Duas crónicas sobre charros, Tomás Gorjão

Textos de Tomás Gorjão. Revisão de João N. S. Almeida.

Tutanchamom

Perdido o vôo por sono e surdez ao despertador, e apanhado outro horas depois, num Junho destes últimos anos fui a Londres reencontrar o Julião. Das livrarias e museus alistados nada ficou por ver, nem tampouco nos esquecemos das pints nos pubs à noite, interpoladas por cigarros enrolados e baralhos de cartas ao léu. A saciedade das passeatas londrinas não nos dissipou demasiado o mealheiro, e ainda no-lo restava para pagar o autocarro que nos levou a Cambridge de visita a outro amigo, o David. Pedimos-lhe que nos arranjasse o verde canábico para apimentar a nossa estadia; e vivendo ele em cidade de douta tradição universitária, não duvidámos da facilidade com que a angariaria.  

Aí agrupados, marcámos primeiro o ponto nos pubs aos brindes de ale e sidra de mirtilo, e petiscámos pelos jardins a caminho das muralhas do King’s College, que pulámos para arriscar uma vistoria furtiva. Em casa do David apanhámos um uber para a do Marzio, outro amigo que queria rever e que morava onde o empregavam, nas residências de um hospital em nenhures extramuros. Subimos um elevador de jaula, percorremos andares de portas corridas até à do Marzio e da Jenelle, que por abraços e uma circum-navegação à sua curta casa nos sediaram na sala de estar. No sofá desencantaram um cinzeiro, e nele estava o rabo de uma blunt grossíssima, com uma boca que era um círculo denso e acastanhado como o ânus ressequido de uma múmia. Ateámo-la sem qualquer parcimónia; durou, sem terminar, perto de cinco rodadas, após o que me masquei todo seco, todo torto, possuído pela televisão que num estrondo óptico incandesceu. Tinham-na ligada ao Youtubee a uma mistela de memes levitantes, peças absurdíssimas de humor internético que iam dos escabrosos aos ilógicos. Gargalhei com muitos – mais do que mereceriam –, incluindo este

que se me reteve por algum motivo. Cortou-os um vídeo de cores e manchas pululantes, fortes absorventes da fervura a que me estava a saber a pedra, mas também profundos desestabilizadores da minha unidade que só conseguia recondicionar na conversa com as pessoas, regularizando-me a falar sobre o emprego do Marzio ou as guitarras ascensionais dos Pink Floyd. O fumo propalado da blunt esmorecia das alturas da sala e desmaiava através de uma luz fria que lhe revelava a textura vaporosa; imaginei o David Gilmour a dedilhar o fumo como se fossem as cordas da sua guitarra, e depois olhei para o que restava da blunt e espantei-me de novo com o seu corpo. “Se fosse mesmo uma múmia, seria o Tutanchamom”, pensei. 

Num tirinho vivi tudo isto, e ainda uma sessão fotográfica enquanto esperávamos o uber para voltar, e noutro tirinho 

estávamos de volta. A neblina espessou-se pelo pescoço de um bongo, e o mais do que nos comprara o David desfez-se em desafios de travagem prolongada: na cozinha a irritação do fumo na garganta impelia-nos a expirar súbitos perdigotos que não tínhamos tempo de cobrir, e de que nos ríamos lançando outros salpicos; e no pátio afundávamos tanto a traqueia a fumegar os pulmões que encaracolávamos os pés até nos folgarmos na libertação dos alvéolos. Assim andámos de uma divisão para a outra, escaldando a plantação e rindo-nos da nossa crescente debilidade a comedir a brutalidade da moca, e nesta circulação formávamos o único adesivo na desmontagem de tanto apedrejamento. A torra e a tosse têm o seu pedágio, e cobrado num imenso cansaço

tombámos

no sofá. 

Onde de manhã, todos partidos, cedemos à chantagem de pequeno-almoço pelo David.

Onde, após o pequeno-almoço, engonhámos na exaustão. 

Onde a estancámos para as despedidas e para a corrida à estação do autocarro

que nos devolveu a Londres e aos pubs, às cartas e às livrarias, às pints e aos cigarros enrolados, ciclos repetidos na maior das alacridades. 

Não queria problemas no aeroporto, e já não me lembro do que fiz: ou fumei as sobras de erva, ou dei-as aos patos do Hyde Park.


Then We Take Berlin

Eu e o meu irmão habituámo-nos a provar a diversão nocturna dos destinos de veraneio, e idos a Berlim quisemos testar a promessa da sua fama festiva. Planeámos o pacote completo, e o Afonso socorreu-se de redes internautas para encontrar pontos de aquisição de erva. As pesquisas puseram-no num parque em Neukölln: o serviço veio de um simpático jamaicano que até lhe passou um caio já quente. 

A noite acendeu-se, pusemo-nos na Leipziger Platz e numa fracção sobrevivente do muro no seu canto mais insuspeito: o poiso perfeito para agasalhar a ganza e fumá-la. Queríamos seguir a nossa rotina e tentar a sorte nas discotecas, mas o meu irmão, menor de idade, para isso dependia de conspirações e esquemas; “Ah, não tenho o cartão de identidade, mas tenho dezoito anos” e um olhar confiante assiduamente nos afiançavam, e não vimos razão para mudar de estratégia. O alvo era uma discoteca das redondezas, e para lá planámos. Por milhas a Potsdamer Platz luziu-me azul e vermelha, de farolagem enervada, e aproximados, colossais, os seus montes metálicos perfuraram-me. 

A discoteca estava sem fila. Não errámos no guião, mas insistiram num comprovativo de maioridade, e desmascarados retirámo-nos. Ingressando à pica no metro, decidimos apostar no desleixo do porteiro do Tresor em Kreuzberg. Levámos com uma rebaldaria na carruagem: o pessoal já divertido oferecia garrafas e copos de plástico de um saco preto, que recusámos, mas de que muito nos rimos.

O paralelepípedo industrial do Tresor forçou-se-nos ao olhar, impactante na sua megalomania e nos baques afónicos que troavam do seu interior, e em que se entendia a concussão da música confinada que nas nossas sensações avolumadas decerto faria valer a noite. A fila era enorme, o porteiro avisou-nos de uma hora ou mais de espera, e demorámos meia-hora a desistir para saltitar por Kreuzberg à procura de consolo num copito. 

Bebemo-lo num bar simpático, desvigiado à porta, suavemente transposta. Escondemo-nos na sala do fundo, e eu é que fui ao balcão. Na mesa do lado, umas raparigas olharam-nos de esgueira, mas os tipos da do outro lado avançaram primeiro e sentaram-se com elas. No centro, estava uma mesa de matrecos abanada por alemães bêbados que ao desertarem ocupámos, e onde descompensámos a energia para a pista de dança rolando várias bolas. Um dos sedutores disparou da cadeira e foi a jogo sem pedir; outro intruso, um teuto-brasileiro todo pingado, acostou-se à mesa e num surto báquico pateou as varas sem as rodar, e nestas disrupções tanto nos frustraram a partida que recuámos ao nosso posto a querer mais álcool. 

Madrugou. O bar tinha de fechar. De novo o metro, de novo um silêncio banal – e o do quarto, que nos adormeceu nos últimos suspiros da moca.