Texto de Lourenço Duarte. Revisão de Tomás Vicente Ferreira e João N. S. Almeida. Imagem: Christus in de storm op het meer van Genesareth (Mattheus 8:23-25) (Christ in the Storm on the Sea of Galilee), Rembrandt van Rijn, 1633.
“Eu amo o Longe”
– José Régio
A pergunta que leva à redação do presente texto é central na narrativa do pensamento que a ela tentará responder: “Quem sou?”. O caráter identitário da questão parece definir o próprio ente que a formula, na medida em que este exercerá sobre si uma atitude consciente, não só acerca da constatação de existir enquanto algo, mas também sobre como definir esse algo.
Então, quem sou? Aparentemente, posso comprová-lo pela memória, por eventos passados, fenómenos ontológicos coexistentes que, na medida em que interagem de algum modo com o meu ser, criam o conceito pelo qual me penso. Uma das possíveis respostas, então, pode ser: “Eu sou aquilo de que me lembro”. Será esta válida? Porventura. Num patamar mais profundo, emergem dúvidas relacionadas com a aceitação única desta hipótese. Realmente, do ponto de vista metafísico, a experiência fenoménica pretérita pela qual guio a construção da minha identidade parece não duvidar da adequação do intelecto ao objeto na procura da verdade/realidade (adaequatio intellectusad rem). Mas, como observado na proposta de Kant, o conhecimento do fenómeno concebe-se enquanto perceção do objeto, aliado a condições prévias que já moldam, em
si, o próprio conhecimento. Logo, torna-se impossível relacionarmo-nos com a coisa em si, o noumena, mas apenas com a perceção “aparente” dessa mesma coisa, para o autor. Retomemos agora a questão inicial: apenas podemos negar a suficiência da resposta “sou aquilo de que me lembro”. De facto, a proposta tradicional de metafísica, vigente desde a Antiguidade, tem sido a de atribuir ao fenómeno a verdade da coisa em si. Assim sendo, imputar uma identidade ao sujeito com base na rememoração de experiências passadas parece ser ilusório, ou pelo menos limitado. Mas não por isso desnecessário. De facto, é através da dinâmica, da cinesia, do movimento que o ente adquire o seu património afetivo. Porquê?
Toda a ação exige, no mínimo, amplitude entre um ponto e outro. A viagem percorrida é a distância que separa o sítio de que se parte do sítio a que se chega. No presente texto, pretendo defender este fluxo como aquele que confere uma teleologia ao ser, e por isso uma finalidade. Mais tarde, veremos como a identidade surge enquanto consequência da teleologia satisfeita.
I
A Odisseia é o grande poema do nostos. O regresso triunfante do herói a casa, superada tanta provação. Mas quem regressa realmente? Será Ulisses, o mesmo que partiu? Ficará algo de nós, por exemplo nas fotografias do soldado que deixa o lar para trás, e que com muito esforço reconhece aquando da sua chegada? É acerca da possível mutação ao nível da identidade de quem sofre o fenómeno da viagem que este capítulo se pretende debruçar sobre. Afinal de contas, o ser que se pensa a si mesmo tem como pré-requisito (algo que já ficou estabelecido) uma rememoração de eventos passados, pelo menos por enquanto.
O motivo da viagem é o dos mais elevados: a procura da fama, da honra, da excelência (kléos, aretê), porventura, no mundo bélico de Homero, a única possibilidade de ascensão ontológica do mortal a um patamar que excede e abdica dessa mesma condição. Neste ponto, recordemos a decisão de Aquiles, na guerra de Ílion, quando decide trocar uma vida pacata e longeva pela morte rápida e famosa daqueles que aspiram aos céus. Independentemente da ética que pressupõe a atuação bélica, fica-nos a perceção de que o humano tende para o Infinito, e de que, se este Infinito adquire a forma olímpica das barbas e da luminosidade, serve apenas como meio a ser vencido pelos frágeis mas ousados mortais. De facto, todo o universo de deuses gregos e suas representações parece subsistir apenas enquanto ferramenta de enobrecimento da própria figura humana, que os consegue comover, persuadir e surpreender: o Homem é central. A imagem do ente fisicamente perecível nada possui de frágil, visto ser esta cessação ontológica voluntária a que confere glória, e a que promete ao nome a resistência sobre os temíveis ponteiros do tempo.
Retornando à figura da viagem, interessa neste ponto compreender a idiossincrasia do navegante, do forasteiro. Se eu sou aquilo de que me lembro, quem serei após determinados eventos? Admitimos uma continuidade de ruturas, no tecido identitário individual, em prol da constante renovação do ser que à experiência se submete? Parece que sim. Ao contrário do poema de Álvaro de Campos: “Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!”, o fenoménico pretérito não permite o mesmo grau de especulação, na medida em que é percebido pelo sujeito cognoscente de uma forma, a de como parece ter acontecido, mesmo que influenciado pelas condições prévias de Kant acima mencionadas. Se eu abandono o meu lar, levo comigo na bagagem a pessoa que sou, algo ao nível do inconsciente, mas que me define: a minha personalidade e suas caraterísticas. E ao retornar trarei também comigo, não as experiências por que passei, mas a pessoa que sou resultante dessas mesmas experiências. O facto inalterável de ter tomado determinadas decisões e de como isso me alterou. Porque a vida é composta de decisões, o que anima o ser é essa mesma liberdade: a possibilidade de fazer isto ou aquilo… Porque liberdade é movimento – o ser inerte não decide nada – e tal dinâmica constante de energia que pensa, e atua, modifica a ordem do universo. Adquire, na sua essência, a própria razão de todas as coisas: O Ser em Agitação. Qualquer ato que possa ser considerado como predicado, qualquer que possamos associar à qualidade do ente, emite calor, possui uma certa disposição para o impulso, para o ímpeto, para a vitalidade. Mesmo eu, ao escrever este trabalho, emito determinados estímulos fruto do bulício ontológico em que sempre me encontro, e estou a decidir através da cinesia sobre isto ou aquilo. E a beleza universal das coisas advém exatamente disto, da harmonia entre fluxos que atravessam tudo o que vive, do entusiasmo e do ardor com que não permitimos perecer a eterna criança que pulsa dentro de nós, criança curiosa e aventureira de descobrir mais, de nutrir amizade pelo voo das aves e pela voz de uma mãe. A metamorfose que a eterna viagem produz é constante, pois paralelo ao ato de viver coabitam inúmeras viagens que são as pequenas decisões do quotidiano.
E daqui decorre que Odisseu não poderá nunca retornar ao lar na qualidade do mesmo ente que partiu, visto ter também ele sofrido tais metamorfoses. A capacidade de autorreflexão parece subsistir como a única forma do eu se visitar de forma mais ou menos coerente, na medida em que projeta sobre os outros eus – em constante mudança – uma luz que emerge de alguma instância mais básica e atómica. Da sua essência. E este cogitoé efetivo: quantas vezes não ouvimos a questão: “o que fizeste da tua vida?”, esquecendo embora a pergunta real “o que é que a vida fez de ti?”. O instante tão efémero perante um homem com ganas de agarrar o Infinito.
E aqui entra a figura do poeta, o artesão que molda pela linguagem a lembrança do Momento, que nega a temporalidade da vida pela eternização do Instante. Nem por acaso, lemos em Camões: “Sôbolos rios que vão/ por Babilónia me achei,/ Onde sentado chorei/ as lembranças de Sião/ e quanto nelas passei”.
Antes de redigir este texto, fiz prometer a mim mesmo que me iria abster de apreciações estéticas a qualquer poema que aqui introduzisse. E embora me considere um homem de palavra, vou quebrar a regra apenas para elogiar este poema de Camões: a vida equiparada ao rio que passa, o fluxo eterno e constante; e do outro lado o Homem, a memória vívida mas fugaz, o cheiro da pessoa que se vai esquecendo, uma cantiga de infância então perdida nos confins do mundo… Talvez por isso pensemos sempre Proust nestas situações, posto que estar vivo é perseguir e partir em busca de algum tempo perdido. Afirmo: o ser eterno é o ser que se debruça sobre uma memória, e nela habita como se nada mais. Haverá algo de nós que, num momento «proustiano», não fique anexado a esse momento? Retornarei eu de uma forte lembrança exatamente com os mesmos kilogramas com que primeiramente a visitei?
Afigura-se-me que não, que para trás deixo pequenos fragmentos da minha existência, e que de algum modo sobrevive, ora dentro de mim, ora lá fora, essa pessoa que fui abraçada à pessoa que sou. O poeta renega, então, à temporalidade das coisas através da rememoração, posto que todos nós somos de algum modo poetas. E talvez também por isso ame o poeta a Natureza: a sua ramififcação irregular e forte, a garantia quase maternal de que a lua irá sempre nascer…
Não é por acaso que Milan Kundera dá o título ao seu mais famoso livro A InsustentávelLeveza do Ser, e não é também por acaso que Ulisses regressa a casa. É que, entre a insustentabilidade trágica do ontose a sede de transcendência e imortalidade, há um barco que nos espera e uma vontade enorme de partir.
E de regressar! Toda a viagem épica do nosso herói consiste na valorização da chegada posterior através da ausência anterior. Odisseu volta quase um deus, aguardado há tanto por sua mulher e filho, e no fim o único que o reconhece é efetivamente o cão, Argos. Mais uma vez, a inabalável Natureza na sua harmonia com a mortalidade. E se, ao longo da Odisseia, o herói não perece, nem sobre ele decidem desfavoravelmente os grandes lá do Olimpo, é porque ainda cabe ao ser a reunião. O motor de esperança que o mantém vivo é a exaltação do lar, esse seio embrionário de onde nascem as famílias, e pela possibilidade de concluir o tal movimento de retorno (mecânica necessária à satisfação do nostos), Ulisses lutará.
Impera agora a questão: Mas quem serão estas pessoas que o aguardam? Ora, dão pelo nome de Penélope e Telémaco, respetivamente mulher e filho, os agentes teleológicos da nostalgia. Mas serão realmente quem o espera? Afirmo que não. Quem o espera não são estes entes individuais e pensantes, mas de algum modo vestígios do que Odisseu foi antes de partir. A nostalgia que o agita não é a de retornar às pessoas que ama, mas ao eu
de que se lembra e de quem tanta saudade sente.
A mudança impera tão trágica como necessária, e se por um lado pulsa em nós a ânsia de Infinito, pelo movimento, por outro eternizamos momentos que possam exatamente tornar-nos infinitos, ou menos finitos. Ulisses é um momento: não o atual, que regressa numa embarcação dos Feaces, mas o que ficou à espera na pessoa de Penélope e Telémaco. E a reunião do eu presente com o eu passado nunca é fácil. De facto, imagino- o, certa noite de insónia, deitado na cama ao lado de sua mulher, a murmurar: «Sabes? Acho que me apetece voltar…».
II
Até agora, fica-nos a sensação do efémero em todas as coisas, a ideia de que nada permanece realmente como era. A mutabilidade observável é deveras trágica, e queremos também a isso tentar dar uma resposta neste trabalho. Subsiste algo de imutável no interior do ente? Veremos.
Antígona, uma das peças mais formidáveis de sempre, aborda a questão que para nós parece central quanto à ideia de um continuum entre o ontológico e qualquer patamar que o antecede e precede. É a questão da ética. A proibição de Antígona enterrar o corpo de seu irmão, pelo édito de Creonte, é para esta inútil quando equiparada aos «éditos» divinos. A consciência de “(…) preceitos, não escritos, mas imutáveis dos deuses(…)”1 é reveladora de uma pré-existência, na medida em que excede a própria vida observável. Antígona não adquiriu esta consciência da sua experiência ontológica, visto que o tirano, Creonte, não a possui. Não. A inscrição das leis silenciosas, mas atuantes, no ser, tem uma profundidade que excede em muito a perceção humana. De facto, o teor ético- heróico com que a personagem age leva-nos a constatar a sua indiferença perante a posível cessação ontológica, mas nunca perante o desrespeito ético. Possuir a hybrisparece indicar uma morte qualitativamente maior do que não agir segundo a conduta de Bem, pois imagina-se algum tribunal posterior à vida onde toda a ordem é restabelecida. Portanto, o desejo da nossa heroína contempla a pressuposição belíssima de duas noções: a primeira, de que a vida não acaba quando morremos nem começa quando nascemos, mas flui sob a égide de uma ideia de retribuição, doação e generosidade gravada na memória «pré-ontológica», memória essa que uma má conduta em vida pode olvidar (algo muito semelhante ao pensamento platónico); e em segundo lugar, que o ser humano existe alinhado com esta harmonia cósmica de benevolência, uma motriz criadora que concede individuações ontológicas e a criação de Partes do Todo, um espírito de legar componentes da Unidade em pequenos e múliplos fragmentos. Ora, tal conceção produz, ao ser vivo, a contratualização de uma dívida. O ser que se individua submete-se ao berço de que se separou, e nesse sentido sofreu a possibilidade de ser livre mas sempre segundo uma única lei básica: a da oferta. Este foi oferecido, foi doado, e nesse sentido agir contra tal doação (causar a morte de outro, por exemplo) seria uma profunda contradição. Logo, o nome que se dá ao respeito e obediência que a Parte deve ter para com as restantes Partes de um Todo parece ser esta ética. E haverá conceção mais bela e sublime do que esta?
Que movimento existe, então, quando pensamos na conduta de Antígona? Ora, novamente o de retorno. A saudade que o ente possui quando se viu separado das partes (o irmão morto, por exemplo), e que a estas pretende retornar. A nostalgia enquanto álgosdo nostos, a dor do reencontro. Mais uma vez, a ideia sobrevive de um patamar anterior ao mundo, ao fenoménico, e do ser que se individua para depois poder retornar, como se de uma Ítaca embrionária se tratasse.
III
“The intellect of man is forced to choose
perfection of the life, or of the work,
And if it take the second must refuse
A heavenly mansion, raging in the dark.
When all that story’s finished, what’s the news?
In luck or out the toil has left its mark:
That old perplexity an empty purse,
Or the day’s vanity, the night’s remorse.”
Este poema, de William Butler Yeats, exprime na perfeição aquilo que é a experiência ontológica: a necessidade de decisão. O imperativo de escolher, ora a perfeição do trabalho, ora da vida. Mas o que de mais genial o poeta produz é a questão: o que interessa? Parece que, no fim de contas, a decisão foi feita, mesmo que o agente nada tenha feito para tal. E daqui decorre somente que viver subjaz potências em constante dialética, que nada nesta esfera permanece inerte, posto que mesmo a inércia é movida por algo maior. Novamente, a tragicidade do efémero sobressai perante o tão fugaz instante que logo passa, e do qual pouco podemos fazer. Qual é a resposta, então, para esta incongruência que une o ser fugidio à presença constante do universo?
Para Hölderlin, a resposta parece estar na contemplação da Natureza. Mais: da união do ser ao eterno através desta. Deus sive natura através do qual mesmo o ser humano, com todas as suas caraterísticas, se integra neste todo naturado e, por sua vez, porventura naturante. Para o poeta, “a poesia (arte), ao contrário, por seu «sentido estético», partilha do condão da origem, da doação da origem, portanto, seus juízos são intuições intelectuais do próprio ser [Seynschlechthin].”2.
Como lemos no poema “Tal Como Num Dia de Festa…”, ou em alemão “Wie Wenn Am Feiertage…”:
(…) Porém a nós compete-nos, ó poetas, permanecer
De cabeça descoberta enquanto passam as trovoadas de Deus,
Segurar nas próprias mãos o próprio raio vindo do Pai
E entregar ao povo, oculta no canto,
A dádiva divina.(…)3
Este poema, além de belíssimo, legitima o papel do poeta como uma espécie de intermediário entre Deus e a humanidade, quase como o mensageiro Hermes. A ponte estabelecida entre as leis dos Deuses e as preces dos homens cabe ao poeta construir através do seu canto. Esta ideia, muito decalcada do mundo grego antigo, lembra a figura do aedo que, inspirada pela Musa ou mesmo por Apolo, cantava os feitos humanos com que até os Deuses se emocionavam.
A contemplação da Natureza está patente, também neste poema, mas umas estrofes atrás, onde lemos:
(…) A poderosa, a divinamente bela natureza.
Por isso quando ela parece dormir em algumas épocas do ano
No céu ou entre as plantas e os povos,
O rosto dos poetas também se entristece (…)4
E esta contemplação da natureza parece celebrar uma unidade entre o poeta e ela; entre o humano e ela; entre ela e deus; e portanto entre o homem (e o poeta) e deus. Relembramos aqui o cão Argos que, reconhecendo seu velho dono, expressa felicidade e de seguida perece. Esta morte do animal parece ser também a morte do antigo Ulisses, o que ainda não partira, e uma união pela purificação do eu passado com o eu retornado. Assim como na natureza, onde a árvore morta serve de adubo à árvore seguinte. De facto, uma unidade entre o natural e o humano parecia, para o poeta, ter-se perdido desde o tempo de Píndaro e desde o mundo helenístico, e assim como o cão Argos fareja o dono quando mais ninguém o reconhece, talvez também a natureza nos acolha no seu seio verdejante quando já mesmo nós nos tornarmos irreconhecíveis perante a criança que fomos. E com isto parece estar respondida a questão da incongruência entre a mortalidade do ser e a possibilidade de Infinito que este almeja: é que o Tempo, segundo uma perspetiva de doação e de ética, parece servir apenas como ilusão.
1 SÓFOCLES. Antígona. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018. Pp. 34. Impresso.
2 MEES, Leonardo.Hölderlin e o percurso de apropriação filosófica da poética e a volta ao lar como poesia. Pp. 39. Web.
3 HOLDERLIN, Friedrich. Hinos Tardios. Lisboa: Assírio e Alvim. 2000. Pp. 31. Impresso.
4 Ibidem 27
Fontes Bibliográficas:
SÓFOCLES. Antígona. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018. Impresso.
HOLDERLIN, Friedrich. HinosTardios. Lisboa: Assírio e Alvim. 2000. Impresso.
Webgrafia:
MEES, Leonardo. Hölderlin e o percurso de apropriação filosófica da poética e a volta ao lar como poesia. Pp. 39. Web.