Poemas, Joana Futre

Textos de Joana Futre. Revisão de João N.S. Almeida.

TEM DIAS

Tem dias em que acredito
Em Deus e todos os seus santinhos,
Nas aparições testemunhadas por pastorinhos,
Na vida e nos seus fenómenos cíclicos,
Nos apóstolos e nos seus versículos bíblicos.
Nas promessas dos fiéis aos anjos da guarda
Que zelosos olham por nós tão cá em baixo.

ARTE

Na baixa de Lisboa,
Sensivelmente a meio da Rua Augusta,
Reparei a caminhar em direção ao famoso arco
Numa loja outrora imponente e robusta,
Cujo letreiro dizia orgulhosamente “ARTE”
E que infelizmente tinha encerrado as portas de vez.

Agora era real.
A cultura moribunda, em fase vegetativa
Tinha entrado em liquidação total,
Sem aviso formal
Nos canais habituais
Utilizados pelos membros do governo.

Não houve sequer registo de uma tentativa
Para endereçar o povo com uma comunicação oficial.

EXERCÍCIO

Exercita os teus demónios
Manda-os fazer o sagrado jogging matinal.
Avisa-os de que são os jokers do baralho,
Faz pouco deles
Mesmo que quebrar o gelo dê trabalho.
Que eles se ponham em bicos de pés,
Se multipliquem e sejas tu versus dez
Numa luta constante e desigual.

E por favor, diz-lhes para não romantizarem
O amor à primeira vista.
Já temos no mundo filmes suficientes
A explorarem essa temática irrealista.

Desejo que os demónios façam gazeta
Dentro da tua bonita cabeça.
Vão antes para a rua protestar de cartaz no ar
Perguntar porque é que o Estado nunca está do lado do artista.

O NOME DAS COISAS

Tentamos passar de rompante pela vida
Sem dar o devido nome às coisas
Até que algo começa a florescer nas nossas entranhas.
Uma espécie de projeto humano, inesperado ou decidido a meias
Que obriga um casal a ir ao registo civil,
E a matar a cabeça para encontrar
Um nome com o qual um ser acabado de nascer
Pode nem sequer vir a simpatizar.

UM BRINDE

Inevitavelmente, brindamos
Ao que ainda temos,
Tanto à generosidade humana
Como aos deuses em que cremos
(Por igual, para não ficarem amuados).

Para evitarmos esquecermos
Que ainda não sabemos
Ressuscitar as almas,
Para que nos possam bater palmas
Quando merecemos e nas ocasiões certas.

O som e o silêncio
São como a mãe e a filha que caminham
De mão dada.
Lembro-me de ti como uma ferida
Que nunca será sarada.
Como aquela de que sinto mais falta
Mas que sei que ainda me guarda

Com o mesmo apreço, a mesma gentileza
Com que se esforçava para remover vestígios de tristeza.
Devo alguns dos melhores pedaços da vida íntima
A quem me ensinou o que era a verdadeira leveza.

Levo o teu espírito na algibeira
E bebo-o quando preciso.
Sabe-me a vinho tinto
Doce com a luz a que te pinto
Sempre que te apresento
A quem te é desconhecido.

LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE

Como prémio de consolação
Gosto de pensar que Témis
Decidiu pôr a venda,
Não por imparcialidade,
Liberdade, igualdade ou fraternidade,
Mas para salvaguardar
A própria felicidade.

Longe da vista, longe do coração,
Pensou ela, orientada pela sabedoria popular.
Julgo que também uma deusa já quis desacreditar
Na irritante canção em que o amor se torna
Quando sai e teima em não regressar.
Na mesma medida.

E agora? Quem vai chegar-se à frente, forte e valente
Para equilibrar os pratos da balança.
Encher os pulmões, com coragem
Soprar os ventos da mudança.
Bem dizia Almada Negreiros
Em tempos mais certeiros:

Se eu fosse cego amava toda a gente.

LEVAR UMA TAMPA

Eu, Isabella Rossellini
Tu, David Lynch.
Eu, a aprender a levar uma tampa
Tu, o intelectual frio e calculista.
Eu, a atriz amargurada, a menina do papá que tanto idealizava
Tu, o realizador e o artista que não amava.
Eu, com o coração nas mãos, profundamente enganada
Tu, a dizeres-me para parar de ir atrás das coisas inúteis
Eu, a dar-me tempo e espaço para apanhar as coisas úteis.
Tu, a dançares e a conheceres outras pessoas na disco(teca)
Eu, a fazer o limbo, a passar debaixo do fio como se fosse da meta.
A pensar no ato heroico, a ambicionar a medalha.
A ler no fundo que o tamanho da expectativa é proporcional ao da falha.
Tu, a levares as tuas pick-up lines, a tua tralha e as pores-me na calha.
Eu, a limpar com brio o reverso da medalha.

SE TUDO FALHAR… DANÇA

Dance like no one is watching
Se tudo falhar, se o chão se quebrar
Dança, meu amor.
Quem o faz seus males espanta
E seus pretendentes encanta.

Abre a pista e dança
Deixa que o álcool te consuma, não importa
Na vida, como nos filmes, a gente edita e corta.
Naqueles que eu faço com elevado grau de minúcia na cabeça
E que jamais terão a honra de passar na televisão
Ou na tela de cinema, pois não se trata de Ginger Rogers
Nem de Fred Astaire, que nervos, que tédio.
I wish you’d look me in the eyes.
Why don’t you love me, why don’t you care?

Desisti de persuadir cientistas
A projetar uma máquina do tempo.
Parou de fazer sentido de momento.
Recuso-me a voltar atrás para corrigir
Uma fração de segundo,
Um ou outro instante de desalento.
Um amor feito de metades
Condenado à nascença de tão desejado
Mas por pura vaidade, malcriado.

Dá-me uma realidade caleidoscópica
Feita de cores infindáveis que aparecem
Simplesmente. À margem da súplica ou do suspense.
Sê fácil de mover, de desvendar
Sê grandioso de ler, como um romance.
Sê rápido de encontrar e de pegar
Descansa em mim, deixa-me ser o teu lar.
Constantemente a rodar, numa ilusão
De permanente equilíbrio
Ao ritmo do bater do coração.

No café mais recôndito do bairro,
Na parte íngreme a que poucos
Se arriscam a ir
Há uma cápsula de retroversão da memória.
Onde o passado é revisto com tempo
Mas o presente jamais será alterado
E terá inevitavelmente uma moral inglória.

Pedem-te para pintar um novo quadro
Contar a mesma história
Mas de outra perspetiva. Porque quando voltas
Dás por ti sentado de frente e não de lado.
Há um ângulo direto e sagrado
Para impedir que o desfecho volte a ser amaldiçoado.

O enredo acontece em espiral
Sem as arestas difíceis da banda desenhada,
Quadrado atrás de quadrado.
Viras o livro ao contrário, mas no presente
O final continua a assumir um contorno indesejado…
Até que cortas a tira aos pedacinhos
Microscópicos, infinitos.

EGO TRIP

Optas por viver com alguém diferente de ti
Para não cederes ao egocentrismo.

Até seres rejeitada por essa pessoa
E conheceres o amor próprio.

Um dia, quando olhares para o relógio
A madrugada terá caras de pessoas conhecidas
Com as quais namoras por serem infinitamente parecidas
À tua.

Fiquei cheia, comentou a lua quando passou por mim.
O coração carrega a verdade como um peso
Desconfortável.
Mas os olhos continuam tapados para aumentar a proporção
De um mal-entendido já considerável.

Para entenderes o sabor da liberdade
Abre o manual de história, estuda a revolução
Onde a perda foi irrisória.
Um grande amor não enfrenta o luxo do esquecimento
Arde sem se ver, na minha e na tua memória.

Moisés, o profeta parte as águas que nem louco
A terra estremece com o poder do seu bastão
Que ecoará pelos séculos fora
Quando chegar a multidão ao ritmo da canção
“Grândola Vila Morena”.

A marchar ao toque da hora
Alumiada pelas tochas do fogo
A gritar, ontem como hoje, “Ele não”.

VITÓRIA

Como é bom ter uma página em branco
Começar a escrever para esperar a ganhar,
Para perceber que o silêncio é de ouro.

Abrir o teu coração e descobrir um tesouro,
Ter a honra de ter ver no pódio
A constatar o fim do desprezo, do ódio.

Quando uma multidão de caras sorridentes
Testemunham o erguer de uma coroa
Á base de folhas de louro que reluz e ecoa,
“Vitória”.

O verde-esperança, do louro
O amarelo tão reluzente que ofusca
Do ouro e por fim o vermelho
Da chama olímpica, do pôr de mil e um sóis.

Da natureza a cantar em uníssono
Quando te vê com brio a bafejar para a medalha
A limpá-la com exaustivamente, com o brio
De quem fez por chegar longe.

De quem apostou tudo
Para não ficar pelo caminho.

Entra a boa nova pela casa
Onde o silêncio é rei
Todos lhe devem algo
Olha a todos com desdém.

Depressa e bem não há quem
Porque demora nove meses um filho a nascer, a aprender
A chorar, a gritar como gente grande
A planos pulmões.

Floresce uma nova vida no útero da mãe
E o pai fica indignado porque também ele queria
Dar vida, colo e alimento a alguém
Ter uma relação de dependência inata
Qual ciência exata
Que não lembra a ninguém.

DOIS VULTOS

Dois vultos a beijarem-se na pintura do muro
Um par de lábios saciados na incerteza do futuro,
Duas sombras a tocarem-se apesar do muro, através do escuro.

Como peças encaixadas no mar agreste do caos
Que divide as fronteiras entre este e oeste.
Empoleiradas nos picos afiados do arame
Que coroa os limites da paciência do ser humano
“Insano, megalómano, profano”. Dizem eles com o dedo apontado
Ao juízo ferido de alguém. Rasgado, deixado ao ar

Mas que sem pontos, jamais irá sarar.
Vai antes esvair-se em sangue, confundir-se com o Mar Vermelho
Ainda que figurativamente. E o seu corpo à tona, às margens, há de vir.
Só aí o puritano que o encontrar,
E tiver a felicidade de noticiar o acontecimento
Irá de novo sorrir
Naquela que será a imagem de marca do século.
Eis o cheque com o dinheiro necessário para o sustento,
Oh baby, it’s a brave new world.

Há quem olhe pela janela e se depare com uma guerra lá fora
Há quem dentro de casa esteja o rapar o prato da sopa agora,
Impingido pela mãe.

ESTICAR A CORDA

Paira lá fora um ar de eterna revolta,
O Governo esticou a corda.
Porque consegue inventar leis para tudo
Mas não há maneira de fazer uma
Que te traga de volta. Para casa, pela porta
De onde saíste não sem antes jurares a pés juntos
Que voltavas para tratares de outros assuntos.

De repente, tu desapareceste e ficaste só. E nós, só ficámos.
Numa sala cheia de pessoas, enfeitada de coroas
De flores. Numa tentativa nobre de embelezar a morte.

Desligaram a luz das estrelas e elas não brilham mais
E as tuas mãos deixaram de ser palpáveis, reais.

Para mal dos meus pecados
Nunca pensei que pertencesses tão cedo
Ao meu catálogo de sonhos inatingíveis, desenhados,
Cuidadosamente engendrados
Por um cérebro que apesar dos seus pensamentos lógicos
Crê em fenómenos cósmicos.

E todas as noites te deseja ver
Se não inteira, então aos pedaços.