Texto de Tomás Vicente Ferreira. Revisão de João N. S. Almeida. Imagem: Retrato fictício de Orígenes em Vrai pourtraits et vies des homes illustres (1584), do frade franciscano, explorador e cosmógrafo francês André Thevet (1516-1590). Fonte: Wikimedia Commons.
É um grande prazer ter a oportunidade de escrever uma breve recensão ao mais recente livro do Prof. Frei Isidro Lamelas, OFM, que generosamente tem contribuído para esta publicação desde que voltámos ao activo em meados de 2020 (cf. Editorial nº 82) e que infalivelmente nos tem brindado com excelentes e interessantíssimos artigos de sua autoria, marcados pelo rigor de uma erudição profunda (cf. nº 82 e 83, além do presente nº). É, igualmente, essa erudição profunda – diríamos quase enciclopédica, no que toca aos primeiros séculos do Cristianismo – que marca este volume. Diz-se no texto da contracapa do livro:
São muitos e diversificados os manuais de Patrologia ou Teologia patrística publicados noutros países. Faltava, porém, um manual feito e editado em Portugal, a pensar, não apenas nos estudantes de teologia, mas também em todos os interessados pela literatura cristã antiga e seus autores a que chamamos «Padres da Igreja».
Este livro é, pois, um manual universitário de Patrística, pioneiro em Portugal, destinado a suprir uma necessidade escolar que se faz grandemente sentir. De facto, é de assinalar a pouca atenção que, salvo raras execepções, tem sido dada em Portugal, ao nível universitário, aos autores da época dos Padres da Igreja. Falamos suficientemente de Santo Agostinho, mas como se fosse um fenómeno isolado, sem atentar ao facto de que a sua era apenas uma das vozes, porventura não a mais saudável, de um largo universo de escritores. Falamos, depois, dos autores que começam a aparecer a partir do séc. XI (Santo Anselmo de Cantuária!) e, depois, dos grandes escolásticos do século XIII – Tomás de Aquino, Boaventura, Henrique de Gand… – sem pensar no rico património teológico-filosófico a que eles próprios foram beber – ou não fosse essa a finalidade das Sentenças de Pedro Lombardo! Temos sido surdos a esse universo de pensamento diversificado, fértil, tempestuoso e belo que foram os primeiros oito séculos do Cristianismo. Tal é sobremaneira lamentável, tanto mais que essa foi uma parte da idade de ouro da fé de que somos, consciente ou inconscientemente, ainda filhos e que esses autores representam o património comum, inalienável e partilhado, das várias confissões cristãs, sendo que qualquer esforço de diálogo verdadeiramente ecuménico tem obrigatória e felizmente de os ter em conta. Lembremo-nos de que é numa parte desse espaço temporal que se percorre o arco teológico fundamental dos sete concílios ecuménicos, do Concílio de Niceia I (em 325) ao Concílio de Niceia II (em 787). Frei Isidro Lamelas presta, com este volume, um notável contributo para o panorama teológico e filosófico português contemporâneo que, esperamos, possa servir de porta de entrada para estes autores e de alimento para uma mais fecunda discussão.
O livro abre-se, precisamente, com duas citações dos próprios Padres que alertam mais brilhantemente para o que tentei dizer no parágrafo acima. A primeira é dos Stromatas (I,1,3) de Clemente de Alexandria e reza o seguinte: «Nós chamamos “pais” àqueles que nos instruíram, uma vez que a sabedoria é comunicativa e amiga dos homens.» A segunda é de São Gregório Taumaturgo, do seu Discurso de agradecimento a Orígenes (3,21): «Parece-me muito má a ingratidão, indigna e horrível. Efectivamente, quem recebeu um benefício e não tenta pelo menos mostrar-se grato, pelo menos com palavras, ou é insensato ou insensível aos benefícios, ou então carece de memória.» Ambas nos lembram a ligação umbilical que temos para com aqueles que nos formaram intelectual e culturalmente, sendo que a última aponta ainda um diagnóstico sobre os “filhos” que não honram esse vínculo. De facto, olhando em volta para sociedade contemporânea, parece-me que somos culpados dos três pecados que S. Gregório enuncia: tornámo-nos uma civilização de insensatos, insensíveis e amnésicos. Mas, felizmente, não tem de ser forçosamente assim. O livro de Frei Isidro Lamelas relembra-nos poderosamente de que há outro modo de nos relacionarmos com o passado e, através dele, com o presente e o futuro: o caminho da gratidão, da memória e da esperança. Ainda há, felizmente para todos nós, quem dedique a vida a salgar a terra (cf. Mt 5, 13-14) e a lembrar-nos o nosso dever de herdeiros da nossa genealogia cultural.
Quanto ao conteúdo do livro, só posso confessar o quanto aprendi ao lê-lo. Precisamente porque este volume trata de autores que tenho lido menos (este livro abrange os sécs. I-IV, enquanto eu tenho estudado mais os autores dos sécs. VII-IX, no contexto de estudos de mestrado), foi uma experiência pessoal de ‘ressourcement intra-patrístico’ lê-lo. É verdade que o modelo do livro, o do “manual escolar”, pode ser um pouco menos amigo da leitura abrangente e mais propício à consulta localizada, mas o interesse suscitado por estas páginas é omnipresente e a erudição é tão notável quanto rara. Conduz-nos com firmeza, tacto e empatia dos Padres Apostólicos do séc. I e II até chegarmos à “viragem constantiniana” do séc. IV e a essa fascinante personagem que foi Eusébio Pânfilo, ou Eusébio de Cesareia, pai da historiografia cristã e, para o bem ou para o mal, fautor da primeira teologia política cristã, que tão influente foi, a Oriente e a Ocidente.
De facto, esse é um traço notável da escrita e da erudição do autor: a capacidade notável que tem para empatizar com os autores a que nos introduz, sejam eles o simpático e moderado Cipriano de Cartago, o não menos simpático Clemente Alexandrino, o iracundo Tertuliano ou o brilhantíssimo Orígenes (o qual figura proeminentemente na linhagem de Eusébio de Cesareia). Gostaria, precisamente, de salientar as páginas que dedica a Orígenes, o inegável gigante desses séculos. São páginas que se esforçam por salientar “a justiça que falta fazer” ao grande – porventura o maior – escritor de Alexandria. Orígenes, o primeiro grande teólogo, que foi também o primeiro grande (quiçá o maior) exegeta da Sagrada Escritura e que foi torturado na perseguição de Décio e confessou a fé, não foi nunca declarado ou reconhecido como santo – ele que não foi outra coisa senão santo, como afirma David Bentley Hart[i] e o livro de Frei Isidro Lamelas abundantemente mostra – e ainda hoje não é numerado entre os Doutores da Igreja por cuja teologia tanto fez.
Este não é o lugar ideal para dar largas à minha simpatia por Orígenes ou pela doutrina da apokatastasis – que encontra eco em Ireneu de Lyon (e em muitos outros teólogos, anteriores e posteriores)[ii] e com a qual o autor do livro em análise também parece empatizar –, por isso remeto apenas para o breve ensaio de Bentley Hart citado acima aqueles que quiserem um ponto de partida para saber mais sobre o assunto. O facto, no entanto, é que Orígenes[iii] é talvez o teólogo mais injustiçado da história do cristianismo – e ninguém teve tanta culpa no processo como o estultíssimo e antipático imperador Justiniano (482-565). É, por isso, singularmente refrescante ver um erudito e teólogo contemporâneo discutir a obra de Orígenes com tanta candura e sem peias de mostrar admiração.
Infelizmente, não posso aqui abordar detalhadamente o tratamento dado a todos os autores cobertos pelo livro de Frei Isidro Lamelas. Resta-me salientar, além de Orígenes, alguns outros dos momentos altos do livro, que incluem as secções dedicadas a Justino Mártir, Ireneu, Novaciano, Cipriano de Cartago e Tertuliano. Recomendo fortemente este livro a todos os interessados como um bom ponto de partida para estudar, em português, os autores desta época.[iv] Este é um trabalho que será sem dúvida muito útil e que dará decerto muitos e bons frutos, tanto mais que vem a caminho um segundo volume, que cobrirá os autores pós-constantinianos. Termino agradecendo ao Frei Isidro Lamelas a sua dedicação generosa a esta nossa área de interesse comum.
[i] Cf. David Bentley Hart, “Saint Origen”, in First Things, Outubro de 2015: https://www.firstthings.com/article/2015/10/saint-origen (consultado a 16 de Junho de 2021).
[ii] Cf. os trabalhos notáveis da estudiosa Ilaria Ramelli, a começar pelo extenso The Christian Doctrine of Apokatastasis (Leiden: Brill, 2013).
[iii] Outros teólogos singularmente infelizes na sua posteridade e reputação incluem, por exemplo, o interessantíssimo João Escoto Eriúgena (+877) e grande dominicano Meister Eckhart (c.1260-1328).
[iv] Tenho apenas pena que a Universidade Católica Editora não tenha feito uma revisão competente do texto, o que fez com que subsistissem as inevitáveis gralhas.