Texto de Andreas Gonçalves Lind, SJ. Revisão da Equipa d’ Os Fazedores de Letras. Imagem: cartaz do filme As Sandálias do Pescador [The Shoes of the Fisherman], de 1968.
Estamos no início dos anos sessenta do século passado. Em plena Guerra Fria, o mundo globalizava-se com a economia a crescer a um ritmo galopante. Até parecia que tudo iria mudar ao ritmo das previsões dos ideólogos mais vanguardistas. O grande acontecimento da Igreja contemporânea, o Concílio Vaticano II, havia apenas começado, e o Papa João XXIII, que o convocou, acabara de falecer. É nesse fatídico ano de 1963 que Morris West publica o seu célebre The Shoes of the Fisherman. Mais tarde, em 1968, naquele quente pós-concílio, Michael Anderson elevou a narrativa à sétima arte do cinema.
Trata-se da história de Kiril Lakota, bispo num canto remoto da Ucrânia. Depois de cumprir 20 anos de prisão nos Gulags da Sibéria, Kiril é enviado a Roma. Foi a diplomacia vaticana que negociou a sua libertação com as autoridades soviéticas. Já na cidade eterna, os cardeais da cúria e o papa mostram-lhe um enorme respeito e admiração, não estivessem na presença de um cristão genuíno que perseverou na fé, não obstante os tormentos da perseguição mais cruenta. Repentinamente vem a falecer o papa de então. E, no novo conclave, é Kiril quem sai eleito. Homem sofrido e humilde, Kiril não quer aceitar o cargo – mais precisamente, o poder. Mas, depois de muito insistirem, os cardeais eleitores acabam por convencê-lo a entregar-se aos desígnios de Deus. Já como papa, e perante o perigo daquela que seria a Terceira Guerra Mundial, visto que a China numa enorme crise de falta de alimentos se preparava para invadir uma serie de países, Kiril decide dar todos os bens da Igreja aos pobres. Dessa forma, não só evita a guerra, como conduz a Igreja aos primórdios do cristianismo mais autêntico.
Esta trama narrativa compreende-se no calor dos sixties, época frutífera em sonhos, muitas vezes simplistas, quais ideologias. Naquele tempo, vivia-se em plena Guerra Fria. E, de facto, o grande medo era o de uma Terceira Guerra Mundial, cuja destruição seria ainda maior que a dos dois conflitos precedentes. É nesse contexto que se grita em prol da paz e do amor, compreendidos como um regressar à simplicidade de vida, capaz de desconstruir as estruturas das instituições do passado. Olhava-se, assim, para a Igreja como uma dessas instituições, ricas e poderosas, que deve abdicar de riqueza e poder em prol da utopia.
E todos concordamos que a Igreja deve estar junto dos mais excluídos, dos mais esquecidos por este mundo. Mas, talvez por ter nascido noutra época, por ser um filho doutro tempo, a verdade é que este tipo de narrativas não me atrai minimamente. Soa-me infantil. Reconheço, apesar de tudo, que Morris West antecipa, pelo menos de certa forma, alguns acontecimentos da Igreja contemporânea. Refiro-me à primeira eleição de um papa não italiano em mais de 400 anos, mais precisamente, à eleição de um papa vindo de um dos países do então Pacto de Varsóvia: foi em 1978, dez anos depois da realização do filme, que Karol Wojtyla se sentou na cadeira de Pedro já como João Paulo II. Por outro lado, em relação aos sumos pontífices do passado, os últimos bispos de Roma parecem ter usado menos a tiara papal. No entanto, nunca os vi tirarem a tiara como o Kiril de Morris West, em radical rutura com a tradição do passado. Além disso, a reabilitação de Teilhard de Chardin, claramente figurado no personagem Telemond e na sua visão do Cristo cósmico, também aconteceu, em certa medida, nos pontificados mais recentes.
A profecia do filme, caso exista, fica-se mesmo por aí. De resto, a obra espelha a ideologia de uma época que já não é deste mundo. Talvez As sandálias do pescador mais não sejam hoje que uma peça de museu. Não só pela qualidade literária e cinematográfica do livro e do filme, mas também pelo projetar de um futuro que, hoje, nem se tornou real, nem é mais desejado. Quem espera ter hoje um papa que escolha o seu nome próprio para o cargo? Será mesmo nesse gesto que se pode encontrar mais simplicidade? Porventura, será menos humilde escolher o nome de um santo que nos precedeu do que escolher o nome que sempre se teve? Será que ter um papa vestido de fato e gravata nos aproxima mais da autenticidade do Evangelho? E quanto ao vaticano dar toda a sua a riqueza aos pobres, alguém acredita mesmo que é por aí que se evitam guerras e se resolvem os dramas do nosso mundo?
Com efeito, a pobreza resolve-se sobretudo com medidas estruturais, capazes de fazerem os pobres produzir riqueza: não se elimina apenas dando o que sobra aos ricos (apesar desses gestos também serem importantes e revelarem a compaixão que nos torna humanos, mais humanos). Além disso, convém não esquecer que muita da riqueza do vaticano não tem um valor medido quantitativamente, pelo dinheiro e pela lógica de mercado. O que significa «dar toda a riqueza da Igreja»? Vender todas as obras de arte produzidas ao longo de séculos e guardadas naqueles museus? Vender a quem? A que preço? E quem ficará depois com essas obras? Significa isso derreter o ouro dos crucifixos e demais objetos religiosos, cujo valor espiritual e artístico é incomensurável, objetos que foram usados por papas, bispos e santos ao longo de uma história de dois mil anos? Pedir à Igreja que dê «todos os seus bens aos pobres» será porventura menos infantil do que pedir ao Estado francês que venda o Louvre e o que nele se contém? Ou exigir que Portugal faça o mesmo com o Museu de Arte Antiga? Além disso, não deve a Igreja ter meios que lhe permitam cuidar dos mais pobres, como o estalajadeiro da parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37), e realizar a sua missão no mundo? Certamente que não é por acaso que Jesus nos preveniu: «pobres sempre os tereis» (Jo 12, 8).
Por fim, face a este tipo de narrativas convém compreender que o tempo nunca volta para trás, nem a fidelidade à Tradição exige regressar a um tempo que já não é nosso. De facto, na Igreja, a Tradição é viva e histórica. Se queremos ser cristãos autênticos, temos de viver o Evangelho no mundo em que nos inserimos. Não podemos querer imitar, em tudo, a Igreja pobre dos primórdios do Cristianismo. Pois nunca seremos os mártires perseguidos por Diocleciano no século III. Esse tempo passou.