Curadoria de João N. S. Almeida. Imagem: ilustração de Bernardo André a nosso pedido.
Anunciamos o debate público que vamos realizar sobre liberdade de expressão, para a véspera do 25 de Abril: será então sábado, no Zoom, começa às 14:00 e durará o tempo que for preciso. Todos são bem-vindos.
https://zoom.us/j/98326192810?pwd=SWh4R0RiS0IzNFIwT3Y2cHlJekFYQT09
O que nos levou a organizar este debate foram dois factores. Um é o interesse — quer passional quer intelectual — que todos na equipa temos pelo tema, interesse no qual nos julgamos acompanhados pela maior parte das pessoas que são estudantes em humanidades. É nas humanidades, enquanto espécie de casa de todos os saberes — ou, pelo menos, que almejam sempre realizar uma síntese inteligível desses mesmos — que podemos mergulhar a fundo na questão das possibilidades da linguagem. É possível que esta questão encontre pontos em comum com o postulado wittgensteiniano dos limites da linguagem corresponderem aos limites do conhecimento, e todas as questões daí derivadas. Mas, à primeira leitura, encontramos principalmente questões sumariamente sociais: pondo o problema através de uma visão propositadamente dualista que distingue muito claramente o acto da vocalização de outros actos, perguntamo-nos muito simplesmente sobre o que podemos e não podemos dizer, em que medida é que a palavra se transforma em prejuízo material, e qual a relação das palavras com as ideias — que nem sempre é clara.
O outro ponto que nos levou a pensar neste debate é a crescente tendência que observamos com alguma regularidade no debate público, desde há cerca de dez anos para cá, ou talvez menos, para muito mais facilmente do que nos pareceria admissível se exigir a retirada da voz ao adversário. Isto tem sido evidente não tanto na interacção quotidiana entre pessoas, mas mais no policiamento da sociedade, e do discurso que tem lugar na sociedade, pela parte de instituições como a comunicação social, as universidades — particularmente no mundo anglo-saxónico — e, por último, e por arrasto, os políticos. A este propósito, recomendamos as leituras de dois textos: um, de 2021, da autoria de um dos membros da nossa redacção, João N.S. Almeida, sobre o clima bélico no discurso e na discussão pública, criado pela comunicação social contemporânea (https://www.palgrave.com/gp/book/9783030560201), e outro da professora Camille Paglia, trinta anos mais cedo, em 1991, sobre problemas semelhantes no seio da academia americana (https://www.bu.edu/arion/files/2017/09/Arion-Camille-Paglia-Junkbonds-Corporate-Raiders.pdf).
Temos feito algumas partilhas em preparação para o debate e vamos continuar a fazê-las. Pensamos que uma excelente introdução ao tópico poderá ser uma leitura desta entrada da Enciclopédia Britânica sobre censura: https://www.britannica.com/topic/censorship.
Alguns dos sub-pontos mais relevantes que pretendemos levantar serão os seguintes:
Em que medida é que palavras podem constituir dano objectivo, ou seja, por exemplo, quais as fronteiras entre insulto, difamação e injúria. Saberão a maior parte das pessoas que em Portugal, e na Europa em geral — ao contrário dos Estados Unidos, onde a protecção dada pela primeira emenda da constituição é abrangente — é possível existir uma condenação em tribunal por alguém chamar “gorda popota” a outra pessoa (http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/20A43C81CCF2050F80257FCB004EBBD3)? Pode contrastar-se isso com o comportamento institucional do Supremo Tribunal dos Estados Unidos que, salvo algumas oscilações, tem pendido fortemente para a protecção do discurso livre, mesmo quando excepcionalmente injurioso; um exemplo disso, retratado aliás no cinema, é o caso de Larry Flint, um pornógrafo de renome (https://en.m.wikipedia.org/wiki/Hustler_Magazine_v._Falwell). Em contrapartida, o mesmo supremo tribunal teve, em 1964, uma decisão constitucionalmente muito dúbia face à definição de igualdade cívica, no caso “New York Times vs Sullivan”, onde estabeleceu que os responsáveis políticos seriam submetidos a critérios mais lassos quanto à possibilidade de processarem alguém, nomeadamente jornalistas, por difamação (mais tarde, e mais de forma mais gritante, alargando esse critério a “figuras públicas”). Adicionalmente, como coda a este sub-tópico, recomendamos o espectáculo Sticks and Stones, de 2019, do comediante Dave Chapelle (https://www.netflix.com/pt/title/81140577).
Como os mídia abordam a liberdade e a censura; se de forma ingénua, tendenciosa, ou justa. Tomamos como exemplos a cobertura de dois casos semelhantes, ambos recentes, em que um cidadão é punido por palavras que, de acordo com alguns, incitam à violência (além de configurar, no segundo caso, quebra dos termos de contrato laboral e deontologia da profissão). Tratam-se do rapper catalão Pablo Hasél, condenado a pena de prisão não por injúrias à monarquia — que lhe valeram apenas uma multa — mas sim pela apologia de grupos terroristas (https://www.theguardian.com/world/2021/feb/19/angry-words-rappers-jailing-exposes-spains-free-speech-faultlines-pablo-hasel), e do polícia português suspenso por ter usado metáforas violentas em relação a um líder político (https://sol.sapo.pt/artigo/727067/agente-da-psp-que-chamou-aberracao-a-ventura-suspenso-por-dez-dias-a-partir-de-sabado). Em particular no primeiro caso, que é complexo, uma análise mais cuidadosa pode revelar nuances não apreensíveis à primeira vista pela perspectiva dada pela comunicação social (vd. https://verfassungsblog.de/hasel-case/ e https://www.conceptosjuridicos.com/codigo-penal-articulo-578/).
A história do termo e do conceito de politicamente correcto; primeiro, recomendando a análise de um artigo de 1990 sobre os inícios da questão (http://www.nytimes.com/1990/10/28/weekinreview/ideas-trends-the-rising-hegemony-of-the-politically-correct.html?pagewanted=all), continuando de seguida com a sugestão da abordagem de alguns comediantes da contemporaneidade a essas limitações (https://www.sandiegouniontribune.com/opinion/the-conversation/sd-mel-brooks-comedians-say-political-correctness-killing-comedy-20170922-htmlstory.html), e concluindo com um artigo com uma perspectiva negacionista sobre a problemática, que rejeita a existência de um verdadeiro problema com a noção de politicamente correcto (https://www.theguardian.com/us-news/2016/nov/30/political-correctness-how-the-right-invented-phantom-enemy-donald-trump).
A liberdade de expressão no mundo académico, onde podemos traçar um paralelo entre dois casos de tendências censórias: a actual e bem documentada discriminação de ideologias politicamente conservadoras (“Across three Anglophone countries, a significant portion of academics discriminate against conservatives in hiring, promotion, grants and publications. Over 4 in 10 US and Canadian academics would not hire a Trump supporter, and 1 in 3 British academics would not hire a Brexit supporter.” Vd https://cspicenter.org/reports/academicfreedom/) e a outrora existente e muito bem conhecida discriminação de posicionamentos políticos ligados à esquerda, ao socialismo e ao comunismo, nos anos do mccarthyismo, na academia americana em particular (“From the 1930s, state legislatures sometimes required teachers to take “loyalty” oaths in order to prevent them from engaging in left-wing, and particularly communist, political activities. During the anticommunist hysteria of the 1950s, the use of loyalty oaths was widespread, and many teachers who refused to take them were dismissed without due process.” Vd. https://www.britannica.com/topic/academic-freedom). A tendência de censura de discurso de várias ideologias políticas ou correntes filosóficas minimamente aceitáveis no espaço público já foi várias vezes repudiada por académicos notórios; a maioria destes, porém, é pertencente a gerações mais envelhecidas, o que poderá levar-nos a interrogar sobre se o valor da liberdade de expressão está em declínio nas populações mais jovens na academia (Vd. https://harpers.org/a-letter-on-justice-and-open-debate/), e se tal se deve a razões ideológicas ou profissionais e corporativas.
Reportando-nos à realidade portuguesa em específico, e querendo complementar não apenas quanto a liberdade de expressão mas a liberdade de participação democrática e a liberdade económica, apresentamos dois relatórios deste ano: o “Global Democracy Index”, do The Economist (https://www.eiu.com/n/campaigns/democracy-index-2020/), e o “Index of Economic Freedom”, da Heritage Foundation (https://www.heritage.org/index/ranking).
A liberdade de expressão na internet e a autonomia das plataformas de conteúdos, nomeadamente das chamadas redes sociais; o movimento #MeToo e a tendência para julgamentos públicos (sobre o qual existiu uma reacção notória de parte de intelectuais e artistas franceses; vd. https://worldcrunch.com/opinion-analysis/full-translation-of-french-anti-metoo-manifesto-signed-by-catherine-deneuve). A excessiva tolerância dada a alguns movimentos de reivindicação social como os Antifa e o Black Lives Matter, em contraste com a perseguição de outros como os Proud Boys, além da censura efectuada por muitas plataformas ao Presidente Donald Trump, com fundamentos claramente muito ambíguos (https://blog.twitter.com/en_us/topics/company/2020/suspension.html). Como complemento a este ponto, e a propósito de perseguições públicas da parte de hordas de moralistas — também, nestes casos, gente jovem facilmente manipulável para a adopção de um estado mental totalitário sem se aperceberem de que é isso que se passa — relembramos a semelhança entre as referidas hordas das redes sociais e o caso da tentativa de censura, da parte de estudantes católicos, à poesia de António Bôtto, no início do século passado, que teve respostas de Fernando Pessoa e Raúl Leal (https://repositorio.ul.pt/handle/10451/7480).
A questão da representatividade, de quotas étnicas e de hegemonias culturais dos cânones nas artes e literaturas; se o único critério para um cânone artístico deve ser interior à arte, não exógeno, ou seja, se cânones literários com fundamentos políticos são cânones políticos e não literários (Vd. https://www.theguardian.com/books/2021/mar/10/not-suitable-catalan-translator-for-amanda-gorman-poem-removed e https://visao.sapo.pt/opiniao/cronicas/boca-do-inferno/2021-03-30-nada-do-que-e-humano-me-e-familiar/?fbclid=IwAR19uZwYLOvXoyH4Npg1tCLWp359Da2bWsCyZ6TAubKRSjUL8mr4EzVJjqE).
Um outro ponto que tem suscitado polémicas nos últimos anos tem sido a capacidade ou incapacidade de parte do público de saber distinguir artista de obra; podemos para isto enumerar casos fortes, os mais interessantes e desafiantes, de Charles Manson, ou Alphonse de Sade; os casos fracos, como os de Pablo Picasso, Roman Polanski, e Caravaggio, suscitam ainda algum interesse (em paralelo, será importante lembrar que relações doentias, como ilustradas ou vivenciadas por Marilyn Manson, Lana del Rey, ou Auguste Rodin, existem e não são idênticas a crimes, embora por vezes, noutros casos, pareçam estar perigosamente próximas disso, como com Sid Vicious); por último, lembramos alguns casos muito fracos onde só uma mentalidade intoleravelmente persecutória e moralista poderá encontrar caso para censura pública: Chris Pratt, membro de uma igreja que tolera mas não encoraja a homossexualidade (https://www.forbes.com/sites/danidiplacido/2020/10/21/the-big-backlash-against-chris-pratt-explained/), Woody Allen e Mia Farrow, envolvidos numa disputa conjugal com alegações de abuso sexual onde nada foi ainda provado em tribunal (https://en.wikipedia.org/wiki/Woody_Allen_sexual_abuse_allegation), Johnny Depp e Amber Heard, que se acusaram mutuamente de violência doméstica (https://www.insider.com/johnny-depp-amber-heard-relationship-timeline-2020-7), Louis CK, que se insinuou de forma sexual a várias das suas assistentes, com consentimento das mesmas (https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2017-11-11-e-tudo-verdade-admite-o-comediante-louis-c-k-acusado-por-cinco-mulheres-de-assedio-sexual/), e Charlie Rose, acusado também de assédio sexual no local de trabalho, tendo sido imediatamente despedido sem apelo e banido de um certo nível da vida pública (https://en.wikipedia.org/wiki/Charlie_Rose#Sexual_misconduct_accusations).
Livros como bem de primeira necessidade; é bem sabido que, durante certos períodos de confinamento mais agressivo motivados pela presente pandemia, em muitos países, as livrarias foram impedidas de funcionar. Esta não é a menor das violações da liberdade a que assistimos, uma vez que os livros são essenciais para estimular o espírito crítico que serve de base à acção cívica – e, de facto, a todos os domínios da vida intelectual dos seres humanos -, uma vez que, como disse um personagem numa série famosa, a mind needs books like a sword needs a whetstone (https://awoiaf.westeros.org/index.php/Feature_quote/55). Lembramos a este respeito uma conversa de um estudante anónimo da Coreia do Norte com jornalistas estrangeiros, em que dizia que os únicos momentos de liberdade que tinha eram aqueles em que, sendo estudante de línguas, ia para a biblioteca ler Dickens e outros romancistas ocidentais. É bom lembrar que a liberdade de alguém se exprimir é também a liberdade de que alguém oiça aquilo que outros exprimem; oiça e, neste caso, leia, pois os livros são veículos de expressão verbal.
A liberdade como um conceito abstracto bastante subjectivo: o que entende cada sujeito por liberdade; como garantir que a liberdade exercida por um sujeito não é a censura de uma liberdade alheia; se serão todas as expressões de liberdade aceitáveis; se a não aceitabilidade de algumas expressões de liberdade consiste em censura; se liberdade tem alguma ligação com moralidade. Ou seja, se é inevitável que certas restrições à liberdade sirvam como garante da liberdade. Para complexificar adicionalmente a questão, aconselhamos uma leitura sobre os conceitos de liberdade negativa e liberdade positiva (https://en.wikipedia.org/wiki/Positive_liberty) e sobre direitos positivos e direitos negativos (https://en.wikipedia.org/wiki/Negative_and_positive_rights).
E, por último, se os extremos políticos anti-democráticos devem ter lugar dentro da democracia, um ponto que vai além, aliás, do quadrante político: saber se esses extremos ideológicos (anti democráticos ou, de modo mais ligeiro, cépticos quanto à democracia) devem ter lugar à mesa da democracia parlamentar representativa ou antes devem ser expulsos (sendo, portanto, tratados como criminosos, apesar do seu crime ser apenas de pensamento? Vd. Karl Popper, https://en.wikipedia.org/wiki/Paradox_of_tolerance). Poder-se-ia pensar na célebre máxima de que não se pode tolerar a intolerância, mas é preciso pensar no que isto significa concretamente em cada caso; é claro que uma sociedade livre não pode permitir extremistas islâmicos que andem na rua a raptar e decapitar pessoas, mas, por outro lado, banir partidos políticos como o Chega ou o PCP, ambos podendo ser ditos anti-democráticos, consiste em banir opiniões qua opiniões, sem que tenham sido cometidos actos criminosos, o que não parece consentâneo com uma democracia funcional. É possível que ser tolerante queira necessariamente dizer tolerar quem é diferente de mim/nós; tolerar quem é igual não é tolerar porque não requer um exercício de tolerância. Numa democracia funcional, pareceria, então, que o curso de acção a seguir seria permitir até mesmo partidos anti-democráticos, desde que estes se submetam ao escrutínio democrático, e não é de excluir a hipótese de o próprio exercício da democracia os tornar, a prazo, irrelevantes. Mas nada disto é certo.
Apareçam!
Tópico: Liberdade de Expressão
Hora: 24 abr. 2021 02:00 da tarde Lisboa
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