Textos de Guilherme Berjano Valente. Revisão de João N. S. Almeida.
Deixa-me dizer-te Adeus
A noite bate nos vidros do Tivoli e a chuva invade a alma dos futuros espetadores, que aguardam impacientemente o esvaziar da entrada, para se poderem finalmente sentar ao balcão, para conversarem com os seus companheiros e ignorarem o Pobre que toca guitarra num palco iluminado.
Quando o Pobre sai de casa, tenta chamar um táxi, mas os carros nada amarelados e pretos e verdes olham-no com faróis de desprezo. Está vestido com um mar de lágrimas nublosas e passeia-se pela Liberdade. As árvores acompanham-lhe na humidade, mas sentem-se quentes e reconfortadas. Começa ele a vaguear e depara-se com o primeiro sem-abrigo da noite, o de sempre, que está ali para cortar a fita vermelha das três da manhã. O Mesmo pergunta-lhe que esmola tem o Pobre para lhe dar, coisa a que o outro responde, Cordas e Palhetas. Ri-se o que tem saudades de uma cama que não tenha formato de banco de jardim. O Guitarrista oferece-lhe uma moeda de um euro; tão feliz fica o Liberal, pensando que na manhã seguinte rejubilar-se-ia em pão com manteiga, ao almoço e ao jantar, sendo que o pequeno-almoço é moral de quem tem dois euros, e não um; coitado, não sonhava que um carro o poria incapaz de entrar na padaria.
De frente para o rio, o Guitarrista ensaia acordes numa notação menor, com os seus dedos a brincarem ao imagina que estavas de guitarra na mão, enquanto lá atrás os homens do lixo carregam de armas de plástico os seus tanques de batalha; ouve, ainda, ao fundo da outra margem, alguém a cantar: “Que sardinha me trazes/ Oh filha, / Que vida desprezaste/ Maria…”.
Atirou-se à água e saiu sem Alma, só corpo.
Sua mãe dele se despediu no Cemitério de Almada, e, quando tudo parece silencioso, ainda se ouve uma voz a imitar: “…vida…Maria…”.
Bloqueio
Bloqueio
Senta-se, todas as noites, estanque e quebrado, em frente à tela do computador. Não põe uma única palavra no papel. Não o faz. Levanta-se, vai ao frigorífico, aquece o frango no micro-ondas, come-o, bebe café gelado para acompanhar, desliga a luz da cozinha, olha para o relógio e aparecem as três-da-manhã. Não se sente cansado, lembra-se de uma memória agradável, pondera e decide escrever sobre esta.
Senta-se, recordando, em frente à tela do computador. Põe duas palavras e desiste. Decide dormir. Não consegue dormir, porque necessita de escrever. Levanta-se. Vai para a secretária. Senta-se. Levanta-se. Senta-se. Levanta-se.
O Sol fartou-se de esperar e decidiu dar uma chapada de luz na cara do nosso autor.
A sua esposa desce as escadas e ele não a reconhece. Pergunta-lhe:, — Estamos juntos há quanto tempo? Ao que ela responde:, — Vai à merda!
Uns turbilhões de ideias arrancam-lhe o escalpe, pedindo para que sejam passadas a caneta. Corre desenfreadamente, e vai de encontrão de encontro à amada, fazendo com que ela se encharque de café, Estás a gozar comigo? Grita-lhe. Ele não para. Começa a escrever. Que maravilhosa obra lhe está a sair pelos dedos, como se de um arco-íris descesse cada palavra por ele selecionada, são metáforas e hipérboles tão bem talhadas; é um ferreiro que bate cada um dos seus pensamentos até os encaixar de modo majestoso naquele texto. Terminou.
Leu-o. Odiou-o. Atirou-o ao rio. Ficou divorciado.
Senta-se, todas as noites.
Guilherme Valente
Se na minha mão já não puderes agarrar
Se na minha mão já não puderes agarrar, pois sete camadas de terra o meu peito enfrenta,
Levanta-te desse banco, desvia o olhar da lápide, chora compulsivamente, que eu choro compulsivamente,
Preso numa caixa de madeira
E desaparece da minha frente, passeia pelos jardins já nossos,
Colhe as flores que plantámos,
Não te irrites pelo casal de novos se sentar no nosso banco, aprecia-los, como nós dois faríamos aquando ali sentados, nos deparávamos com a idosa que todos os dias ia ao supermercado, comprar uma lata de cerveja,
Para o marido, já há tanto ido,
Sorri, como aquela doce menina nos sorria;
Não olhes as palavras que escrevi, perguntando-te por quais havia de ter escrito, mas lendo-as como se atrás de ti ainda estivesse.
Deita-te na tua cama, leva para aí quem quiseres,
Apenas recorda-te que em tempos foi nossa.
Não sofras infindavelmente, não chores até copos encheres, alegra-te por saberes que fui dormir feliz, pois tua mão me era palpável, naquele momento, sem grãos de terra.