Texto de Jacinto Serrão. Revisão de Tomás Vicente Ferreira e João N. S. Almeida.
Recordar os horrores do fascismo e a luta pela liberdade é imperativo ético e moral, por mais que custe a alguns herdeiros das benesses do fascismo e aos seus saudosistas.
A revolução da liberdade representa um acontecimento histórico que ditou o fim de um regime fascista para dar lugar ao advento do regime democrático. Um acontecimento que tornou o dia 25 de Abril de 1974 numa data indelével que assinala, como consta no preâmbulo da Constituição da República Portuguesa, ‘o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos’. Representa uma longa resistência do povo, um povo oprimido por uns fascistas refastelados nos cadeirões do poder, protegidos por organizações corporativas, criadas ou não pelo próprio Estado, e por grupos de interesses beneficiários de um regime autoritário, regime esse que era indigno dos princípios da liberdade e da justiça social que hoje são quase unanimemente aceites.
Claro que, para estender a sua permanência no poder, o Estado Novo alimentou um cortejo de séquitos pelo país, entre os quais muitos endoutrinados na sua escola, alguns alienados, outros acríticos e outros cobardes. E, hoje em dia, alguns ainda olham para esse regime com saudade, apoiando certos movimentos reaccionários e os típicos candidatos a nacionalistas que vendem a ilusão de um país ideal, como fizeram há 90 anos, prometendo um idílico estado novo.
O fim da ditadura não representou, por si só, o fim desse regime e da sua doutrina; por isso, mais do que falar do dia comemorativo, importa falar do seu significado. A revolução de Abril significa um processo de afirmação da liberdade e da dignidade humana, um levantamento militar apoiado por uma grande maioria do povo contra o autoritarismo, a opressão, as ameaças e contra as políticas do medo e da manutenção da penúria do povo.

O 25 de Abril de 1974 assinala, portanto, um processo de construção de um regime democrático de direitos e liberdades fundamentais, nos quais cabe a liberdade de todos os cidadãos escolherem livremente os seus legítimos representantes. Tal direito de cidadania está vedado, em regimes anti-democráticos, à maioria do povo; mas, pasme-se, há gente que defende tais sistemas.
A democracia, parafraseando Winston Churchill, é um regime com imperfeições, mas todos os outros são piores. Uma das maiores virtudes da democracia é que se constrói com a participação ativa de todos os cidadãos. Quanto melhor for a qualidade da cidadania ativa, melhor é a democracia participativa. A democracia é um fenómeno que depende da qualidade da educação para a cidadania (formal, não-formal e informal) que adquirimos.
Por isso, não é de estranhar que, devido à herança cultural que a sociedade recebeu da longa governação anti-democrática, ainda estejamos a combater os vícios desse regime que envenenam o presente Estado de Direito democrático, que ainda estejamos a combater uma herança corruptora dos poderes fáticos do Estado Novo , e que ainda estejamos a educar para a cidadania e para uma democracia adulta.
Esta verdade histórica sobre as crueldades das ditaduras é para ser contada, de modo a avivar as memórias adormecidas e ser transmitida às novas gerações.
A política anti-democrática e totalitária é um fenómeno opressor e contrário à dignidade humana que não deve ser branqueado. Não há totalitarismo bom, nem totalitarismo moderado: e recorde-se que os totalitários, tipicamente, travestem-se para iludir os mais incautos e para parasitar a democracia.
Apagar a história da resistência ao Estado Novo é apagar a memória da luta pela liberdade, pela democracia e pela dignidade das pessoas. É deixar a porta aberta à perda de memória coletiva e ao branqueamento dos crimes contra a liberdade do povo. É deixar a porta aberta aos oportunistas que se aproveitam da fraca cultura histórica, das situações de crise e da fragilidade emocional das pessoas para as iludir com discursos de circunstância que incitam o ódio, a intolerância, a segregação social e ética, e a violência física e psicológica. Apagar a memória da resistência ao totalitarismo do Estado Novo é branquear tais horrores perpetrados contra a liberdade e a dignidade humana. E, como disse o filósofo Rob Riemen, é gerar um vazio espiritual no qual os totalitarismos podem crescer outra vez.
Se olharmos à nossa volta, para a Europa e o mundo, vemos os reacionários a acomodarem-se nos parlamentos democráticos, com discursos de natureza nacionalista, xenófoba e neonazi.
E tudo isto acontece sem praticamente haver uma reação inteligente dos poderes democraticamente eleitos e também, há que dizê-lo, das organizações civis, económicas, religiosas e políticas. Tudo isto acontece sem uma consciência individual e coletiva das nefastas consequências de se viver sem liberdade e sem direitos democráticos, como os nossos antepassados viveram.
Exemplos não faltam neste mundo, no passado e no presente, de comunidades que elegem, imprudentemente, movimentos proto-totalitários. Elegem os reacionários com discursos populistas de pendor neonazi, mas quando se apercebem já é tarde. Já são reféns de um regime que lhes nega a liberdade de escolher e de eleger livremente os seus representantes. E, para quem julga que isto só atinge os outros, está enganado. Estamos todos a perder direitos de cidadania global, de cidadania europeia e direitos constitucionais. No fim de contas, todos nós, com culpa ou sem ela, somos vítimas deste estado de coisas.
Atualmente, assistimos, na Europa e no mundo, à ascensão de partidos de extrema-direita e de neonazis que estão a pôr em causa as nossas conquistas civilizacionais e humanistas, os direitos humanos, as organizações para a paz e a desmantelar o projeto da União Europeia e da aliança ocidental, um garante da paz desde há setenta anos para cá.
03.05.21