Conto de Márcio Luís Lima. Revisão de Lourenço Duarte.
O telemóvel do trabalhador assobiou. Era um toque de notificações. Fez-me recordar a minha velha casa. Há meses que não ouvia esse som. Um assobio simples fazia-me lembrar as notificações do telemóvel da minha mãe. Geralmente eram notícias. Ela recebia notificações de praticamente todos os jornais digitais. Ocasionalmente uma mensagem para relembrar o pagamento em atraso da conta da luz ou da água.
A rua estava cinzenta. O dia começara cedo. Levantei-me às sete e meia da manhã e depois dos afazeres matinais vesti-me. O sol principiara a aquecer o meu rosto quando sai pela portinha vermelha de entrada. Um buraco minúsculo através do qual os meus ombros sofriam dificuldades em atravessar. Bebi um café curto e aproveitei os quinze minutos que me sobraram para fumar um cigarro. Conseguia ser rápido quando não tinha sono. Podia passar a minha vida toda a dormir. Era mais fácil. Não lidava com nenhum problema enquanto dormia. O problema de algumas pessoas é o alcoolismo. Ou drogas. Ou sexo. Ou telemóveis e internet. O meu era a porcaria da preguiça. Havia alturas em que simplesmente não queria acordar. Sentia que a cama me puxava de uma maneira metafisica, como se de um próprio ser se tratasse – um objeto humano de algum modo. Podia ser do calor que emanava. Ou do odor.
— Bom dia, vizinho – disse-me um velho pequeno. Trazia vestido uma camisola horrível. Cores mortas como a palidez da sua cara sem barba. E era larga. Detestava camisolas com aquela costura. Não fazia sentido ter uma camisola larga na cintura. Parecia algo desleixado. Quando conversava com alguém que vestisse uma assim sentia- me enojado.
— Bom dia – retorqui-lhe evitando o seu rosto. Era tão baixo. A altura não era culpa dele. Nem os cabelos grisalhos. Leves como o pelo de rato. Tinha sorte de não estar vento, caso contrário podia jurar que o resto de pelo que lhe restava desaparecia.
— Tem um cigarrinho que me possa facultar? – era o tipo de velho gozão. Não goza com as pessoas, mas é sarcástico. Tem sempre um tom amistoso com um olhar perverso. Os lábios invertiam um sorriso, como se as pontas caíssem com o passar do tempo. As rugas pareciam cicatrizes. Mas não era tão velho assim. Talvez cinquenta, cinquenta e muitos.
— Não. Deixei-os no quarto. – Era mentira. O maço estava no meu bolso esquerdo. Não me apetecia sustentar-lhe os vícios. Não ia à bola com a cara dele. Deviam ver como me olhou quando lhe neguei. Podia jurar que me rasgaria o rosto se fosse feito de papel. Era o único modo que podia imaginar. Para além de baixo era esquelético. Ao contrário de mim que devia pesar cem quilos. Mas não era gordo, a altura compensava. Tinha quase um metro e noventa. Era o tipo de rapaz que por ser o mais novo da família ouvi muitas vezes a piada – eh lá rapaz, quando é que paras de crescer? – e tu quando é que voltas a ter uma ereção? – era o que me apetecia responder a maior parte das vezes. O meu sentido do humor é escasso. Especialmente para membros da família que não se sabiam comportar conforme a distância. Acho sempre que é necessária uma certa proximidade para se criar confiança.
O velho pequeno foi ter com o trabalhador no outro lado da rua, o que recebeu um assobio do seu telemóvel, e pediu-lhe um cigarro.
— Aqui tem. Já dizia um meu velho pai, um pão e um cigarro nunca se recusa a ninguém – E olhou para mim. O filho da mãe tinha visto que o meu maço recheado estava no bolso, mas não teve os tomates para me desmascarar.
No geral, a maior parte dos homens acham que são muito corajosos. Mandam bitaites para o ar, falam alto nos jantares de família e ostentam os tomates por debaixo das calças enquanto os coçam em plena praça pública. Gostam de cuspir para o chão e pensar que arreiam sempre mais do que o conseguem de facto dar. – Esse franganote não aguentava duas estaladas na cara – diziam a emborcar cerveja enquanto a pança crescia, crescia, crescia… e a mulher ao lado, a conversar com outra mulher, ignorando o facto de que ele é um idiota convencido. O homem só se excita quando o Benfica vence, critica- lhe as roupas, o cabelo e prefere masturbar-se no banho ou para o telemóvel a ver miúdas com a idade da filha adolescente. E isto tanto vale para trabalhadores de obras como para os académicos presunçosos com quem convivi diariamente. Os intelectuais até conseguem ser mais porcos que um mero assobio ou um piropo. De um assobio ou piropo não vem mais que o típico encher do peito vaidoso. Se a mulher levanta a saía e lhe diz para fornicar na casa de banho portátil o mais provável é acagaçar-se. Já os tais intelectuais cultivam a hipocrisia. Escrevem extensos artigos sobre a importância do feminismo e da mulher no século XXI, fumam cigarros como se fosse um cachimbo e bebem apenas vinhos importados. Não suportam as mulheres, cultivam apenas a ideia das mulheres lhes bajularem os testículos secos. Manipulam jovens aspirantes a intelectuais e, após a baixa performance egoísta adormecem sonhando com entrevistas a eles próprios nos talk-shows estrangeiros ou em conferências importantíssimas recheados de louvores.
— Tem isqueiro pelo menos, vizinho? – volveu o velhote pequeno. Encostou-se na parede ao meu lado a fumar. – Sabe, devia parar com isto. Já tive um cancro, sabe?
— A sério? – Não fingi importar-me porque estava realmente interessado na história. Talvez tenha sido a primeira vez que realmente lhe olhei nos olhos enquanto lhe dirigia a palavra. Tinha uns olhos azuis fortes. Tristes, como se a pele por debaixo das sobrancelhas também caísse sobre as pálpebras. Todo o seu rosto parecia derreter.
— Sim. Foi uma trabalheira dos diabos. O mais chato foi ter de ir às consultas, tratamentos e essas porcarias sozinho. — Porque é que foi sozinho?
— Então, havia de ir com quem, vizinho? – Estava a tentar colocar a voz de gozão, mas o tom fugiu-lhe para a tristeza. – Não tenho ninguém. A minha mãezinha faleceu uns meses antes. E ainda bem. Não precisava de sofrer mais a ver o filho sofrer. Sabe, já a fiz sofrer muito. Se há coisa de que me arrependo na vida foi fazê-la sofrer. Ao meu pai pouco me importava. Esse canalha afogou-se no próprio vómito depois de me dar um excerto de porrada por me ter apanhado a fumar. Sabe, foi duro… tinha dez anos… não foram as manápulas que me custaram mais, foi a minha mãezinha também ter apanhado. Aquele canalha culpou-a por eu fumar. Achava que não me dava educação. Mas dava, ai isso é que dava, sabe? Tudo o que sei hoje foi por ela… não sei muito, é verdade que não me fiz doutor, como aqui o vizinho, mas também não sou nenhum canalha que bate na mulher… bem, também não tenho mulher… mas podia ter tido… ai isso podia, sabe? Quando era mais novo… esse foi o meu problema… mulheres… – Senti-me um idiota por não lhe ter dado a merda do cigarro. Devia ter-lhe dado o resto do maço. Sou muito emotivo, especialmente em histórias familiares. Não via a minha mãe há meses. A minha irmã ligava-me de vez a vez, falava um pouco com ela, mas não era a mesma coisa. Pelo menos não estava sozinha. Eu estava.
—Foi onde?
—Aonde o quê? – perguntou-me atordoado.
— O cancro. – respondi-lhe entregando-lhe o fio à meada da conversa para algo ironicamente mais leve.
— Ah! Oh, nos pulmões… – e baixou a cabeça como uma criança arrependida. Aquela atitude de quem está ou esteve a fazer asneiras nas redondezas do tempo recente e sabe-o, mas não consegue evitar.
— E você continua a fumar, homem?
— Não, vizinho. Só quando cravo.
— Os médicos não o proibiram?
— E eles não nos proíbem de tudo? Veja lá, agora é só porcaria de modernices…é leite de soja, tretas vegetarianas ou veganas ou lá o que é, só carnes brancas… até a porcaria dos cigarros. Agora andam todos a fumar aquelas canetas estranhas porque dizem que não dá cancro, sabe? – Ele referia-se ao tabaco aquecido. Também pouco compreendia dessa moda. Pelos vistos colocavam algo que se assemelhava a uma beata finíssima, asseada e branca numa caneta oca. Carregavam num botão e aquecia a beata sem inceneração. Alguns fumavam pela menta, outros pela moda… e claro, alguns pelas raparigas loiras que faziam publicidade mesa a mesa nas esplanadas, dias e dias seguidos. Todas loiras, batom vermelho, encaixilhadas em cabedal preto e transmitindo a possibilidade de um encontro para o menino que trocasse os seus cigarros cancerígenos pelo aparelho moderno e duvidoso quanto ao cancro. – Até agora ninguém ficou com cancro de pulmão por fumar isto – disse-me uma vez um amigo. Um rapaz intelectualíssimo, mas às vezes conseguia ser estúpido como o caraças. Especialmente quando envolvia raparigas.
— Lá nisso tem razão. Não atino com esses cigarros digitais.
— HAHAHA! Essa é boa vizinho, cigarros digitais – Estranhei o sentido de humor dele, mas mais uma vez podia ser o seu sarcasmo.
— Mas tem de ter cuidado com a saúde. Não tem medo que lhe aconteça alguma coisa? – Era possível que o meu tom fosse condescendente, mas não era essa a minha intenção. Estava realmente preocupado com o bem-estar dele. Não é normal preocupar- me com ninguém. Em parte porque não tenho ninguém perto de mim para me preocupar. Talvez fosse por isso que me preocupei. Carência de preocupação.
— Medo de quê? Bater as botas? Não serei o primeiro nem o último… – Pela primeira vez parecia estar a falar a sério.
Voltei a lembrar-me da minha mãe. Com a Lúcia para ajudá-la. Não era má rapariga, a Lúcia, mas tinha um sentido de responsabilidade que podia chegar ao bruto. Era a irmã mais velha e desde cedo assumiu cargos familiares. Estava habituada a cuidar da família. Com a mãe era diferente, mas para a Lúcia era tudo o mesmo. Criar os pirralhos dos irmãos, ou os filhos fedorentos, o marido alcoólatra ou a velha mãe… conduzia tudo com o mesmo par de mãos. Passiva-agressiva. Erguia a voz com alguma arrogância porque sabia sempre tudo. E sabia mesmo, a rapariga! Era inacreditável como é que sabia tanta coisa com tanto para fazer. Mas a pobre mãe soube sempre mais que ela, ainda que a Lúcia nunca admitisse. Temia que sofresse um pouco. Não por maus-tratos. Longe da irmãzinha levantar uma mão a quem quer que fosse. Mas psicologicamente a Lúcia era brava. As coisas tinham de se endireitar à pancada virtual. – recompõe-te pá! – era o seu conselho de algibeira. Uma especialidade. Nunca vi aquela mulher a chorar. Já a mãe era diferente. Mais mole. Gostava de afeto.
— Sim, sente medo de morrer? – perguntei-lhe sem conseguir percecionar uma resposta. O velho pequeno e previsível tornou-se num pequeno vulto sombrio. A própria voz pareceu escurecer, juntamente com a luz matinal obstruída por uma nuvem negra.
— Não. Já vivi demasiado. – Deixou o resto do cigarro cair e olhou-me. Os olhos azuis estavam cada vez mais intensos. A luz do sol voltou e pareceu aquecer a cor do seu olhar, como se vivificasse uma crença na mortandade por vir. O dia acordou e pôs aquela personagem ali, eis um homem sem medo de morrer. – Deveria ter? Ouça, eu desperdicei a minha vida. Estraguei tudo. Fiz coisas das quais já não posso voltar atrás.
Senti que o devia interromper. Pareceu-me uma conversa demasiado íntima para se ter com um vizinho que nunca passou para além da tentativa de cravar um cigarro.
O homem das obras parou o que estava a fazer para ver o telemóvel que voltou a assobiar. Lembrei-me de novo da minha mãe. Só espero que não se sinta assim tão miserável. Que a senhora tenha medo de morrer até ao momento da própria morte. Se noutra cidade a minha mãe estivesse a comprar meio quilo de arroz na mercearia local e a desabafar assim com algum cliente na fila… eu tinha medo disso. E tinha medo de morrer. Mas aqueles olhos azuis, cada vez mais penetrantes, absorviam-me. Terei mesmo medo de morrer? Só posso ter… se tenho medo de que a minha mãe não tenha medo então parece-me lógico que eu tenha medo, não é? Em que raios estou eu a pensar? O homem das obras começou a rir para o telemóvel e berrou:
— Oh, Serafim! Anda cá ver isto! Olha-me esta merda. – E apontava para o telemóvel ainda que o Serafim não estivesse nas redondezas da vista.
— Não vou descer agora, o que é?
— Tens de ver, pá! Não dá p’ra contar assim, né?
— Rais t’partam!
O Serafim desceu, com a pança a sair-lhe pelo polo amarelo sujo com cimento e tinta branca. Uma pança branca como cal. Vinha a bater um maço de tabaco de Ventil. As calças traziam um cinto de couro muito brilhante. Brilhava mais que tudo naquele homem, parecia até que estava ali errado. Provavelmente era novo. Tinha a barba feita. Era um homem de barba feita como o outro sem nome e como o velho pequeno. Os homens daquela geração insistem no desfazer a barba diariamente. Nunca entendi o porquê. Para eles os pelos faciais eram sinal de desleixe, mas a pança a cair pelo polo amarelo abaixo era sinal de boa bucha. Oh, Serafim, por favor ri-te alto e chama-nos para ir ver essa porcaria na mão do teu colega. Tira-me desta conversa. Mas o Serafim riu baixo e deu uma pequena chapada com as costas da mão direita no ombro esquerdo do outro. Tirou um cigarro e acendeu. Nem sequer olhou para nós. Não viste estes olhos, Serafim. Arrepiavas-te se os visses. Eu senti cada pedaço do meu corpo arrepiado. Porque é que estás a falar comigo, pá?! Desaparece, velho maluco. Cada vez sinto-me mais deprimido, mais intoxicado. Até me deu vontade de deitar o resto de tabaco ao lixo e parar de fumar. De vez. A alegria que a mãezinha iria sentir. O orgulho… sempre que me vê a fumar relembra-me de uma velha promessa que lhe fiz – um dia paro, prometo mãe! – mas ainda não parei. Talvez satisfaça essa promessa, mas promete-me que terás medo de morrer, mãe.
— Mulheres, não é? Acho que foi o que percebi há pouco – Tentei amenizar a conversa. Apagando o meu cigarro pensando na possibilidade de que seria o último e simultaneamente que aqueles arrepios me obrigariam a mais uma dúzia deles.
— É! Mulheres… quando somos novos, como o vizinho, a vida é um mar de rosas. A sério! Eu tinha tudo, sabe? Já fui alguém, já tive medo de morrer, quando a minha mãe ainda era viva. Nunca a quis fazer sofrer, mas de cada vez que a fazia… sabe? É aí que um homem percebe que não vale nada. No início era só o início. Pequeninos erros. Uma pessoa não era de ferro. Havia as mulheres a tentarem. E depois temos sempre aquele vício de que a galinha do vizinho dá sempre melhores ovos, sabe?
Ri-me com o ditado popular, mas senti que devia pedir desculpa – desculpe-me, mas teve piada… ao tempo que não ouvia essa expressão.
— É, pode rir, vizinho. A última vez que a ouvi também foi há muito tempo. A minha mãe estava a dizê-lo ao meu pai e depois ele enfiou com duas chibatadas na cara dela. E ela tinha uma cara tão bonita, sabe? É a cara de mãe, todas têm a mesma cara. Muito bonitas quando sorriem. Mas aquele animal… oh vizinho, mas você devia ter visto os ovos do vizinho… sabe, estava sempre nessas atafulhadas improvisadas. Conhecia uma rapariga e o que me dava ganas era engajá-la, sabe? Aquela dança da “inocência” – e fez gestos de aspas com as mãos – O engate. Depois de conseguir perdia a piada da coisa. Era sempre o mesmo. A rapariga queria sempre mais do que eu lhe podia dar. No engate é tudo ilusões. O amigo vizinho dê-me um segundo, por favor.
Atravessou a estrada e cumprimentou o Serafim como um camarada conhecido. Não de longa data, mas de alguém habitual.
— Oh, meu velho, quer um cigarrinho, né? ‘Tá a ver se lhe arrancam o outro pulmão, malandro? – E ria-se a par do velho. Um espetáculo sádico depois de tudo o que ouvi. Só quis ligar à minha mãe o mais rápido possível. Liguei antes para a Lúcia porque a chamada era mais rápida. A irmã era de poucas falas, despachava-me em dois segundos que era o tempo do velho voltar.
— Dois, é também para o meu vizinho ali. Um doutor também precisa de fumar, não é? – E riram-se novamente. O velho foi simpático e o Serafim também. Trouxe-me um cigarro. O Serafim cedeu dois e senti-me ainda mais idiota por ter o maço no meu bolso. O outro olhava para mim como um canalha porque sabia. Tocou no ombro do Serafim e depois este também olhou para mim do mesmo modo. Canalhas. Otários. Sabem lá o que é aturar velhos. Venham vocês para aqui falar com o gajo e eu arrasto a massa. Fiquei mais uns segundos com o telemóvel na orelha para ver se a Lúcia atendia. Mas porque é que este velho insiste em chamar-me doutor, será que me está a confundir?
— Aqui tem, vizinho.
— Não era preciso – E não era mesmo.
— Ora essa, doutor…
— Eu não sou…
— Onde é que eu ia? – E interrompeu-me a própria interrupção. Entretanto pousei o telemóvel. A Lúcia não atendeu. Se calhar foi levar os fedorentos à escola. Os miúdos não me agradavam. Nem os velhos. Nem os homens. E poucas mulheres me agradavam. A minha mãe era a única pessoa que me agrava naquele momento. Senti que lhe devia ligar, mas não quis ser indelicado para o velho pequeno.
— Estava a dizer que…
— Ah, sim! As mulheres… é a velha história, vizinho. Meti-me com quem não devia, estando com quem devia. Enfim, uma trapalhada. Nenhuma ficou comigo e a minha mãe ia ficando cada vez mais desiludida. Que se lixem as mulheres, dessas há muitas. Agora para mim nem tantas, mas havia muitas, sabe? O problema era a minha mãezinha. Estava sempre a alertar-me para atinar. Depois os cigarros. A bebida… não pense que sou bêbedo, vizinho, não sou. Isso era o meu pai. Eu gosto dos meus copos, mas não me perco por eles.
Já não tentei dizer mais nada. Limitei-me a fumar evitando os olhares fulminantes do Serafim e do outro. O telemóvel dele continuava a assobiar. Cala essa merda, pá! Apetecia-me apagar-lhe o cigarro na testa e de seguida partir-lhe a porcaria do telemóvel no alcatrão. Mas a culpa era minha, eu é que fui um idiota. Ele sabia-o. Mas é mesmo necessário apontar para um idiota? Dizer-lhe – és um idiota, camarada, sabes? – ele sabia, maior parte das vezes. Se tiveres os nervos de nomear o idiota não passas de um idiota. Tendem a reconhecer-se mutuamente.
— Mas tudo isto é uma chatice. Já não há respeito – Continuou, mas agora num tom pachorrento e melancólico – não há respeito, sabe? Enganei algumas mulheres, mas nunca lhes faltei ao respeito. Fui-lhes sincero. Quando queria sair, saía. Não lhes pedi para ficar. Também não ficavam. A pinga entortou-me a vista e cada uma era pior que a outra, trocava sempre para pior. Eram as manhas, o vizinho sabe. Empinavam o cu e as mamas. Pintavam os beiços… enfim.
Ia acenando com a cabeça para não se sentir a falar para a parede. Parecia estar a perder o fôlego, ou atrasado para alguma coisa. Olhava para o pulso a tentar ver as horas, mas não tinha relógio.
— Oh, não há respeito. O vizinho é um rapaz novo, mas parece ser respeitador. Isso é uma ótima qualidade. Podem tirar-me tudo, acusar-me de tudo, mas nunca faltei ao respeito a ninguém. Sabe o que é? Depois do cancro e da minha mãe falecer tive de vender muita coisa… não herdei muito, mas também não trabalho muito. Salto daqui para ali. A única coisa que me sobrou foi um relógio que a minha mãezinha me ofereceu no dia em que fiz o crisma. Ela juntou os tostões todos às escondidas do seboso do meu pai e ofereceu-me embrulhado na saca do pão. Foi um gesto muito bonito. E não estou habituado a gestos bonitos. Foi a melhor coisa que alguma vez tive. Nunca me desfiz dele. Fazia-me lembrar o quão bonita ela estava naquele dia, na igreja. O vizinho havia de ver o sorriso humilde e sincero com que ela me entregou aquilo. Usei-o todos os dias durante o tratamento, sentia-me mais perto dela… mas sabe, aí há coisa de duas semanas uns canalhas assaltaram-me. Tinha pouco mais de dois euros, e… – O velhote começou a lacrimejar. O azul inundou-se com uma maré de sal. Pesa mais ver um adulto a chorar. Especialmente porque os adultos rara vez choram, lacrimejam, e essa porcaria dói mais. Sentimos uma certa dor que nos faz lembrar das nossas próprias dores. – e… não têm respeito. Roubaram-me o relógio. Tentei-lhes explicar que não valia nada. Que era um presente da minha mãe falecida. Mas não há respeito. Deram-me duas chapadas e levaram-me o relógio. Pura maldade. Nem levaram os dois euros.
Não aguentei. Não podia aguentar mais. Caíram-me duas lágrimas. O velhote não se apercebeu e fui rápido a limpá-las. Continuava a fumar vagarosamente.
— O vizinho sabe, isto pode acontecer a qualquer um. Num dia somos alguém e passa uma noite de copos e… não há respeito. Pode acordar sem ninguém. Sendo ninguém. Temos tudo, a vida é uma boa vida, mas… E sabe, quando não há ninguém pouco mais somos, não é? É por isso que não tenho medo de morrer. Se a minha mãe fosse viva, talvez. Agora nem a porcaria do relógio tenho.
Estiquei a minha mão direita com cuidado para não sujar o velho pequeno com cinza e apertei-lhe carinhosamente o ombro esquerdo. Desejei-lhe as melhoras e dei-lhe os meus pêsames pelo falecimento da sua mãe. Senti um aperto no peito enorme quando pronunciei a palavra mãe: m-ã-e. Mãe. Há quanto tempo não diria eu a palavra mãe? Senti a voz a retrai-se. A garganta secou por não ter dito nada e estar a engolir lágrimas.
O velhote desceu a rua e eu voltei para dentro de casa. Antes voltei as costas e olhei para o Serafim e para o outro e berrei – obrigado pelo cigarro, camarada!
— Canalha – podia jurar que foi isso que ouvi como resposta, mas não tentei compreender melhor.
Quando comecei a subir os degraus olhei o ecrã do telemóvel para ver as notificações que tinha. Parecia falta de respeito estar a olhar a meio da conversa. Quando se está de pé a falar com outra pessoa acho rude sacar do telemóvel como um revolver e pôr-me para ali a fazer scroll.
Duas chamadas não atendidas da Lúcia. Ainda apanhei a terceira a tempo de atender.
— Ora bom dia, maninha! – senti-me mais aliviado por estar a ouvir uma voz familiar, ainda que fosse a voz grossa da minha irmã mais velha. Senti-me mais perto de casa, da minha mãe.
— Precisas de vir o mais depressa possível para aqui – Na voz dela havia algo húmido, como lágrimas.
— O que se passa, Lúcia? – assim que pronunciei o nome dela ouvi um soluço seguido de choro.
— Lúcia! – Ela não respondia – Lúcia, por favor diz-me alguma coisa! — Por favor, despacha-te!
— Lúcia! Lúcia!