Do Universo Mudo, Iva Leão

Texts de Iva Leão. Revisão de Lourenço Duarte.

Se eu quisesse

O mal faz muito ruído. Mas o grito do bem sobressai. 
Como conviver com a culpa de ser eu?
Estar aqui, nascer aqui, e não ali, 
No meio da impossibilidade de ser.
Deus. Deus é volátil,
Ao longo da existência, mudou de forma e conceito.
Às vezes penso num gato a pensar na vida.
Um gato a perguntar ao seu Deus gato
O porquê de tudo.
O porquê de ter em si todos os sucessos,
E nenhum que seja do mundo corpóreo?
Eu, se quisesse, podia ser uma messias.
Acordo, motivada, levanto-me e preparo-me para O dia.
Aquele que embarcará todos os que estão adiante,
Até que a memória se canse do seu nome.
Eu, se quisesse, fazia leis 
Às quais obedeceriam cegamente,
Sem questionar.
Se quisesse, ordenava a polícias que os pisassem,
Caso questionassem.
Se quisesse, levantava-me e matava-me a trabalhar
Ou trabalhava matando-me.
Só para tornar tangível todo este sucesso
Cá dentro. Só para ser. Só para existir.
Só para chegar ao topo
Da base que se agiganta e debruça,
Como uma velha árvore, justificada e inexorável.
Se quisesse, seria Masterchef a dias
De um louco qualquer,
Gastaria a minha vida como gasto a borracha
Que uso para apagar a inquietação.
Se quisesse, trabalharia no talho do velho António,
Cuja bondade é inequívoca.
Lembrar-me-ia diariamente da culpa,
Só para mais tarde manjar o meu cozido à portuguesa em paz.
Se eu quisesse, humilhava-me atrás de uma besta sandia,
Mandaria piropos numa rua sem nome,
E sentir-me-ia gente no final. (Será?)
Se quisesse, geria uma multinacional,
Pagaria a um marmanjo para não pagar.
Compraria uma grande casa e um grande carro,
Teria 10 filhos com nomes impronunciáveis. 
E agora?
Uma grande piscina para afogar as mágoas.
E agora?
Uma mágoa para afogar o absurdo?
O absurdo para afogar a culpa.
A culpa de pensar, 
A culpa da empatia.
Se eu quisesse, não pensaria.
Se eu quisesse, não teria empatia.
Se eu quisesse?

Mais um pôr-do-dol,
Mais uma despedida por chamada,
Mais uma morte que não pude evitar.
Admiro os médicos
Que posso ser só dentro de mim.
Tudo o que tenho: gargalhadas,
Coisas de palhaço.
A água que sabe mal,
Mesmo sendo necessária.
A escolha que não fiz,
E pensei que sim naquela parcela de dimensão
Que já não é,
Que só existe porque a faço existir.
Se eu quisesse, sobrevoava os píncaros do desconhecido,
Observava tudo lá de cima,
Só para ter certeza da desídia. 
Sentiria a inospitalidade do Universo
nos meus braços abertos e nus. 
Se eu quisesse, mudava-me para outro pedaço de terra
E gritaria “Pátria” no escuro.
Se eu quisesse, uma mensagem bastava.
Se eu quisesse, um pôr-do-sol seria vitória,
Celebração de mais um movimento de rotação.
Porquê a soberania das translações?
Girar sobre si próprio e dar a volta à vida,
Sem ficar com a visão turva,
deixando-se regar pela luz a gosto,
É, definitivamente, uma vitória.
Mas, para o tangível, é culpa.
Sempre escolho não querer.


Sobejo

Sobejo numa mente que desconheço,
Sobejo em mim. 
Penso no que penso
Numa regressão sem fim.

Conheço os átomos, o código?
Aquilo que nos faz o Ser?
O âmago do corpo pródigo,
Com tempo a perder?

Sobejo com a minha verdade,
Tantos lá fora com a sua…
Será eterna, e por ventura há-de
Ser o rio que desagua.
(E deixa de ser rio.
Deixa de ser.
Deixa.)

Os outros dizem “eu”.
Eu sou os outros,
O que é deles é meu?
Não a verdade, seus sopros.

O mar que me tocou a alma,
Os olhos que em silêncio amei,
A casa que conheci como a palma…
Os malmequeres que arranquei…

Tantos eus decidindo,
E as pedras são os vizinhos,
Com que as estradas se vão expandindo
Para cada eu escolher os caminhos.

(Eterno centro e periferia
Dos quais só eu sabia,
E chegar a daí sair
Seria como prostituir.)

Apagas-te, como se fosses nada,
Nada e todas as coisas.
A ausência conserva a cara em cada
Eu. Forma imóvel onde repousas. 

(Imito a tua forma na memória,
Só assim saio de mim.
Imito formas, a fugaz glória
De ser tudo menos assim.)

Telas em branco,
Existes no futuro que se faz agora,
Aparência, pensamento vivo e franco,
Um outro e um eu, empurrando cada hora.

Vastidão cósmica, raio de luz
Que rasga a dimensão transcendente
Numa fúria que se conduz
Sempre em forma de gente.


Livro

Em troca, uma nota
Por aquilo que viverá depois de mim.
Depois de mim, alguém o adota, 
– Sobrevive ao frenesim.

Em troca do murmúrio,
Que sussurra ao ouvido atento:
Como um augúrio
De um insubstituível alento.

Uma troca que não se arrepende,
Pois leva a palavra mais além,
E nunca se rende
Ao gratuito desdém.

O que é mais humano assim se erige
E se ergue ao pedestal de quem ousa
Mergulhar no que redige,
Onde a reflexão repousa.

E são as mãos que estremecem,
Ao pensar numa coisa:
Naqueles que enriquecem
Onde a palavra poisa.


E as ruas têm o teu nome (Homenagem a Fernando Pessoa)

Uma pessoa como Pessoa
A escrita ímpar
Que rima com a Lisboa
Que o seu nome decidiu adotar.

Só 20 anos depois, a glória:
É o que acontece quando o recato
Se confunde com simplória,
Mas nas ruas se fez retrato.

Tantas pessoas numa só
Dificultam a caraterização,
Mas o vulgo sem dó
Simplifica com o chavão.

Passavam por ti e não te viam
Passavas por todos e vias demasiado
Não interessava o que diziam
Quando o palavrório trazia enfado.

E as ruas têm o teu nome
E os cafés bebem-se com a tua poesia
E os ares têm outro ar

Teu entendimento mata a fome
De quem, só para ver nascer o mesmo dia,
Abre as janelas de par em par.


NÃO

Saber ouvir um NÃO
É aceitar que sem ele
É impossível existir ‘sim’, pois então
Não o repele.

NÃO
3 letras contumazes
Que sustentam a posição
De todos os capazes.

Saber aceitar um NÃO
É saber dizer sim a si próprio,
É saber dizer sim à evolução,
É notar que o ego é ópio.

Apenas 3 letras,
Cada uma tão inteira e segura.
Deixemo-nos de tretas!
Pois o sim não é de quem quer, mas de quem procura.

Saber ouvir, só por si,
Grande feito da Humanidade!
É por mim, é por ti,
É pela sororidade.

Somos Homens, não Deuses,
Mais um NÃO a aceitar.
Quantas mais vezes
Ter-se-á de rogar?

Quantas mais vidas
Quantas mais almas
Quantas mais dívidas
Bastará bater palmas?

Deus, utopia,
Brutalidade e agonia,
A doença da alma perturbada
Que não mais verá a luz do dia. (Será? Assim se espera.)

Impotência na caneta inquieta,
Raiva nos dedos tremulantes,
– Sabemos que quando tal desperta,
Estamos todos tão perto, mas tão distantes.

Se guerra não se paga com guerra,
E indiferença deixa o mal em liberdade,
Como saberá a Terra
Da importância da integridade?

E a saudade que se senta para jantar
E os passos descompassados
E o constante augurar
Dos espíritos indignados?

É o NÃO da atração magnética
Que mantém e preserva o planeta
É o NÃO da ética
Que faz o profeta.

NÃO, E PONTO FINAL!
Adeus, até jamais!
Com o bem se vence o mal
Há tanto por viver afinal.
Para ser barco, sê cais!


Mulher

Mulher não é marido, é colher
Que se mete onde quiser.
É sangrar, sem morrer,
É o homem que faz nascer.

Só não é a ideia distorcida
Que ele mais tarde carrega:
Da ideia faz vida,
E é ela que a renega.

Mulher é como deusa, como ar,
Tem esse direito,
Pois se direito ele o enfiou sem pensar,
Não é ele que legisla a respeito.

A casca é o acessório
Que sempre percorre publicidades;
O capitalismo abraça o ilusório
Palco das perversidades.

Ora de menos, ora de mais,
A empresa de cosméticos anuncia
Em revistas e jornais,
Adentra a besta sandia. 

Digam-me, estrelas, quão banais
Vos parecemos aí de cima?
As vossas roupas são iguais,
Para quê esta (lá)estima?

Pequenos pontos de energia,
Intermitências de movimento,
Indistinguíveis, quem diria?
Oh embaraçoso enfatuamento!

O teu nome é as tuas mãos
O que tocam, o que resolvem,
A tua cabeça, o que pensas,

Tocam em sins, tocam em nãos,
Resolvem o que podem,
E o que não podem, repensas.