Textos de Mariana Antão. Revisão de Luís Rodrigues e Sebastião Viana.
Guerra
Olhando pela janela, todo o dia todos os dias, vejo as acácias que ladeiam a avenida, na cómoda as
fotografias a preto e branco,
diz-me a avó
as fotografias a preto e branco.
Cá em casa as cómodas cheias de paninhos de rendas de bibelôs mas nunca fotografias, Porquê molduras vazias, avó?, são para os mortos.
Olhando pela janela todo o Sol que não se põe vejo as acácias que flutuam na avenida, nas cómodas as
fotografias molduras vazias com pretos e brancos,
diz-me a avó
Um dia o irmão Joel a branco branco,
perguntei
Mãe
gritei baixinho
Mãe
debaixo de água
Madalena, é o que aí tens.
De repente as acácias todas elas também a preto e branco, o meu irmão Joel
brinca muito que eu volto Madalena
olha o Sol
come os doces no Natal
O Joel a partir daí
o que aí tens
na moldura vazia
que eu volto Madalena
As acácias as molduras as horas sempre as mesmas sempre as mesmas e eu na terra vermelha, nos portões da casa grande olhando, olhando até que vieram as chuvas e decidi
Mãe, vou para a guerra
e um sorriso leve, o primeiro desde que o Joel
Lutar por quem?
As acácias lá fora na terra dos outros, os doces do Natal e eu sem saber que a guerra tinha lados, ao longo de todas as horas dias semanas sempre
Lutar por quem?,
perguntando a todos e aos mortos das fotografias quando se dignavam a aparecer
Por quem lutamos, Joel,
o meu irmão que dizia
Brinca muito e olha o Sol, Madalena
que dizia
Sabes Madalena acho que me apaixonei por uma enfermeira lá em Lisboa
Viemos nós para Lisboa e conhecemos a enfermeira, o Joel lá ficou
(partiu-se num barco)
nadando com os mortos, todos sozinhos, aqui em casa apenas
o teu avô,
Nós as duas cansadas suspensas a ver televisão, já não há lado para escolher e os pretos e os brancos mas filha eu continuo
Joel
no mar
Joel
olhamos juntos as acácias lá fora flutuam na avenida e eu nas grades do portão pergunto
Lutar por quem?
Emergência
As chuvas que batem na calçada sem ninguém e as sombras pombalinas nos telhados
lembram-me
uma avenida em que já não escorre a liberdade
lembram-me
o vago odor de uma qualquer coisa perto do rio, os cheiros das velhinhas que entram e quase me tocam me entram pelo nariz
lembram-me
os silvos do vento no inverno difícil de grândola, antes de Grândola
lembram-me
Agora chega uma velhinha, vai sozinha, leva comida do café
Trouxe o cheiro?
Tropeça nos sulcos das paredes e nisto nada como pode, antes sentava-se nos bancos
Sempre descansamos um bocadinho, não é verdade?, com os lábios coloridos de um vermelho esborratado, sorria
Não é verdade? e eu sorria também, nós os velhos temos direito a estas palavras mastigadas, repetidas, a falar pela cruz partilhada aos outros, na rua
é o nosso calvário
E a vontade de descer, de pedir à senhora velhinha Desculpe, tem os lábios pintados?, de perguntar à senhora velhinha
Desculpe,
baixe a máscara,
É o nosso calvário.
Continua a custo o seu espesso caminho,
a senhora pintada.
Pediu um café hoje não podemos pedimos desculpa, sabe a dona Piedade passou aqui e levou o
almoço,
perguntou
por si,
A velhinha continua o seu caminho não se afoga e já vai longe, perto do rio, vejo-a bem: limpa as lágrimas à manga do bibe riscado.