Texto de Gonçalo Oliveira. Revisão de Lourenço Duarte.
Preso pela minha consciência, sabendo uma batalha dentro de mim entre a verdade e tudo o resto, decidi que era altura de sair de casa. Entendi a dor da minha família como entendia a dor que sentia ao ver um amigo mudar-se para algum lugar que não fosse próximo – pensei-a real, mas algo distante. Tinha de me dar espaço, e então fui. Peguei no mínimo que consegui, e fui. Encontrei um quarto algures onde me instalar. Pequeno, irrelevante, fácil de limpar; era quanto me bastava. Eis algo que a minha mãe nunca conseguiu compreende: a mim nem sempre me importam as condições, desde que haja algo importante que se sobreponha. Algum motivo. Não tem a ver com ser espartano, não é nenhuma filosofia minimalista para manutenção empinada de uma vida desempinada. O sítio servia um desígnio, era para isso que o queria e que o procurei como tal, e não o posso corromper.
A qualquer crise da minha vida, desejei sempre um escape. Algum sítio onde ir e estar sozinho, realmente sozinho. Algum sítio no qual pudesse reduzir-me. E agora, finalmente, espaço para pensar. As quatro paredes são finas, já eu tinha aumentado o meu físico nos últimos meses a ver se encontrava mais espaço em mim, mas a ideia saiu-me furada e vazia quanto mais eu me remendava ao aumentar-me. Um corpo vai mudando, para maior ou para mais pequeno; será que acontece o mesmo com a nossa mente? Será talvez uma relação inversa? Ao menos sentiria menos frio no inverno, o resto para mais tarde. Sem corpo ao lado do qual me deitar, e sem almofadas (porque me havia esquecido delas), mais valia encher-me. Dei entrada no quarto numa sexta feira à noite, facto anunciado apenas a mim próprio. Não posso dizer que me tenha sentido bem ao entrar num sítio em que vivia sozinho – apesar dos companheiros de casa –, algo que sempre tive como dado adquirido. Deveria ser mais um degrau, mais um venerável degrau nesta jornada, não é? Pois bem, os degraus que subi quase diariamente para entrar no quarto estavam apodrecidos pela humidade, e eventualmente um deles quebrou-se, enfiando lascas no meu tornozelo. É um espanto que não tenha lá ficado preso o resto da minha vida.
Pensei que eventualmente a felicidade viria de pagar pela minha vida com o meu trabalho, o orgulho diário de saber que estou a viver por mim, através de mim. Então procurei um trabalho. Numa economia em recessão. Foi difícil, mas lá dei por mim a enviar currículos preenchidos pelo meu preenchidíssimo conhecimento literário e histórico da condição humana; cada entrada uma prova das minhas capacidades e compreensão. Comecei a servir às mesas. Pensei que aprender a servir os outros podia trazer algo de bom. Sempre fui sociável, e, sem me sentir parte dela, tornei-me mobília da casa. Meti conversa fiada com as mulheres, levei-lhes copos de vinho e de cerveja; prestei amável serviço aos homens, a quem levei vinho e cerveja e pratos intermináveis de amendoins, e estes eventualmente passavam-se das suas mesas para o bar, falando comigo enquanto lhes preparava a bebida seguinte.
“Eu costumava trabalhar em restaurantes nos verões, gastava as gorjetas em tabaco e o resto nos bares. Dá-me um whisky, Famous Grouse. Depois fui estudar e o restaurante fechou. Mas na faculdade, rapaz…”
“Há uns anos, antes do meu pai morrer, eu agarrava-me a tudo o que se mexia. Aproveita e faz o mesmo, que sem memórias depois estás lixado quando estiveres preso com a mulher. Diverte-te.”
E prosseguiam com as suas histórias, contentes, acreditando que os ouvia, que retirava alguma sabedoria profunda do que contavam. Suponho que, regra geral, só se quer alguém que nos oiça, achamos que temos algo a dizer. O mesmo com as mulheres que vinham ao bar beber, de perna cruzada e meias de vidro. A maioria perguntava-me por namorada, e eu que nunca tinha tido uma, negava subtilmente.
“Não acredito! Mas estás bem assim, deixa-te estar, diverte-te enquanto és jovem. Não vale a pena adiantares-te.” Conversa fiada. Se tivesse a liberdade para tal, ter-lhe ia respondido “Senhora, mas eu mal sei o que quero, quanto mais ir adiantado.” Mas isso não fica bem. Algo que apanhei rapidamente é que não nos impomos filosoficamente ao cliente, o cliente é que o faz a nós; e o trabalho a essas horas resume-se a mantê-lo a falar, se ele quiser, e a beber. Há muitas pessoas que vêm só para beber em silêncio. E eu reconhecia neles o mesmo que reconhecia em mim quando queria estar sozinho, de modo que fazia os máximos por minimizar a minha presença. Até no trabalho me consegui reduzir. Suponho que, no total, tive bastante sorte. Saí de casa para me reduzir, no meu quarto era nulo e por vezes no trabalho era anónimo.
Pensava muito, pensava, mas sem chegar a lado algum.
Sendo sociável com os clientes habituais, um homem grisalho perguntou-me se não preferia outra coisa a restauração. Eu disse que não me importaria de experimentar outra carreira, mais por curiosidade do que por vontade. Fui puxado por ele, acabei por ir parar a uma empresa e a uma secretária na qual escrevia uns relatórios a um computador e via alguns números passar no ecrã, comparando-os com previsões. Fiz esses meses todos com a cabeça meio apagada, fazendo o trabalho para ter algo que fazer. O salário sempre era melhor, bom o suficiente para comprar as roupas que precisava para estar naquele emprego. Às vezes esse ciclo é quanto baste. Fui juntando bastante dinheiro a partir daí, e as pessoas do escritório eram simpáticas, traziam consigo as suas histórias e as suas cortesias, e eu tentava escutá-las. De vez em quando servia apenas de parede de carne sorridente na qual as suas palavras faziam eco, mas houve vezes em que de facto as escutei. Queixavam-se do patrão, do dentista; falavam dos filhos, queixavam-se dos filhos, reclamavam da torradeira estragada há três meses estreada, e eu olhava a tentar separar a verdade do barulho. Às noites ia ao bar de um hotel, cujo empregado era amigo meu de quando estive no restaurante, e por ali ficava a beber algo de interessante. E a ouvir. Ouvia, deste lado do balcão, aquilo que as pessoas discretamente contavam ao empregado, sem se lembrarem que todos partilhamos o mesmo confessionário e o mesmo confessor mas que este confessor não se encontrava preso à lei do silêncio. Prendia-se por cortesia profissional, e essa pode quebrar-se na coluna do mexerico entre amigos.
Numa dessas noites, a voltar ao meu quarto decrépito, mas limpo, ao subir as escadas, meti o pé pelo degrau adentro. A sangrar, com frio a entrar-me no corpo para fazer companhia ao frio que já lá estava, percebi o quão sozinho me encontrava, e o quão fácil seria gritar por ajuda, por alguém que me ajudasse a sair dali antes que a humidade comesse também o meu corpo como se de uma infeção se tratasse. Mas estar sozinho não era problema. Estar só começava a ser. Olhei a claraboia aberta por onde entrava a luz laranja-avermelhada da cidade, através da qual mal conseguia ver o brilho à lua, e pensei se valeria realmente a pena levantar-me. Podia ficar ali, só. Seria fácil, apesar de ser difícil deixar-nos morrer quando a morte está próxima. Há pessoas que se deixam morrer ao longo de vinte anos tendo plena noção do que se está a passar, mas que nem por isso se incomodam. Ter noção de que a morte potencialmente se aproxima num espaço curto de tempo, isso sim já se torna um problema. “Bem,” pensei, “se morrer aqui, ao menos servirei de comida para os pombos da cidade. Deixo-lhes a janela aberta, pode ser que venha mais que um para acompanhar a refeição do outro. Com companhia, até noodles de micro-ondas se tornam uma boa refeição – que é o que vão encontrar ao chegarem à minha barriga.”
Decidi não me mexer muito enquanto não percebesse como sair dali, para que as lascas não se fundissem com os meus ossos. O sangue e a adrenalina iam aquecendo a minha pele, empapando a minha meia, e pensei que o melhor modo seria tirar o pé pela mesma trajetória em que ele entrou. Acabei de subir as escadas, evitando pôr peso a mais no pé, e entrei em casa. Os meus companheiros de casa acorreram-me logo, assumindo-me bêbado. Entretanto, um deles viu o sangue nas calças, e foi buscar algodão e água oxigenada. Pedi-lhe ainda uma pinça, e dediquei-me a tirar as lascas e farpas do meu tornozelo antes que infetassem o frio com a humidade. Reparei, pela facilidade com que me consegui dobrar, que havia perdido algum peso. Reparei então também que estava a boiar na roupa que usava todos os dias. Comecei-me a rir enquanto desinfetava as feridas. Poucas vezes mais convivi com os meus colegas de casa, mas também, depois daquela demonstração, acho não lhes fiz particular falta.
Algum tempo depois, ainda sem arranjar a roupa, no bar de todas as noites, pensei tanto que pensei uma mulher que pensava individualmente comigo, ao meu lado, com a sua bebida. Sonhei um pensamento. Isto acabou por acontecer várias vezes seguidas. Eu pensava e ela ao meu lado pensava também, eventualmente começámos a cumprimentar-nos na nossa cabeça cada vez que nos víamos. Numa das noites, ela levantou-me o copo. Poucas noites depois, acompanhou-me a casa, e eu ia pensando no que ia dizer “cuidado com as escadas, um paspalho meteu o degrau dentro há uns tempos e ainda ninguém se dispôs a arranjá-lo”; abri a porta do prédio, “cuidado com as escadas”, abri a porta de casa, abri a porta do meu quarto, “não é muito, mas não preciso que ele seja mais”. Ela olhou em volta, avaliou as paredes (sem humidade), procurou pó nos cantos, avaliou a secretária despida com um olhar inquisidor, não sei se me julgava pela falta de coisas ou se me congratulava por quão arrumado eu era, viu a cama feita, e sentou-se. “É uma cama.” Ao menos estava limpa. “Há muito que está vazia.” “Não dormes aqui?” “Não. Normalmente durmo no chão. Mas não te preocupes, está tudo limpo.” Retirámos as nossas roupas com o entusiasmo habitual, ao menos as nossas roupas dormiram no chão, é da maneira que nem o chão esteve sozinho essa noite. E houve calor pela primeira vez naquele quarto triste.
“Há quanto tempo vives aqui?”
“Uns poucos meses.”
“Vives aqui há tanto tempo e o teu quarto está neste estado? Parece que ninguém vive aqui”
“Não lhe mexi muito desde que dei entrada, mas ele serve o seu propósito.”
“Estar sozinho?”
“Estar sozinho.”
“Desculpa.” sorriu ela.
Foram as primeiras palavras que trocámos.