamas dos olhos, finalmente se livraria do apartamento.

– Prazer, Paulo, peço desculpas pela bagunça.

– Sophia, olá vim ver o apartamento. – Sophia estava corada.

– Pois… –  nesse momento Paulo sentiu algo familiar, não reconheceu, não havia nada para ser reconhecido – esse é o apartamento.

Senti um peso conhecido em Sophia, como se me perguntasse, a mim mesmo;

– Está tudo bem?

Epílogo

Sophia perguntou-lhe se Paulo tinha tabaco, ele prontamente disse que tinha mas que era o seu último, decidiram dividir, desde que Sophia se sentasse e tomasse um copo de água, que ela fez questão que Paulo colocasse açúcar. Disse-lhe era para acalmar os nervos, já não tinha certeza se em Portugal existia esse hábito.

Sophia disse que conheceu Alice, antes escapuliu um botão da camisa, deixando o decote a mostra, e confessou o encontro na pastelaria. Paulo não entendeu, o motivo de tanta confusão, elas eram muito diferentes, Alice cabelos encaracolados negros, magra demais, beirando os cinquentas, e Sophia cabelo liso castanho aloirado, olhos esverdeados, morena, nova, por volta dos 30. Paulo sabia que quem quer ajudar geralmente atrapalha, subjuga o outro, cria dificuldades que talvez a outra pessoa já tenha superado.

Geralmente nessa situação teria um grande número de questionamentos, mas decidiu ficar calado e acender o cigarro, dando uma longa tragada.

Não segurou, tossiu um pouco.

Passou-lhe a beata, ainda acesa, e tomou um gole de água com açúcar.

Sophia fumou, havia começado a fumar desde a morte de Alice. Sofia suspirou, apagou a beata no chão, Paulo fingiu que não viu. Paulo não sabia o que queria.

Sophia ficou em silêncio. Ela não queria ir embora, mas se levantou e pediu a Paulo desculpas. Paulo disse que não havia motivos para desculpas, ele nunca a tinha visto. Ela repetiu e disse que esqueceria tudo e como foi tudo uma grande tragédia.

Paulo acompanhou Sophia até a porta. Sophia, antes, pediu-lhe um favor.

Ele não entenderia, não atenderia, pediu mesmo assim.

Queria filmá-lo repetindo uma frase [4].

Paulo disse um não. Fechou-lhe a porta.

Nunca mais se viram pessoalmente [5].


[1] A pesquisa de Sophia consistia principalmente na descoberta em Portugal de um enxerto manuscrito do grego, de autoria possível ao grande poeta grego do período de bronze, chamado Anomos Helenikos. Porém ainda não havia certeza, e se esperava o exame de carbono para saber se era tudo o que vivia uma fraude. Seria a primeira grande prova de influência helénica em Portugal durante o período de Bronze, na Espanha já foram encontradas provas ao sul, perto de Ibiza.

[2] Polifemo, é o ciclope mais famoso da antiguidade, seja com sua relação com a ninfa Galateia ou com Ulysses. Foi retratado por Homero e até Ovídio. Ciclopes são gigantes de apenas um olho e imortais.

[3] Doppelgänger é um duplo, alguém fisicamente igual a outra pessoa.

[4] Sophia havia furtado a filmadora e o mini-dv com o vídeo do casamento de Alice e Paulo. Mas isso não a bastava.

[5] É depois do confinamento, Lisboa. E as mãos tenras de uma mulher seguram o controle remoto para escutar continuamente “eu te amo”, repetidas vezes durante anos.