Mundo Invertido: O Real e a sua Representação em Dans la ville blanche, Tiago Ramos

Texto de Tiago Ramos. Revisão de Guilherme Berjano Valente e João N. S. Almeida.

Lead: Análise de como a prática cinematográfica pode fazer com que o real seja compreendido à luz da sua representação. 

Dans la ville blanche (1983), do cineasta suíço Alain Tanner, desenvolve a ideia de que o cinema, enquanto meio de representação, tem a capacidade de corromper a maneira decomo o real é compreendido. O presente ensaio tem como objetivo analisar o modo como a prática fílmica é desempenhada pelo protagonista da trama, Paul (Bruno Ganz), assim como de apurar o impacto que o processo de filmagem tem na sua perceção do real.

Figura 1- Paul a filmar a sua chegada a Lisboa. Fotograma de Dans la ville blanche.

A longa-metragem começa com um plano de um navio-petroleiro isolado num oceano que se estende além do horizonte. Encoberto pela bruma marítima, o navio navega rumo à cidade de Lisboa. Os planos que se seguem enquadram o espectador espacialmente, dando a conhecer os corredores claustrofóbicos do navio. A presença ameaçadora do oceano no exterior e o labirinto metálico que compõe o interior do navio criam a sensação de que Paul se encontra simultaneamente constrangido pelo meio natural e industrial. Dentro da embarcação, o trabalho de Paul consiste em realizar a manutenção das máquinas. O marinheiro é um instrumento necessário para que a vida a bordo decorra com normalidade. Conquanto outros operários habitem os corredores do navio, bem como a sala das máquinas, não existem quaisquer indícios de humanidade. As figuras humanas são caracterizadas como apêndices do complexo industrial do navio. Assim sendo, inverte-se o princípio de que os aparelhos mecânicos são uma extensão tecnológica do conhecimento humano – nesta equação, os operários são a variável que permite às máquinas funcionarem na sua plenitude, o que torna os trabalhadores em acessórios das mesmas. A natureza humana de Paul é enfatizada quando ele toca harmónica no seu quarto, longe do ruído lancinante dos motores. Paul deixa de ser uma ferramenta que trabalha em função das máquinas e passa a ser aquele que emprega um instrumento de modo a criar. O gesto criativo de tocar harmónica revitaliza o protagonista, o que gera a conceção de que a arte musical tem uma qualidade humanizadora diametralmente oposta à natureza estandardizada dos ofícios industriais que pontuam a vida moderna. Embora confinado e sem a possibilidade de escapar, Paul encontra-se constantemente em movimento enquanto permanece no navio-petroleiro. O marinheiro suíço viaja por todo o mundo durante meses sem na realidade se deslocar porquanto se encontra encarcerado entre as paredes metálicas da embarcação industrial. Mesmo que ancorado, o navio continuaria a oscilar devido à ondulação. Desta forma, o protagonista experiencia um fenómeno paradoxal: está permanentemente em movimento ainda que preso «numa fábrica flutuante de pessoas loucas», como o próprio refere a dado momento. A loucura apontada pelo protagonista pode ser fruto da deterioração da identidade dos marinheiros, dado o carácter repetitivo e desumanizador do trabalho que desempenham. Todavia, o estado de loucura pode igualmente dever-se à conjuntura contraditória supracitada: os marinheiros estão ajoujados a um falso movimento incessante. À vista disso, é pertinente que o outro instrumento empregue por Paul no navio-petroleiro seja uma câmara de filmar – um dispositivo que regista fotogramas fixos que, uma vez projetados sequencialmente a uma velocidade elevada, criam a ilusão de movimento. A câmara de filmar Super-8 que o protagonista carrega consigo é caracterizada como uma extensão física de si próprio que ele utiliza de maneira a descortinar o real. Ao desembarcar, no seu trajeto à descoberta da cidade branca, Paul filma os bairros icónicos, as ruas sinuosas, as escadarias imensas, entre outros locais associados ao imaginário de Lisboa. Depois de ter convivido com engenhos mecânicos durante um longo período, Paul necessita do auxílio de um dispositivo mecânico para conseguir navegar no espaço urbano. 

Sem rumo, o marinheiro documenta o seu percurso deambulante na cidade estrangeira que o acolhe. De seguida, o protagonista endereça os registos fílmicos para a sua amante, Élise (Julia Vonderlinn), que espera pacientemente por si em território suíço. A errância de Paul, um marinheiro há muito apartado do seu lar, aproxima-o do modelo heroico de Ulisses. Por sua vez, Élise, a esposa que anseia o retorno do seu amado, evoca o arquétipo de Penélope. O aportar do marinheiro helvético em Lisboa, uma cidade que num campo mitológico está associada à figura de Ulisses dos mil artifícios, aprofunda o paralelo entre a intriga tecida por Tanner e o poema épico de Homero. 

Numa carta endereçada a Élise, o marinheiro afirma ter perdido a capacidade de escrever e que, de momento, apenas tem imagens para lhe enviar. Incapaz de se expressar através de palavras, Paul seleciona a linguagem cinematográfica como substituto. O facto de a prática epistolar ser desenvolvida maioritariamente com um dispositivo fílmico evoca o conceito de caméra-stylo na medida em que as cartas passam a ser escritas com a luz e com a câmara de filmar que a capta. No seu artigo «Naissance d’une nouvelle avant-garde», Alexandre Astruc prenuncia o surgimento de um novo modelo de cinema capaz de expressar, de forma articulada, os pensamentos do artista sem que este tenha de recorrer a associações de imagens. De igual modo, para o protagonista, as imagens captadas deixam de representar apenas a realidade circundante e passam a ser vestígios da sua paisagem interior, o que gera uma aporia: Paul julga expressar partes da sua interioridade, que nem as palavras conseguem articular, através de representações fotográficas de espaços exteriores a si próprio. Destarte, o marinheiro inverte as conceptualizações ontológicas dominantes, associadas à imagem cinematográfica, que se centram na natureza indicial e aparentemente objetiva das representações fílmicas. Os registos de Paul não têm como objetivo estabelecer uma relação de fidelidade ou verosimilhança com o real, mas sim de dar expressão à sua interioridade. 

As cartas que Paul escreve à amante, e às quais o espectador tem acesso por meio da voz over, são indefinidas a nível sintático – contudo, carregam uma significação expressiva. O marinheiro tenta duplicar esse estilo paratático ao filmar. As imagens registadas têm uma qualidade taquigráfica, devido ao movimento da câmara e à curta duração dos planos, mas conseguem figurar a sensação de alienação que acossa o marítimo. Numa carta, o protagonista reitera que a sua estadia em Lisboa se trata de um sonho. A razão pela qual Paul identifica o real como um sonho pode estar relacionada com a utilização contínua de um meio de representação para experienciar o real. Por excelência, o cinema é o meio de representação que mais se aproxima do sonho uma vez que representa o real sob uma forma irreal, com um tempo e perspetiva própria, num lugar sem espaço que é capaz de conter universos inteiros – no caso do cinema esse lugar não é a mente, mas a tela. No que concerne à experiência do marinheiro com o cinema, a prática fílmica suscita um efeito onírico porque Paul emprega a câmara de filmar como um mediador entre si e o real. Não se dá apenas o caso de o protagonista ver através do olho da câmara, o que o dissocia do real, como ele aparenta imputar ao dispositivo fílmico a capacidade de articular a sua realidade interior. 

De maneira a combater o estado letárgico de devaneio, o marinheiro alimenta os seus impulsos passionais, que reforçam o carácter corpóreo do real. Paul explora os clubes noturnos da cidade, mas rapidamente esse ímpeto se esgota, acabando por se refugiar no quarto da pensão onde reside temporariamente. Lá o marinheiro permanece sozinho, incapaz de se mover. Rosa (Teresa Madruga), uma criada de quarto e empregada de mesa que trabalha na estalagem onde Paul está hospedado, será o objeto de desejo que irá reanimar o olhar absorto do marinheiro estrangeiro. À medida que o nó que os une se estreita, Paul desapega-se paulatinamente da câmara de filmar e começa a ver com os próprios olhos. O readquirir dessa competência é acompanhada pelo restabelecimento da capacidade de escrever. O universo das palavras é desimpedido e o marinheiro helvético volta a conseguir comunicar consigo próprio e com os que o rodeiam. Paul fá-lo, numa cena que se desenrola à beira-mar, com Rosa, ao contar-lhe um pouco acerca do seu passado, até então uma matéria nebulosa para o espectador. Por instantes, a linguagem cinematográfica torna-se inútil. A sua amante portuguesa é o elemento que permite a Paul assentar os pés na terra e passar a ver pelos seus próprios olhos. Este novo panorama faz com que o interesse de Paul pelo espaço urbano seja trocado pelo encanto do corpo físico. As ruas desalinhadas que o marinheiro suíço percecionava através do olho da câmara são substituídas pelos contornos do corpo de Rosa. O quadro adiantado muda uma vez mais após o protagonista ser assaltado nas ruas de Lisboa. Paul perde todo o seu dinheiro e a sua estadia na cidade branca fica comprometida. O casal apercebe-se que a sua relação amorosa não tem futuro e começam, como corolário, a distanciar-se. Esse afastamento resulta num processo de retrocesso que reencaminha o marítimo novamente para um estado de devaneio e errância. Na cena que sucede o assalto, Paul volta a pegar na câmara de filmar, desta feita para contemplar o corpo descoberto de Rosa. A sequência supracitada representa um momento de transição fulcral: Paul está prestes a abandonar a corporalidade do real, que tinha vindo a explorar com a amante, tendo em vista retomar o mundo das imagens previamente sondado. 

Figura 2– Paul filma o corpo descoberto de Rosa. Fotograma de Dans la ville blanche.

A rutura do casal faz com que Paul recupere os hábitos fomentados numa primeira instância, aquando da sua chegada a Lisboa. O marinheiro percorre o espaço urbano, observando o que o rodeia através de um dispositivo fílmico, assim como se integra na vida noturna lisboeta, recorrendo ao álcool como substância consoladora. À medida que a relação do casal se vai deteriorando e, mais tarde, depois de Rosa emigrar para o território gaulês, Paul deambula desamparado pelas ruas da cidade. Durante esse período, múltiplos travellings frontais de avanço figuram que Paul está em busca de algo que não consegue alcançar. Sem Rosa, a figura que o tinha enraizado na materialidade do real, a cidade branca perde substância e transforma-se num espaço atemporal com défice de realidade: «O tempo decompôs-se […] nada realmente existe», refere o protagonista.

No seguimento do assalto, Paul é forçado a vender o relógio de pulso de modo a conseguir dinheiro para prolongar a sua estadia na cidade branca. A venda do relógio de ouro remete para o começo da longa-metragem, mais especificamente para a cena em que Paul, ao entrar na estalagem onde viria a permanecer, se apercebe que o relógio de parede do estabelecimento tem os números gravados no sentido contrário. Após ser indagada a respeito do relógio por parte do marinheiro, Rosa afirma que o relógio está correto e que é o mundo que anda ao contrário. 

Figura 3– Relógio cujos números se encontram no sentido inverso. Fotograma de Dans la ville blanche.

Algo da mesma ordem ocorre no desfecho de Dans la ville blanche. Paul oferece as duas câmaras de filmar Super-8 que possuía ao dono da pensão na qual pernoitava de maneira a saldar a divida que tinha para com a estalagem. Desta forma, Paul deixa de ter acesso aos aparelhos cinematográficos que o acompanharam durante a sua odisseiaem Lisboa. No entanto, quando o protagonista se prepara para partir da cidade branca, via comboio, presumivelmente para retomar a viagem de retorno à sua Ítaca, o espectador tem acesso à perspetiva de Paul e essa parece ter sido contaminada pelo código visual dos dispositivos fílmicos com os quais tinha registado a cidade. Não obstante o marinheiro não ter em sua posse uma câmara de filmar, o plano final, que assume o ponto de vista do protagonista, é filmado em Super-8. A perspetiva ótica de Paul aparenta ter-se fundido com a representação do real gerada pelo dispositivo fílmico. O olho da câmara sobrepôs-se ao olhar do marinheiro, o que faz com que a câmara de filmar, ao contrário da harmónica, não tenha um carácter humanizador, mas sim um efeito de mecanização do humano. Assim sendo, tal como no cenário adiantado a respeito do relógio, o espectador depara-se com uma inversão da ordem natural das coisas. O último plano sugere que Paul destrinça o real de acordo com os atributos da imagem cinematográfica, ou seja, compreende o real à luz de uma representação do mesmo. O entendimento de Paul acerca daquilo que o rodeia é informado pela prática fílmica que desenvolveu regularmente. Desta forma, conclui-se que as imagens produzidas pela câmara de filmar não se restringem a representar o real – são capazes transformar a maneira como ele é entendido.