Poemas de Francisco Ganço. Revisão de Lourenço Duarte.
I
O Traje Negro
Esse que carregamos.
Trago nos ombros,
caído pelo corpo inóspito,
um traje negro.
Trago estas peles,
que me abraçam
como as nuvens negras
que trazem ora a chuva
ora a certeza de uma noite bem passada.
Aquela certeza de adormecer,
a ouvir as gotas pingar
e irrigar tudo à nossa volta.
Aquela certeza de adormecer,
com o escuro lá fora
e o escuro no alcance da vista.
E acordar de novo no escuro,
ainda que agora de olhos bem abertos.
Trago nos ombros,
caído por mim abaixo
um traje negro.
Da cor dos meus olhos.
Mas não daqueles que enxergamos
quando olhamos para o semblante alheio…
Antes daqueles que estão por detrás desses.
Aqueles que choram, quando os outros riem
e que são negros, sempre negros,
mesmo que os que brilham sejam azuis,
ou verdes, ou castanhos, ou igualmente…
negros.
Esse é o traje em que me recolho,
quando a casca que sou mais não suporta
a negritude do meu ser…
Assim sempre se passa a vida…
Dizendo que é negro o traje…
Dizendo que é do traje a culpa.
Que é do traje o conluio fatal com o fado.
Que ultraje ser o traje comandar a vida
e não os sonhos.
Mas continuo,
digam o que disserem, a vesti-lo.
Só ele me aquece, nos dias de calor.
II
A Menina que fala para as paredes
Somos todos, um pouco, como ela.
Que é feito de ti?
Menina, que falas para as paredes.
As tuas únicas ouvintes verdadeiras…
Que andas sozinha pela rua,
sem destino, nem tino na cabeça.
Vestida com o mesmo casaco de sempre:
rosa… nunca mudado.
Tisnado das dores da tua vida,
que são as dores das nossas.
Das nossas…
Tamanhas fossas mundanas.
Tamanhas dores de ser ninguém…
Que é feito de ti?
Menina, que anoiteces todo o dia.
Que fechas esses olhos negros,
pedras frias como a máquina
pulsante nesse âmago gelado.
Ignorado pelos que te deram ao mundo.
Açoitado, pelos que no mundo te recebem.
De braços fechados, nunca abertos.
Sempre de pedras voltadas
e aríetes prontos a romper-te.
Lâminas prontas a drenar-te
o rubro fluido!
Negro, como ora te aflige.
Que é feito de ti?
Menina, com quem brincava na infância.
Doce, tão doce como mel.
Ora amarga como a limonada
que me servias no teu aniversário!
Aquela menina de sorriso fácil,
de encanto sem fronteira, nem limite!
Que me chamava todo o dia:
“Vem brincar!”
e que hoje mais não brinca,
mais não vive.
Só fala para as paredes,
as suas únicas verdadeiras ouvintes.
III
Enregelado
O calor é uma falsa sensação de ser compreendido.
Escrevo poemas.
Atiro palavras para um papel
imaginário, como a mente que as escreve.
Sim, porque os braços só espelham
o que a mente lhes comanda.
É ela que manda, sempre.
Não vês?
Tantas são as vezes que não crês…
Que não cremos nesta sina, que é real.
Que aquilo que escrevemos não tem mal,
tão pouco o que vivemos ou fazemos.
Vem de dentro,
tão de dentro,
como o vento que sopra num deserto.
Que é frio à noite, a céu aberto.
E que queima quando o sol é rei do firmamento.
É a mente mentirosa,
ditadora da ação.
E já vi dores piores que esta de escrever.
De expôr coisas sem nexo,
e ser aplaudido, sempre, sem saber,
se degustaram cada pedaço
do meu escrito desalento.
Se sentiram cada ir e vir da mão,
que desenhou no papel estes rabiscos
que ora contemplam com, ou sem, emoção.
E mesmo emocionados,
quem me garante? que se sentiram melindrados
como quis que se sentissem, ao escrever?
Não faço poemas de risada,
nem poemas de fraternos abraços!
Faço poemas de dor
pois a mente que os escreve é masoquista.
Faço poemas com dissabor,
pois é maior a glória que a conquista.
Faço poemas que caem como neve.
Tão bonita, tão branquinha,
mas quem enregela todo o osso, até ao fundo.
Quero enregelar.
É no fundo, o que quero.
Enregelar.
Pois estou enregelado.