Uma análise da relação do símbolo com subculturas e identidade colectiva, Luís G. Rodrigues

Texto de Luís G. Rodrigues. Revisão de João N.S. Almeida.

I – Símbolos: Definição; com a ajuda de Hebdige

A partir de uma rápida e simples consulta de como o dicionário Cambridge define conceptualmente o termo “símbolo”, podemos encontrar a seguinte descrição: “a sign, shape or object that is used to represent something else”[i]

Bem, naturalmente, partindo desta introdução elementar ao termo — e como é, aliás, deduzível em virtude do que está inscrito na própria definição — é possível ir mais além e dizer que símbolos, sendo estes, claro está, signos, formas ou objetos postos em lugar de algo, são também agregadores de ideias, ideais, valores, História, bem como de representações (ponto proeminente que será ulteriormente desenvolvido) e ideologia; estes dois últimos conceitos detêm uma importância decisiva para esta crónica, já que será, principalmente, de um ponto de vista ideológico – logo, por representações do geral em lugar do particular –  que o tema será retratado.

Um dos exemplos paradigmáticos do que significa verdadeiramente associar um símbolo a algo físico está presente na obra Subcultura: O Significado do Estilo, de Dick Hebdige – sociólogo com reconhecida obra publicada e professor de Arte e Estudos de Comunicação na Universidade da Califórnia, em Santa Barbára – onde este faz uso dos escritos de Jean Genet no seu Diário de um Ladrão em que é partilhada, logo nas primeiras páginas, como foi a experiência de ser “apanhado” com um tubo de vaselina – à época um símbolo indicativo, de um ponto de vista estereotipado, da sua homossexualidade – num aeroporto. A polícia, como descreve Genet e reconta Hebdige, confiscou o produto enquanto fazia pouco da situação, numa atitude de escárnio. Por medo do que podia acontecer – até à sua integridade física –, Genet entrou na brincadeira mal-intencionada dos agentes de autoridade, sempre consciente de que “esse mísero objeto tão humilde os enfrentaria, a sua presença bastaria para pôr fora de si a polícia do mundo inteiro, atrairia os desprezos, os ódios, as raivas frias e surdas”[ii]. Ou seja, um mero frasco de vaselina, à partida algo desprovido de qualquer conotação valorativa em relação seja ao que for, torna-se, por convenção social e interpretação enviesada que generaliza as práticas de toda uma comunidade, um símbolo identificativo, aos olhos de homofóbicos, de uma condição sexual que reprovam e denotam como alvo a abater. Hebdige escreve acerca deste processo de significação o seguinte: “(…) [outros elementos mundanos] adquirem uma dimensão simbólica e acabam por se converter numa espécie de estigmas, símbolos de um exílio autoimposto“. Este é autoimposto pois tal se passa precisamente no desafio perante as atitudes/comportamentos de uma parte significativa – ou pelo menos suficiente –  da cultura vigente de uma certa sociedade que as subculturas — nomeadamente as criadas com base em valores identitários, de género ou comportamentais derivativos de uma certa orientação sexual, que são aquelas em que se podem encontrar paralelos com a experiência de Genet. Aí é estabelecida uma linha definidora não só das diferenças, como também da emancipação do grupo oprimido contra o opressor, tanto que Genet afirma: “Preferiria bater-me até à última gota do meu sangue a renegar este ridículo utensílio”[iii]: O grupo minoritário assume a sua posição de batalha contra a norma e transforma um objecto até inócuo em algo representativo, faz disso uma arma simbólica que, em simultâneo, é um motivo de orgulho. Poderá provira daqui algum daquilo a que se chama “folclore” proveniente de tanto minorias como maiorias: um conjunto de objectos intensamente transversais que podem muito bem valer mais pela dimensão representativa do que pela dimensão utilitária. 

II – Ideologia; com as mentes de Althusser, Marx, Žižek e Sloterdijk

Proponho-me agora a analisar o que é o que é, então, ideologia e como é que esta influência ou determina a essência de um símbolo?

Recorrendo a Louis Althusser, filosófo marxista francês do secúlo XX, ideologia baseia-se no modo como o indivíduo vive a sua relação entre si e as condições da sua existência[iv]: “In ideology men do indeed express, not the relation between them and their conditions of existence, but the way they live the relation between them and their conditions of existence”[v].

Adicionalmente, Althusser prossegue na exposição que faz acerca do termo, afirmando que “a ideologia tem pouco que ver com a «consciência» […] a ideologia é sem dúvida um sistema de representação, mas na maioria dos casos essas representações nada têm que ver com a «consciência»: são usualmente imagens e ocasionalmente conceitos, mas é sobretudo enquanto estruturas que se impõem à generalidade dos homens, e não através da sua inconsciência”. São objetos culturais percebidos-aceites-sofridos e atuam funcionalmente nos homens através de um processo que lhes escapa”[vi]

Slavoj Žižek, filósofo contemporâneo conhecido pelo seu estilo ímpar no mundo académico, usa, de forma a simplificar toda a definição proposta por Althusser, uma breve frase que Karl Marx emprega no primeiro capítulo do Das Kapital: “We are not aware of it, neverthless we do it”, ainda que na sua obra The Sublime Object of Ideology, Zizek apresente uma tese de Peter Sloterdjik que desafia esta perceção de total inconsciência no que diz respeito ao que é reproduzido pelo indivíduo como efeito da forma como vive a sua relação com as condições existentes, sob uma lente ela própria contemporânea, pensando no mundo de hoje: “Does this concept of ideology [o de Althusser e Marx] as a naive consciousness still apply to today´s world? Is it still operating today? In the Critique of Cynical Reason (…), Sloterdijk puts forward the thesis that ideology´s dominant mode of functioning is cynical. The cynical subject is quite aware of the distance between the ideological mask and the social reality, but he nonetheless insists upon the mask. The formula, as proposed by Sloterdijk, would then be: `they know very well what they are doing, but still, they are doing it´”.

Encontrando validade na definição de ideologia como sistema de representações, parece-me que Sloterdjik, neste caso concreto apresentado por Žižek, pode, efetivamente, estar correto quando assume que a fachada montada por instituições já não se esconde totalmente por detrás de uma total ingenuidade no que concerne às reais motivações presentes nas estruturas impostas ao indivíduo (instituições, leis, construções arquitetónicas opressivas (Foucault), etc). Isto sustenta-se dado que, nos dias de hoje, o acesso facilitado a informação (social media, em particular) e a crescente taxa de escolarização (em 2019, Portugal atingiu os 81,5%[vii] de matriculados no Ensino Secundário, o valor mais alto de sempre) dão ao indivíduo mais ferramentas para pensar por si mesmo — mesmo que esse pensamento crítico venha a ser fortemente influenciado, por exemplo, por algoritmos de redes sociais, ou por um determinado contexto social e económico em que está inserido. Isto é, a meu ver, determinante na matéria, não querendo com isto dizer, efetivamente, que a total população do mundo vive consciente de que é manipulada, porque não é o caso. Porém, é importante reiterar que esta posição defende que ideologia é algo sempre latente na vida em sociedade – seja ela consciente ou não –, sendo inevitável a qualquer ser humano ter ideologia; na ciência da linguagem isto é bem peremptório: “O falante/ouvinte, escritor/leitor são seres situados num tempo histórico, num espaço geográfico; pertencem a uma comunidade, a um grupo e por isso carregam crenças, valores culturais, sociais, enfim a ideologia do grupo, da comunidade de que fazem parte. Essas crenças, ideologias são veiculadas, isto é, aparecem nos discursos”[viii]. Não existe neutralidade ideológica.

III – O Mundo não como Teatro, mas como Mercado? Proposta de Byung-Chul Han

Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, atualmente Professor na Universidade de Artes de Berlim, faz uma afirmação deveras curiosa, no seu livro A Sociedade da Transparência, relativamente à necessidade colectiva da exposição pública, por oposição ao conceito de encenação (que pressupõe ainda, mesmo com uma distanciação do público, uma real transmissão de mensagem). De acordo com o autor, tudo aquilo que advém da ação concreta — que aparentemente é insuficiente nos dias de hoje — necessita de exposição, aprovação rápida e validação: “O mundo não é hoje um teatro onde se representem e leiam ações e sentimentos, mas um mercado onde se expõe, vendem, e consomem intimidades”. 

Poderíamos ir mais longe e trocar a expressão “intimidades” por “ideias”. hoje em dia , maioritariamente, vendem-se ideias: basta reparar na preocupação premente de algumas marcas como a Nike ou a Coca-Cola em que não de forma ingénua se aliam a causas e movimentos (Nike com o movimento “Black Lives Matter, Coca-Cola com constantes alusões à igualdade entre géneros e povos) de modo a transparecer a ideia de que, mais que um produto, produzem consciência social, mas aproveitando-se das causas meramente numa perspetiva economicista de lucro. Não vale a pena cair em ilusões: a Nike, por exemplo, que também apoia publicamente da igualdade de género entre homens e mulheres no desporto, já foi alvo de duras críticas por parte de atletas femininas representas pela marca, como é o caso de Mary Cain[ix], uma atleta que antes de entrar na Nike era a melhor na sua categoria e, depois disso, devido à cultura “win at all costs”, perdeu rendimento devido a um excessivo abuso por parte do treinador que obrigava a sua atleta a perder peso para além do medicamente aceitável e seguro. Ainda assim, o caráter positivo da marca mantém-se, apesar de todas as críticas de que é acusada, dado que, na “bolha” desta realidade que é a propaganda massificada de ideias, a marca faz um excelente trabalho.

Aliada a isto está também outra tese de Chul Han sobre o impacto dos social media: “Os social media e os motores de busca personalizados erigem na rede um espaço próximo absoluto, do qual o fora foi eliminado”[x]. A necessidade de pertença a um grupo, hoje mais que nunca, pela polarização que as redes sociais criam, é evidente e tanto as marcas como os políticos (“os políticos não se medem pelas suas ações, e isso gera neles uma necessidade de encenação”[xi]) ou os gestores das redes sociais têm consciência disso — e estas últimas são tanto receptoras como causadoras disso mesmo, visto que lhes é proveitoso para o negócio. Daí que Sloterdijk tenha razão quando diz que o indivíduo, por tudo o que lhe é apresentado, pode – ainda que nem sempre seja o caso, antes pelo contrário – escolher se adere ou não à ideologia consequente que lhe é imposta pelo contexto em que está inserido, em vez de, através de um processo que lhe é alheio, embarcar numa visão do mundo fabricada pelos detentores dos meios mentais de produção.


[i] Cambridge Dictionary. «Definition of the word “symbol” ». https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/symbol.

[ii] Genet, The Thief`s Journal, Londres, Penguin, 1967

[iii] Ibid.

[iv] «Marxism and Humanism. Louis Althusser 1964» (primeiramente publicado em 1964 em Cahiers de l`I.S.E.A). Acedido 19 de Maio de 2021. https://www.marxists.org/reference/archive/althusser/1964/marxism-humanism.htm.

[v] Ibid.

[vi] Althusser, For Marx, Londres, Allen Lane, 1969

[vii] «Taxa real de escolarização». Acedido 20 de Maio de 2021. https://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+real+de+escolariza%C3%A7%C3%A3o-987-7864.

[viii] Helena Hathsue Nagamine Brandão. «Analisando o Discurso». Museu da Língua Portuguesa

[ix] The New York Times. I Was the Fastest Girl in America, Until I Joined Nike | NYT Opinion, 2019. https://www.youtube.com/watch?v=qBwtCf2X5jw&t=182s.

[x] Byung-Chul Han. A Sociedade da Transparência. Lisboa: Relógio D`Água.

[xi] Ibid.