A Constituição da Família Medieval, Ana Vieira Vicente

Texto de Ana Vieira Vicente (@ladyofthesparrowvalley). Revisão de João N. S. Almeida. Imagem: The Satyr and the Peasant Family, Jan Steen, 1660 – 1662, J. Paul Getty Museum.

A formação da família é um conceito estudado na área da sociologia, sendo a base de uma estrutura relacional entre os seres humanos. No caso particular do período da idade média, a família medieval deve ser vista em duas vertentes: a família alargada e o núcleo familiar estreito, um pouco à semelhança do que é ainda hoje o caso, principalmente no meio rural. A primeira é constituída não só por um casal, mas também pelas famílias de origem de cada um dos cônjuges, sendo ainda normal a presença de genros/noras e sobrinhos na mesma residência do casal. A segunda é formada apenas pelo casal e os seus filhos, sendo esta uma condição sine qua non para a constituição da categoria de família.

No início da Idade Média (muito por influências germânicas) o papel da família alargada era predominante em todos os assuntos, desde a punição de uma jovem pela rebeldia de se ter casado sem autorização de ambas as partes, até ao cuidado de órfãos e repartição de bens em caso de falecimento de um dos membros do casal. No caso de existir um homicídio no seio da família alargada, ambas as famílias de origem se uniam também para resolver estas questões com atos de vingança organizados. Estes são apenas breves exemplos do conceito, da função e das contingências associadas à existência da família alargada. 

Raymond Cazelles et Johannes Rathofer (préf. Umberto Eco), Les Très Riches Heures du Duc de Berry, Tournai, La Renaissance du Livre, 2001 (1re éd. 1988), 238 p. (ISBN 2-8046-0582-5), p. 14

Existem diferenças relevantes entre o norte e o centro de Portugal relativamente a estes dois conceitos: enquanto o centro do país evoluía para um núcleo estreito, o norte teve mais dificuldade em acompanhar esta transição, atribuindo à mulher apenas o papel de ativo de troca entre famílias para constituição de acordos que beneficiariam duas partes. Por outro lado, cidades como Santarém (que já constituíam núcleos urbanizados) mostravam que a estrutura familiar estava em avanço, uma vez que já atribuíam à mulher a capacidade de decisão: a família tendia para ser apenas constituída pelo casal e o papel dos restantes membros era cada vez menos decisivo. No caso de órfãos e não existindo família próxima, era responsabilidade do Alcaide ficar com a sua tutela.

A progressão do conceito familiar teve o seu expoente máximo no século XIII, mais concretamente no reinado de D.Afonso III, a partir da criação de uma lei que exige a autorização da mulher para o marido poder fazer a venda de qualquer bem. Ainda no reinado deste monarca, foi ainda publicada uma lei que proibia a família de deserdar uma jovem caso esta casasse contra a vontade do seu pai e restante família. O Reinado de D. Afonso III constitui um período de organização administrativa e, consequentemente social.

Book of Hours, Use of Rome (the ‘Golf Book’), c. 1540, British Library, Shelfmark: Add MS 24098

A família tem também as suas diferenças em termos de classes sociais: enquanto os nobres necessitavam de um filho varão para assegurar o nome da casa e as terras conquistadas, no caso da família plebeia essa questão não se coloca uma vez que tanto marido como esposa trabalham de forma equivalente possuindo uma prole de filhos que lhes permitia ter ajuda em casa como nos seus trabalhos agrícolas.

Assim, como podemos concluir que a família da Idade Média foi sofrendo uma mutação a vários níveis, tal como ainda hoje acontece, mantendo-se a unidade básica como os pais e os filhos, e a concepção mais alargada como uma rede mais extensa de ligações de sangue.


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