De acordo com a Ética a Nicómaco, VI, será que existe alguma relação especial entre todas as virtudes?, Gabriel Malagutti

Texto de Gabriel Malagutti. Revisão de Tomás Vicente Ferreira. Imagem: estatueta representando Aristóteles.

​Na Ética a Nicómaco, Aristóteles declara que as virtudes não existem separadas umas das outras, ou seja, o mesmo homem é dotado pela natureza para todas as virtudes e não poderá adquirir uma delas sem ter ainda adquirido as outras. O que isto quer dizer é que, se observamos uma virtude num homem, podemos observar todas as virtudes nele, pois essa é uma característica própria das virtudes. Se for este o caso, parece que existe algum elo entre elas, como uma espécie de tronco comum de onde elas brotam. Esta é uma declaração, no mínimo, controversa, pois é claro que as virtudes são de uma diversidade tal que parecem nada ter em comum. Afinal, alguém que é corajoso pode fracassar num outro cenário em que seja necessária uma outra virtude. Quais são, portanto, as razões de Aristóteles para afirmar algo aparentemente tão bizarro? É isso que irei analisar neste ensaio: desvendar a natureza das virtudes e descobrir a relação deumas com as outras. 

​Vejamos dois casos hipotéticos. No Caso 1, um indivíduo repara que uma senhora está prestes a ser atropelada e, deliberando, corre para a puxar, retirando-a do caminho do carro e salvando a sua vida, praticando um grande ato de coragem. No Caso 2, um outro indivíduo está no talho a escolher o tipo de carne que vai comprar para o almoço. Tem a opção entre carne de frango e carne de vaca e, após deliberar, compra a carne de frango. Para Aristóteles, estes dois sujeitos demonstram virtude e, caso estivessem na situação oposta, agiriam do mesmo modo que o outro sujeito. Para melhor compreender os motivos de Aristóteles, vamos desconstruir aquilo que se passou na mente dos nossos agentes, transpondo a sua deliberação para uma forma silogística, e analisar aquilo que Aristóteles considera como virtude. Estes silogismos cumprem determinadas regras para que sejam válidos na sua utilização prática, vejamos: «the universal premise represents the result of deliberation. The content of the minor premises is given by perception. (…) There are two beliefs, one universal and the other about particulars.» Deste modo, podemos formular os silogismos do seguinte modo:

​Comecemos pela construção dos silogismos. 

Caso 1: P> Quem está em apuros precisa de ajuda.

​ P< Esta senhora está em apuros.

​ Logo, esta senhora precisa de ajuda.

​A conclusão implica uma ação, a de salvar a senhora.

Caso 2: P> Carne branca é saudável.

​ P< Esta carne de frango é carne branca.

            Logo, esta carne de frango é saudável.

​Mais uma vez, a conclusão implica uma ação, a de comprar frango para o almoço. 

​Para melhor compreender o que podemos retirar destes silogismos, temos de primeiro compreender a maneira como a ética se processa em Aristóteles. Numa determinada ação particular existem dois fatores em acção. Primeiramente, a parte não-racional tem um apetite. Este apetite provém do nosso carácter, funcionando como uma inclinação, uma vontade para um determinado fim. Passo a exemplificar: um apetite seria a minha reação ao ver uma salada e um bolo de chocolate. Dependendo do meu carácter, teria um apetite que me diria para comer o bolo e/ou a salada, ou até mesmo não comer nada. É esta parte que determina o fim da ação. Por outro lado, temos a boa deliberação que provém da parte racional do homem. A boa deliberação é um tipo de investigação e cálculo, pois procura algo que não é conhecido. Fazemo-lo através de um raciocínio prático, acerca de particulares, pelo que pressupõe um raciocínio e uma asserção – verdadeira (no caso de ser uma boa deliberação, pois a deliberação também pode ser má, nomeadamente quando o raciocínio é incorreto). A conclusão dessa deliberação prescreve sempre uma ação, e esta parte racional determina o meio para atingir o fim estabelecido pelo apetite. Ora, a ação resulta, portanto, da relação entre o raciocínio e o impulso. Pelo que, para a deliberação ser boa, é necessário uma concordância entre a parte racional e a irracional. Há que ter em conta, todavia, que uma boa deliberação surge só e tão-somente quando o raciocínio é bom (ou seja, verdadeiro e correto) e o apetite for bom. Caso tenhamos um apetite errado, mesmo que o nosso raciocínio e deliberação sejam bons, a ação não é boa. O mesmo se passa no caso contrário. Mesmo que o apetite seja bom e faça a coisa correta, se o raciocínio for mau, sendo ele falso ou inapropriado, a ação é má. Digo inapropriado pois pode dar-se o caso de que tenha o apetite de ajudar financeiramente os pobres, e lhes dê dinheiro, o que seria o fim correto. Porém, a deliberação poderia ter-me dito que o método para lhes dar dinheiro seria roubando a outras pessoas. Casos como este mostram que uma ação correta não se deixa definir somente pelo carácter da pessoa (no seu apetite), nem pelas suas consequências. É necessário fazer a coisa certa, da maneira correta, pelos motivos corretos.  

​Aplicando este novo conhecimento aos casos de que falei anteriormente, podemos aprofundar aquilo que se passou com os agentes. No primeiro caso, o agente tinha o apetite de salvar a senhora; no segundo, o de ser saudável. O que está aqui em causa é que, para todo e qualquer silogismo prático, podemos retirar um princípiouniversal que se encontra subjacente. Nomeadamente o universal de que a vida humana é boa e deve ser protegida e o de que devemos ser saudáveis. Deste modo, os agentes são virtuosos porque reconhecem esses universais que devem seguir. Têm o apetite de agir de acordo com esse fim, e deliberam corretamente acerca dos meios para o concretizar. Os mesmos tipos de características podem ser encontrados numa pessoa que seja honesta, temperante, humilde ou sensata. Possuem em si as capacidades intelectuais e o carácter para serem pessoas virtuosas. É por este motivo que Aristóteles afirma que as virtudes estão todas ligadas e, onde se observa uma virtude, certamente se observarão todas as outras. Porque os mecanismos que as põem em prática são os mesmos.

​Resta então a pergunta: o que faz com que esses princípios universais sejam bons? Porquê considerar que os apetites são bons quando seguem esses princípios? Para esclarecer esta questão, é importante notar que o fim a que um bom apetite nos inclina é um fim humano, o de eudaimonia. A eudaimonia é um princípio que nos leva à felicidade. Ou seja, a virtude, sendo “subordinada” da eudaimonia, leva-nos à felicidade. Fazer o bem, ser correto e virtuoso, faz-nos felizes. Vejamos: 

É assim que a sabedoria filosófica produz felicidade; porque sendo ela uma parte da virtude inteira, torna um homem feliz pelo fato de estar na sua posse e de atualizar-se. (3) Por outro lado, a obra de um homem só é perfeita quando está de acordo com a sabedoria prática e com a virtude moral; esta faz com que seja reto o nosso propósito.

​Está bastante explicito em Aristóteles. Ser virtuoso é ser feliz, é ter uma vida excelente, com propósito. 

​Tendo tudo isto em conta, podemos por fim demonstrar a relação inerente às virtudes. Vimos já que as ações particulares, como as dos dois casos que analisei, podem ser desconstruídos em silogismos práticos. Todos esses silogismos práticos têm um princípio universal subjacente que, quando bem formulado através da boa deliberação, vai ao encontro da eudaimonia. Ora, esses silogismos provêm da deliberação prática e do apetite que, em concordância, nos inclinam a um fim bom, por meios corretos e apetites bons. Caso esses três requerimentos se verifiquem, então podemos dizer que o fim é um fim humano que tende para a eudaimonia e, como tal, o princípio universal subjacente é, de igual modo, um princípio bom que nos leva à felicidade. Ora, se todos os silogismos bem deliberados partilham deste processo e indicam virtude, então daí segue-se que todas as virtudes têm não só uma origem comum como um fim comum. Por outras palavras, toda e qualquer virtude nasce da boa deliberação e tem como fim a eudaimonia. Como tal, torna-se necessária a resposta à nossa investigação: existe, efetivamente, uma ligação especial entre todas as virtudes. 


Bibliografia:

​-Gottlieb, P. (2006): “The practical syllogism,” in R. Kraut (ed.), The Blackwell Guide to Aristotle’s Nicomachean Ethics, Malden-Oxford-Victoria, 218–33.

​-Vallandro, L. and Bornhelm, G. (1984): Ética Nicômaco. São Paulo.