Texto de Mariana Bicudo Cunha. Revisão de Lourenço Duarte.
Cristã-Nova
Não sou cristã
Nem cristalina
Nem feita de cristal
Mas quem é tão pura e santa?
Não serei eu, mas houve quem se proclamasse como tal
Um homem santificado
Usou Deus como espada
E proclamou vitoriosa uma cruz ensanguentada
Este sangue não se lava
A cruz está manchada
Morrer para viver
E ainda assim, acabar numa praça a arder,
Cruel a escolha de Sefarad
Mas se a escolha não é livre,
Onde está a liberdade?
As cinzas de Sefarad estão nas paredes das igrejas,
Estão no ouro e na prata da grande cidade
O chão desta terra é um cemitério profanado
Sangue Sujo
O que é o sangue?
É terra e lágrimas
O que é o sangue?
É uma arma, uma marca, uma vergonha, uma coroa
Uma árvore antiga, um mapa
Quem diz que há sangue sujo, não sabe nada
Mas não ter sangue limpo custou quase tudo à minha antepassada
E então, ter sangue sujo é uma mentira fabricada
Nada mais que uma verdade aprovada
Se o meu sangue tem seiva dessa grande árvore maldita
Uma planta podre e forte
Soberana e fraca
Porca e pura
Serei como ela?
Quem dita de que é feito o meu sangue
Ou o sangue de qualquer marrana?
Permanece um estúpido temor
De afirmar que sou
Tão suja como esse sangue
Tão alta e profunda como essa árvore
A viagem
De Sião a Sevilha
Dois mil anos passaram
Em mares daqueles que esqueceram
Uma história apagada
Os meus olhos sonharam
E viram a viagem revelada
O caminho de regresso a casa
Da criança arrancada
À mãe desfeita e destruída
Para sempre amada
Ainda te lembras da tua mãe
Antiga e cansada
Terás tu a sua face iluminada
E as madeixas como as ondas enroladas
Conseguem os outros ver em mim
Coisas antigas como a terra
Os olhos grandes da minha mãe
A pele morena
Tudo isto dizem ser estranho
Pois sempre fui estranha
É a voz que me chama estrangeira
A mesma que disse: matem a marrana
Violem-na e queimem-na
Entre Sião e Sevilha
Passaram dois mil anos
E ainda aqui estamos