Giuditta e Oloferne, Caravaggio, 1599, Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma

A esquerda faliu e a direita não presta, Victor Hugo Nicéas

Texto de Victor Hugo Nicéas. Revisão de João N. S. Almeida.

Difícil falir quem prega por uma não existência de hierarquia monetária  e também é difícil ter préstimo quem acha que a única forma de estrutura sócio-económica existente é a que se fundamenta no enriquecimento de poucos em prol da miséria trabalhista de muitos. Mais difícil ainda é observar que a humanidade se curvou perante estes dois ideais extremos e praticamente se calou diante da necessidade de pisar no chão e sentir o que é real na pele. A necessidade criou muito do que nós hoje conhecemos como o essencial básico para o ser humano, elementos que acabam por trazer em seu bojo a verdadeira ideia de dignidade humana. Claro, estão-se nas tintas para isto. Não achincalho aqui pensadores d’outrora, mas sim os zafimeiros que utilizam egoisticamente pensamentos que visam o bem estar coletivo e o ovalam aos seus meros umbigos. 

Sinto-me agressivo nas palavras e, quanto a isto, prometo não melhorar, pois a polarização “salvadora” da política não deveria se deleitar com a digladiação supérflua de seus seguidores. A esquerda lança-se ao público como a política messiânica dos desiguais, tenta tomar para si as dores que não são suas, as dores das minorias, visando ser a intelectualidade que compreende a razão de existência do desigual e se prostra como único norte louvável para o triunfo da igualdade. Pena que o histórico de triunfo da política canhota está manchado de sangue inocente e de desigualdades famintas em qualquer parte do mundo. O falatório desta estirpe deleita-se em tálamo alheio, e se delicia, como se em seu leito estivesse. Que fique claro, não desmereço a luta social por direitos, apenas evidencio que todo e qualquer movimento possui suas próprias pernas para andar, pois não são, e nem devem ser, meros joguetes nas mãos políticas de indivíduos, simplesmente porque política é mais do que essa torpe dicotomia costuma pregar.

Em teoria, a meu ver, muito do que propuseram grandes teóricos deste lado político é louvável, principalmente as críticas que são estabelecidas; todavia, não são os teóricos que commumente põem a “mão na massa”. Os problemas maiores surgem justamente aí, na criação prática de um sistema de re-ordenação social que satisfaçam tais construções. São meios que acabam por concentrar demasiado poder em uma minoria numérica não intelectual que acaba por deter o poder de fazer o que bem quiser socialmente, tendo em vista que o meio social elenca em pedestal os representantes que discursam com palavras que agradam o pathos de quem ouve, deixando, como de hábito, as suas liberdades e interesses à mercê do pensamento de quem controla. Muitos justificam os erros passados como deturpações do pensamento correto: de facto talvez assim o seja, porém se tantas deturpações existiram significa, minimamente, que algo não está certo.

Admiramos o vermelho discurso utópico púbere, e tentamos aplicá-lo com a emoção da idade, deixando, muitas vezes, a razão de lado, simplesmente por acharmos que a frieza dela não é algo “bom”, sem nem sequer sabermos o que esta palavra de três letras significa. Como já foi dito em outro texto: emoção sem razão é loucura sem travão, não sendo sua imediata “oposição” o ideal a ser trilhado. A figura do lado racional humano ganhou muita força no século XVIII, o famoso século das luzes, pois visava, em muitos ramos de estudo, a separação entre a busca empírico-científica e a religiosidade. É neste cenário que a humanidade passa a valorizar mais o lado racional do humano frente à emotiva idealização religiosa. Deus se torna ‘mito’ e a fé é perdida, enquanto que a ciência se torna uma realidade empírica que, mesmo sempre duvidosa, nunca deixa de receber crença na sua existência. 

Nesta iluminação secular, a matemática tornou-se o vislumbre de uma política exata, precisa e afastada de um idealismo emotivo. Atitude louvável e necessária para a época, foi algo que deu vez ao nascimento, nestes caminhos em construção, ao liberalismo económico, a utilizar da lógica dos cálculos mais racionais para estabelecer um pensamento de cunho prático. Esta fábula, aqui narrada em certa velocidade, parece bela e perfeita, até percebermos o resultado selvagem da fauna social que cultivamos, no qual hoje temos a possibilidade de a observamos, seja de baixo para cima ou de cima para baixo. Os números falam mais alto, não os pitagóricos, mas aqueles que são de papel e cabem no bolso, seja o das calças ou do corpo nu. Sim, quem tem a posse das vestes faz sempre o que bem entender, até mesmo enfiar as migalhas que não querem no bolso dos que não têm. Merecimento, é o que dizem.

Este sistema entorpece, pois faz com que andemos longos percursos sem sequer sairmos do lugar. Promete-se o paraíso, uma ascensão social, para o humano que se vestir de Teseu e derrotar a besta em um inferno dantesco. Esta promessa não é de todo mentirosa, apenas contada de forma incompleta, pois enquanto uns batalham, outros lucram sobre eles e trabalham em esforço contrário, o que acaba por tornar essa promessa seleta e mínima, pois constrói-se com o tempo uma sociedade em pirâmide, onde a base sobrecarrega seus ombros para manter a hierarquia patronal. Se a base ascende, quem está acima ascende a um outro patamar hierárquico, sem quase nunca perder a patente, torna-se um ciclo vicioso de açoite e deleite. A erradicação da miserabilidade, em um sistema assim, só existiria através da presença de uma odisseia individual simultânea por parte de toda a engrenagem básica, ou seja, uma parlenda vendida como verdade racional e plausível, omitindo as ações das forças coletivas que mantém o homem rebaixado. 

Enquanto uma face da moeda retira do ser humano a capacidade de ser um humano dono de si e, até certo ponto, independente, vendendo-se como salvadora da causa; a outra face sobrecarrega o indivíduo com esta capacidade, repousando toda a culpa do fracasso individual, advindo do berço, em sua ausência de luta ou da existência de pouco esforço. É, talvez a esquerda falida não preste também e a direita imprestável tenha decretado sua falência intelectual há muito tempo, face ao abandono de um norte digno. Ambas sozinhas são extremos egotistas, um que trabalha na emoção e outro na razão, quando na verdade o pensamento matemático precisa de uma reflexão abstrata para incitar um desafio próprio de descobrimento de novos cálculos. É preciso ser racional sem deixar a abstração sentimental de lado para um melhor alcance de um bem coletivo. Pena que isto todos já sabem, faz-se óbvio a olhos leigos, e só não o põe em prática para não romper com a facilidade de satisfação egoística que a alimentação onfálica desenvolveu.